Quarta-feira, 31 de Outubro de 2007

A bruxinha Pim Pam Pum

1

Um morcego, duas luas

Uma bruxinha a voar

Chapeu de estrelas brilhantes

A quem irá ela encantar?

2 

Bate à porta: truz truz truz

Já lá vai! Quem está aí?

É a bruxa da vassoura,

E está à espera de ti!!!!

3

Doçuras ou travessuras?

Aranhiços a trepar

Uma teia de algodão

Um vestido de luar

 4 

Rebuçados de cereja

Beijos doces de melaço

Pim Pam Pum faz um feitiço

E prende a Lua num laço!

 

 

música: This is Halloween (Nigthmare Before Christmas)
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Original Zumbido por meldevespas às 22:17
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Segunda-feira, 29 de Outubro de 2007

Dias de Sol, Tardes de Pó

-Já viste?! O vento faz nas nuvens o mesmo que faz na areia! Desenha as mesmas ondas!

 - Se calhar não sabe desenhar mais nada...

Caminhavam lado a lado, agora já longe da aldeia e dos olhos duros de pais, professores ou vizinhos.

Olhavam para o céu como se fosse seu, e, levantando nuvens de pó áspero,  arrastavam os pés na terra seca, com o descaso de quem tem o mundo à sua mercê.

Era uma tarde igual às outras de um dia que se repetia nos gestos de dois miúdos, guiados apenas pelo rodar do astro rei, e pelo apelo do vento na cara.

- A Pata Choca, já me avisou, "Mais uma falta e vou direitinha para a porta da tua casa!!" - ladainhava o Chico em falsete,  imitando os trejeitos da professora Joana - Tá-se a habilitar a uma partida jeitosa! Ai está, está!!! - rasgava em tom de ameaça.

- Tenho aqui a Radiante! - ripostou o Toninho, puxando ao mesmo tempo, de uma navalha de bolso de folha brilhante e cabo de massa encarnada; e de um sorriso que deixava a nú uma fileira de dentes amarelecidos pelo tabaco barato de enrolar - furamos-lhe os quatro pneus da carripana, sempre quero ver como é q'ela se amanha!

As gargalhadas espalhavam-se pelos campos vazios de gente, num eco de liberdade com os dias contados.

Lá continuaram a fazer caminhos de descoberta, por fora da vida que espreitava na berma funda do carreiro de terra batida.

- Quando for grande, vou ser aventureiro! - abria Toninho, para o amigo, os sonhos que tinha, escondido dos grandes, que lhe exigiam realidades e cadernos limpos - vou descobrir coisas que inda ninguém descobriu! Terras, pedras, lugares! - abrandou o passo, embalado pela antevisão de cheiros distantes e terras pintadas em telas brancas - E tu? Já pensaste o que queres fazer da tua vida? - perguntou, voltando ao pó da estrada, enquanto enrolava desajeitadamente um cigarro com um bocado de papel pardo que trouxera à sucapa da mercearia do Sr. Viriato.

- A minha mãe, tá sempre a dizer, que por este andar vou ser um grande desgraçado!... - o Chico, pela primeira vez, nessa tarde, escureceu o olhar com a pouca fé da mãe, e aqueceu as mãos no desejo secreto de um dia ser alguém. Um homem, não um desgraçado...que um desgraçado é só um homem pela metade, e o Chico ía ser um homem inteiro!

O silêncio caiu sobre os dois como um castigo, e só ficou o canto dos pássaros por cima deles, e o restolhar das ervas dentro dos peitos pequenos de idade e gigantes de sonhos vãos.

O dia correu com pressa de acabar, tal era a sede de sentir o sol nas veias. Pularam cercas, subiram árvores, derrubaram pássaros com as fisgas de elásticos largos, comeram macãs e uvas surripiadas em pomares e vinhas que se atravessaram na sua correria, e regressaram a casa, por fim, como todos os dias, cansados, esgotados por tanta liberdade, vivida ao limite.

O Chico e o Toninho, haviam de lembrar estas tardes de fuga pelos anos dentro.

A vida encarregou-se de esvaziar sonhos como balões velhos, e os sonhos encarregaram-se de calar a liberdade num canto escuro, e o silêncio amordaçou para sempre sorrisos abertos, corações cheios de tudo e mãos cheias de nada.

 

Fofografia de (Amazing) Weee  

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Sexta-feira, 26 de Outubro de 2007

Proud Mommy what!!!

Esta minha intervenção, é uma espécie de 2 em 1 dos desesperados ......

Bem, em primeiro lugar, quero agradecer mais um presente que recebi, desta vez da Asas Para Voar, e que me deixou muito feliz, já que se refere às "coisas" melhores da minha vida, ou seja, os meus 3 filhos, e que é o Prémio Proud Mommy , uma delicia como podem constatar:

 

 

 

Ora, esta menção, não podia ter vindo em "melhor" altura......

Então não é que descobri, agora há uns dois ou três dias atrás, que o Zeca (para quem ainda não sabe é o meu filho, o único rapaz, no meio das duas raparigas), que tem onze anos; e o primo Pedro, que tem exactamente a mesma idade (apenas três dias de diferença), juntaram esforços e trocos, e foram comprar...(agora é a parte em que eu me tenho que sentar e engolir em seco), foram comprar.....a Maxmen .....

Sabem o que é a Maxmen , não é?   Claro que sabem! Aquela revista pseudo-masculina cheia de gajas de mamas insufladas e nádegas lisas que nem gelo!

Mas esperem! Não chegava a Maxmen ! Não senhor!!! A Maxmen edição com oferta especial do Kamasutra em imagens!!!! O quê!!! Oh minha Nossa Senhora Bendita, então os miúdos andaram a ver isso!!!!!

Vou beber outro copo de água com açúcar, outro de muitos que tenho engolido nos últimos dias. Se não é desta que apanho uma camada de diabetes, então não será nunca.

 

 

 

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Original Zumbido por meldevespas às 12:30
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Quarta-feira, 24 de Outubro de 2007

(IN)FUSÃO

 

A hora do chá era um ritual repetido dia após dia, no mesmo horário.

Sentavam-se frente a frente, os olhos baixos, postos nas chávenas de porcelana. Há muito tempo que não de olhavam.

Estava tudo dito entre as duas. Tudo havia já sido vasculhado, remexido. Não havia um centímetro da vida de uma, que a outra não tivesse já violado.

Chá preto, bem forte, às Segundas e Quintas, chá de Tília às Terças  e Sextas; de Camomila às Quartas, e de Rosas aos fins de semana. O mesmo calendário há mais de 50 anos, num recital de tilintares e cheiros, que tinham impregnado paredes e vestidos, pele e sentidos, de uma forma opaca e irreversivel.

Não sabiam ao certo como tinham ido ali parar.

Não eram nada uma à outra. Não havia laços de sangue a uni-las, aliás, não havia laços nenhuns a uni-las.

Cinco décadas, meio século de fios de seda que as mantinham presas naquela mesma casa, numa cohabitação de silêncios partilhados, em que cada vez mais, apenas suportavam a presença da outra, como um mantra que se repetia e ecoava no bater das horas.

Tinham sido amigas de infância, mas não tinham memórias desse tempo.

Caminhos de angustias e solidão, aos poucos tinham aproximado as duas, e como as fases de uma lua qualquer, esvaziaram almas anos a fio.

Fizeram companhia uma à outra, falaram de tudo, esgotaram segredos, trocaram dores, levaram mágoas da outra para a cama, e devolviam-nas pela manhã já apaziguadas.

A primeira enviuvara cedo. tão cedo que nem tivera tempo de parir um filho. O homem dela morrera na guerra. Mas já não se lembrava qual, nem quando, nem onde, nem sequer se fora na guerra. Morrera.

A outra não. A outra cansara o corpo de homens. Como alguém que debaixo de uma amoreira, colhe frutos até não poder mais, porque são doces e quentes, e depois já são doces e quentes demais, até não mais poder ver uma amora diante dos olhos...

Os anos correram, e quase sem se darem conta, a indiferença insinuou-se pelas frestas dos caixilhos de madeira velha das janelas, e, mais calada que um rato, instalou-se, e apossou-se do olhar delas.

Já  não se falavam, não se olhavam, também não se ouviam.

Viviam de pressentir a outra. Acordavam, dormiam e voltavam a acordar, na certeza da outra. uma certeza constante e vazia, cada vez mais impossivel de suportar.

A primeira pensava muitas vezes na libertação da morte. Finalmente o júbilo da solidão almejada, uma solidão real.

A outra não. A outra pensava nos biscoitos para o chá de amanhã. Biscoitos de manteiga, com raspas de limão e amendoas torradas, os preferidos da primeira.

A morte. A morte era pouca coisa. A morte era quase nada.

 

Imagem: deviantART

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Sábado, 20 de Outubro de 2007

Memórias de Vento

- Há quanto tempo não moras aqui?

-...não me lembro...mas volto sempre depois da chuva...

- Como uma formiga de asa?

- Sim!!! Isso mesmo, como uma formiga de asa, atrás de nesgas de sol.

- Antes eras diferente.

- Quando?

- Sei lá! Antes. Trazias as mãos e a boca carregadas de pólen , e por onde passavas nasciam flores amarelas, daquelas pequeninas que há no campo.

- Malmequeres do campo.

- Talvez.

- Não sei... só guardo o sabor do vento a uivar nas canas da ribeira. Trazia um torpor tão leve, que adormecia a sonhar com libelinhas de cores garridas em dias de sol.

- Ainda falas como quem diz poesia...pelo menos isso não perdeste.

- Nunca me compreendeste... são só palavras, percebes?

- Cortaram-nas.

- Desculpa!?

- As canas. As canas que ladeavam a ribeira. Vi lá os homens. Ceifaram todo o canavial.

- Que pena...o vento vai estranhar tanto!

- Disparate! O vento é um sopro, não é gente! quem te ouve falar....

- É um sopro, eu sei. Mas se não é gente, porque é que vive comigo na mesma casa, debaixo do mesmo tecto?

- Lá vens tu com as tuas coisas....

- Não sabes a resposta, não é? ... eu também não sei. às vezes enxoto-o com o silêncio, mas ele não se rende, volta com mais força ainda, e esconde-se dentro do meu peito.

- Desconcertas-me...

- Não sei porquê? Basta olhar para ti! Vê-se a léguas!

- Ora....o quê? Diz lá...

- O inverno.

- ....

- Sim. Está nos teus olhos. Olhas para mim com tal frieza, que me faz arrepender...

- Mentes! Não há frio, nem chuva, nem neve no meu olhar! , mas...arrepender de quê?

- De voltar  depois da chuva...

-...como as formigas... para te encostares ao sol e aquecer as asas.

- Não ... vinha para me aquecer em ti, e enxotar o vento.

- Não percas tempo. Também eu já não moro aqui. Tu sabes...

- Sim, eu sei. A força nunca foi o teu forte.

- E agora o que queres dizer com isso!!!

- Deixa lá...agora já não vale a pena...

- Sabes que detesto meias palavras! Explica-te!

- Está a arrefecer. Deve ser de ti. Vou-me embora. Adeus.

- Não! Espera! Fica mais um bocadinho...tens razão, tens sempre razão...mas o que queres,  sou fraco.

- E eu sou leve. Por isso vivo com o vento. Tenho dias de ser brisa, tenho dias de ser ventania.

- Mas fomos felizes, não fomos?

- Fomos?

- Acho que sim...eu era feliz..

- Vivias a fazer bonecos de neve com algodão doce...por isso eras feliz. Mas sabes? Para fazer bonecos de neve, é preciso neve...

- Isso nem parece teu! Tanta seriedade! Tu que dormias de olhos abertos numa cama de flores amarelas, que cresciam só para ti! Tu que derramavas  pólen, por onde passavas...

- Se dormia de olhos abertos, era só para não te perder de vista...e não eram flores, eram os teus olhos, e não era pólen, era amor...

- Não sei que te diga.

- Não digas nada...vou agora.

- Voltas?

- Não sei...

- Talvez depois da chuva?

-...como a formiga de asa.

 

Fotografia de João Palmela

 

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Quarta-feira, 17 de Outubro de 2007

Acto de Fé

I

Álvaro Guedes era um homem como há poucos. Para ele, a vida era uma coisa séria, que devia ser encarada sem descontracção e com formalidade.

E era tal e qual assim que Álvaro a levava. Todos os dias, se levantava da cama às 6 da manhã em ponto. Saltava ao primeiro toque do relógio despertador, herdado do avô, e ao qual todas as noites, impreterivelmente às 22,30, dava corda religiosamente.

Calçava os chinelos de lã, aos quadrados castanhos e cinzentos, que exactamente às 10,45 da noite anterior como de todas as que a precederam, colocava em posição, no sitio justo por onde sairia da cama pela manhã.

Tomava um duche. Rápido e frio. Sim frio, porque, dizia, a água fria, afasta porcarias e pensamentos pecaminosos das nossas cabeças!

Dizia-o todos os dias, a quem o quisesse ouvir!

A sua devoção à candura da alma, era tão profunda como a sua inflexibilidade sobre o dever de virgindade do corpo.

- O nosso corpo é um templo! - dizia extasiado pelas suas próprias palavras -  um templo do Senhor!!!! E quem somos nós para o profanar?  Somos humildes servos!!! Temos que limpar e alimentar o nosso corpo! Respeitá-lo! E isso basta ao Senhor!!! - uma veia arroxeada crescia no pescoço e alongava-se até à testa, denotando a excitação crescente com que acentuava a sua voz. Podia-se até dizer, que se algum prazer retirava da vida, era sem dúvida a fogosidade quase carnal com que defendia a pureza da dualidade corpo/alma.

Álvaro Guedes tinha 45 anos. Era empregado numa repartição estatal,  conhecido pela sua perseverança, pela sua rectidão, pela sua fé, pela sua vida espartana.

II

Saia do banho e vestia o fato cinzento. Tinha dois. Ambos cinzentos. Completos, e de boa qualidade - Se forem de um bom tyrilene  duram uma vida! E os luxos sobram-nos todos!

Camisa branca, tinha três camisas brancas, impecavelmente engomada. Meias cinzentas de algodão egípcio, e uns sapatos castanhos, de atacadores,  que tinha estreado há já 15 anos, numa excursão a Santiago de Compostela . Aliás a única  extravagância da sua vida, que ainda hoje, apelidava de esbanjamento sujo - Se ao menos tivessem ido em profissão de fé! , mas não!!!! Já não há crentes neste mundo! Todo o caminho cantaram brejeirices, e quando chegaram perderam-se nas lojas a comprar caramelos!!!

 A mesa do pequeno almoço, estava posta como sempre, uma toalha de linho, ainda do enxoval da mãe, duas chávenas de louça antiga, um bule cheio de água quente com cascas de limão, e duas fatias de pão de ontem.

Sentou-se, e olhou para o relógio na parede da cozinha, por cima do velho frigorifico. Marcava as 6:30.  Amália, a irmã de Álvaro, aquecera a água para o chá, acordada pelo barulho estridente do despertador, e voltara logo depois para os lençóis ainda quentes.

Tomava o pequeno almoço sozinho . Como quase todos os dias. Álvaro não era homem de se importar com coisas tão terrenas como ausências ou solidão.

Com a mesma cerimónia de quem se benze na missa de Sexta-Feira Santa, sentou-se à mesa, abençoou a parca refeição, e demorando-se nos gestos, encheu a chávena e barrou com pouca manteiga o pão endurecido. Comeu em silêncio, acompanhado pelo vazio da casa e pelo frio das suas mãos.

III

Amália tinha 50 anos, e vivia naquela casa desde o dia em que a mãe aos gritos a derramara no mundo. Fora um parto difícil , e logo  nas primeiras horas, a recém nascida mostrara ao mundo as suas diferenças .

Como se quisesse prolongar as dores da mãe, Amália, gritou duas semanas seguidas, sem parar. A mãe julgou de enlouquecer, e o pai deitou-se numa cama de aguardente, que lhe queimava as entranhas e o embalava em viagens por terras mudas, de gente sorridente e calada, onde não havia gritos ou choros ou vozes.

O tempo correu, umas vezes mais depressa do que outras, mas a estranheza de carácter de Amália continuou intacta, até ao dia do veredicto final. O diagnóstico médico prendeu-a para sempre a uma esquizofrenia, que fazia dela um ser sem pátria, ou casa, ou família , ou mundo.

Limpava a casa dos dois, duas vezes por dia, fazia almoço, passava a ferro, engomava colarinhos, engraxava sapatos, bordava toalhas, via novelas, mas na realidade nunca ninguém sabia onde ela estava.

IV

Tirou o guardanapo do colo, limpou a boca, dobrou-o com uma destreza matemática, e sem fazer barulho levantou-se, e saiu para a rua.

Cinco minutos antes das sete da manhã, estava já à porta da igreja de Sta . Justa, onde todas as manhãs ouvia a missa em latim, pela voz do decrépito Padre Miguel, que só a muito custo se mantinha de pé para terminar a homilia.

Tomava a hóstia consagrada com um enlevo orgástico,  molhava a ponta dos dedos com água benta, e pela quarta vez desde que tinha saído da cama, benzia-se e saía.

Caminhava a pé até ao serviço. Sempre, todos os dias deste há quase 18 anos. Era um bom emprego, seguro, um ordenado certo ao fim do mês. Tinha sido o seu Padrinho, um conceituado Doutor daquela praça, que lhe tinha arranjado o lugar, e ele, estava-lhe agradecido para a eternidade.

O caminho era mais ou menos o tempo de um Mistério, que ele rezava com fervor, ao mesmo tempo que dava os bons dias a com quem se cruzava.

V

Em 45 anos de vida, passara muitas horas em hospitais e consultórios médicos, primeiro por causa dos pais, depois por causa da irmã.

Ele até hoje, jamais precisara da intervenção da medicina, bastava-lha a mão de Deus, dizia - Muito mais poderosa! É a falta de fé que põe os homens doentes!

Todos o conheciam, e sabiam que se algum assunto lhe acendia o coração e aquecia a voz, era a fé dos homens...ou a falta dela.

Sabia bem, que os mais jovens lá da repartição, lhe chamavam, beato, rato de sacristia, e ás vezes coisas muito piores; mas ele confiava como sempre na justiça Divina, que no seu espírito, comparava sempre a uma espada afiada pronta a cair sobre uma cabeça pecadora.

- Não há nada que se pague melhor do que a semente da lingua! - sentenciava em pensamento, tentando contrariar o sabor doce da vingança que Deus perpétuaria em seu nome.

VI

Ia a casa para almoçar. Só assim podia ficar descansado. Vigiava Amália de perto, sondava a sua disposição diária, e depois de um almoço a dois, numa mudez mais dura que o pão de ontem, regressava ao serviço.

Lançava-se com afinco ao pouco que tinha que fazer, numa repartição pública igual a tantas outras, apinhada de gente com muito pouco para fazer.

Para Álvaro, não havia futilidades a discutir, ou procedimentos a adiar. Trabalhava em cima da linha, cumprindo horários estipulados por ninguém.

Ao bater das cinco da tarde no relógio da torre, começava a arrumar com minúcia. lápis, canetas e papeis.

Sempre sem se dar por ele, levantava-se, chegava com delicadeza a cadeira para a secretária, e saía. Nunca era o primeiro a sair. Não tinha pressa nenhuma.

VII

O caminho de retorno a casa, era sempre mais pesado a esta hora.

Ás vezes relaxava um pouco, desacelerava o passo, e permitia-se olhar os outros, ver como viviam, como falavam, como sorriam.

Mas o devaneio era momentaneo, e o escárnio da leveza de sentimentos dos outros, o quase nojo com que encarava a forma escancarada com que riam alto, como se rissem de Deus, depressa voltavam a carregar o seu semblante de uma inexpressiva incompreensão.

Punha a chave à porta, limpava os pés no tapete da emtrada, e como hábito, levantando a voz, avisava a irmã da sua chegada.

VIII

O jantar decorria no mesmo tom. O acompanhamento era outra vez a mudez das palavras que não se trocavam, e a sobremesa era o silêncio consentido entre os dois.

Ia cedo para o quarto. Nunca depois das nove da noite.

Tinha que rezar o terço, e preparar tudo para a amanhã seguinte.

Ajoelhava-se no marmore frio,  e agulhas de gelo penetravam nos ossos, infringido-lhe uma dor aguda que ele recebia com um sorriso e de olhos cerrados.

Terminada a oração, fechava o oratório e colocava-o com reverência dentro da gaveta da comoda, depois dirigia-se à porta do quarto, mecâncicamente, fechava-a e dava duas voltas à chave. Aquele era o seu reduto. A sua privacidade.

IX

Abriu o garda-fatos de mogno envernizado, despojo da mobilia de núpcias dos pais, e retirou de lá a caixa de cartão forrada a papel de seda azul claro, que guardava desde não se lembrava quando, naquele recôndido lugar, longe dos olhos da irmã, longe dos olhos de Deus...

Abriu-a como quem desfolha um malmequer, devagar, mas ao mesmo tempo com uma ansiedade, que bem conhecia, e que tanto lhe custava amansar.

Ficou ali de olhos vidrados, embevecidos com a luz que vinha de dentro da caixa. As cores berrantes explodiam-lhe o sangue nas suas veias, as texturas de sedas, e crepes, e rendas queimavam-lhe a sua existência, quase não ousava tocar em tais reliquias.

Despiu-se, com a usual paciência e sem pressas. olhou outra vez a caixa, espreitou para dentro e demorou o olhar, os lábio entreabertos, como se quisesse fazer ecoar o prazer que os seus olhos sentiam.

Escolheu umas de um vermelho carmim arrendadas e leves, tão leves como uma oração, tão quentes como a fé que lhe enchia os dias.

Tremeu de raiva pela comparação, e gemeu impotente perante o pecado consumado.

Vestiu-as, depois o pijama, e de regresso à vida, meteu-se na cama, e puxou os lençóis até ao pescoço.

X

Apagou a luz do candeeiro de mesinha de cabeceira, e no escuro, mais só do que nunca, deixou a sua mão viajar. Tocou-as. As calcinhas de renda vermelhas, cobriam-lhe o corpo morto antes sequer de ter vivido.

Sorriu ao sentir o conforto luxuriante do cetim, e adormeceu num acto de fé sem precedentes.

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Segunda-feira, 15 de Outubro de 2007

E-Friends

Hoje chegou a minha vez de dar presentes!

Ahh pois é!

Mas antes, há que agradecer aos e-friends Lua de Sol, e Carpe Diem , que me concederam este doce prémio:

 

Pois bem, este e mais os  três aqui em baixo:

 

 

 

 vou agora passar para todos os amigos que tenho linkados , e que animam os meus dias com as suas palavras, as suas imagens, o seu humor, que me dão a conhecer coisas novas todos os dias.

Pois bem, a Lista de Carmo, é então a seguinte:

 

Hold On Wee  - Porque ela é uma fotografa de "mão cheia", e uma pessoa muito doce

Lost in Portugal - Porque é onde vou buscar tudo sobre a minha série televisiva preferida LOST e pelas pessoas que aí "conheci"

Pralém da Linha Vermelha - Porque aqui mora alguém com muito talento, que me faz rir, e um bom conversador

Carpz  - Porque é a vespinha mais velha colmeia, o meu amor primeiro, uma das minhas paixões, um pedaço de mim

The Open Door  - Mais que uma porta aberta, este sítio é uma lufada de ar fresco. Rejuvenesço de cada vez que lá entro, e a dona da casa é um amor (ver tb Music )

Estante de Livros e Espaço Rosa juntinhos porque pertencem à mesma "dona", porque no primeiro se fala de uma das minhas grandes paixões: os livros, e no segundo há toda uma vida que repassa cá para fora e me faz crescer a cada dia

Totó da Cabeça - Porque este rapaz é tudo menos tótó está sempre em cima do acontecimento, e é já uma referência na blogosgera

Constelação das Letras - Outra vez e sempre os livros, muitas vezes vividos na primeira pessoa, e de uma forma apaixonada

Mais Astuto - Porque aqui "há de tudo como na farmácia", sempre com muito humor e com uma certa sátira que me agrada muito

Pasmos Filtrados - Porque o Sr. que gere este sítio, escreve de uma maneira soberba, ainda por cima sobre um tema que amo de paixão : o cinema

Conteúdos - As palavras são do melhor que há, e a música...a música é sempre fantástica!

Asas para Voar - Porque escreve muito bem, porque é mãe como eu, e também como eu de 3 crias.

Fotografia de João Palmela  - O olho do falcão! As imagens que este homem consegue, são sempre de ficar de boca aberta!

A Ver Navios - Porque aqui está sempre latente uma consciência social imensa.

 

And That's all folks !!!

 

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Original Zumbido por meldevespas às 10:37
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Quarta-feira, 10 de Outubro de 2007

Hopeless III

 

 

Olha para mim. Só um bocadinho...

Não me toques como se eu fosse água...sempre com medo que te arraste para fora de pé.

Não me olhes como se eu fosse vento...sempre com medo que eu derrube muros em ti.

E não me ames com medo que me desvaneça...como se eu fosse esperança.

Não sou água, ou vento, ou esperança.

Nada em mim é rebelião, ou lugares distantes.

Antes sou pântano , calmaria, resignação.

Por isso nada temas. Não te vou magoar. Nem poderia!

Até porque são tantas as vezes, em que tu e eu somos um.

Siameses de braços caídos. Corpos ausentes de um hoje que se faz tarde.

Agora a sério! Não tenhas medo. Já não sonho.

Hoje de manhã, estavam a cortar as ervas na beira da estrada. Uma ceifa que deixou o ar carregado de cheiros de campos saturados de águas e temperos. Uma aroma tão verde, que por momentos me acordou a fadiga.

Depois passou. Ficou lá atrás, na berma da estrada, e eu segui o dia que nascia fora do meu reduto.

Sim, eu também tenho muros! Ergui-os aos poucos, com suor salgado e às vezes doce. Com a força dos meus braços, das minhas mãos, com o sopro da minha indiferença.

Ao meio dia, quando o sol já vai alto, passei outra vez. As ervas cortadas, jaziam numa exaustão colhida à força, e o cheiro agora era tão intenso como o teu silêncio.

Havia anis e licor de poejo e ervas doces, na respiração ofegante das ervas tombadas.

O calor fermentou-as, e o ar estava exuberante de bebedeiras e faces coradas.

Um aroma tão quente, que quase me queimou a fadiga.

Depois passou. Ficou lá, a brincar com incautos errantes, que cansados de tudo e de nada por ali se perdiam.

Mas eu não.

Não tenhas medo.

Eu já não sonho.

 

 

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Domingo, 7 de Outubro de 2007

Pim Pam Pum Bailarina

 

I

Vestidinho de organdi

Sapatilhas de verniz

Laçarotes no cabelo

Uma pinta no nariz

 

 II

Dois brinquinhos de cerejas

Um saiote de veludo

Rodopia com leveza

E ar de quem sabe tudo

 

 III

Chupa chupa colorido

É varinha de condão

Faz magia Pim Pam Pum

Põe os sonhos num balão

 

IV 

Dança, gira, roda, pula

Bailarina de papel

Já cansada vai dormir

Sonhar com bolos de mel

 

 

A pedido da verdadeira Pim Pam Pum, com ilustração e fotografia da mesma!

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música: When you wish upon a star
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Original Zumbido por meldevespas às 18:41
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Quarta-feira, 3 de Outubro de 2007

A Terra e a Romã

 

O homem passou como todos os dias passava. O ar da manhã estava carregado de cheiros e texturas que lhe dilatavam as narinas e lhe acariciavam a pele. E ele deteve-se, parou a sua monótona marcha matinal, e pela primeira vez viu-a. Já tinha olhado para ela vezes sem conta, era impossível não o fazer, mas não, nunca a tinha visto assim.

Ela ali estava, posta a seus pés, estendida em gestos lânguidos e preguiçosos , cansada de dias grandes e noites quentes, esgotada das provocações primaveris consumadas nas tardes de Verão.

Estava mesmo ali, como sempre tinha estado, a Terra.

Tinha estampado na cara um sorriso trocista de desejos explorados, e olhou-o como quem colhe uma romã a rebentar na pele, de sucos doces e carne madura. Demoradamente como um convite.

A Terra. Ela ali estava,  vermelha e doce, deitada em toda a sua volta, húmida e tenra, movendo-se com o ritmo de passos perdidos, e brisas de Outono atrevido .

O homem, não conseguiu tirar os olhos, ficou parado, estanque, num burburinho de sensações a explodirem-lhe o peito, um rastilho de pólvora a correr-lhe nas veias e a transportá-lo para leitos voluptuosos  atapetados a  folhas secas de veludo.

Ela encarava-o, sem medo ou temor, segura e serena, cheia e plena, grávida de chuvas abundantes e sementes que o vento quis violar e ela negou com artes de sábia guerreira.

Tudo à sua volta era vida, tudo gravitava em torno do seu eixo, numa fertilidade mal contida de  folhas e frutos e raízes .

O homem contemplou-a já apaixonado, já rendido ao seu poder,  e compreendeu o sentido dos ponteiros do relógio da torre, abraçou a vontade de viver que lhe crescia na ponta dos dedos, e precipitou-se em direcção a casa numa correria cega e apressada.

Abriu a porta, e os seu olhos perderam-se pela casa, numa busca de loucura pressentida.

A mulher estranhou-o ali, perguntou-lhe ao que vinha, mas os olhos do homem responderam antes que a boca se abrisse.

Correram juntos como animais em campo aberto, e quando os seus olhos se acharam na ânsia do encontro, deitaram-se nela e apaziguaram o corpo com sumos de romã, e saciaram a sede com bagos maduros.

Por baixo deles a Terra sorria num gemido cúmplice , e girava devagarinho, prolongando os dias.

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Original Zumbido por meldevespas às 10:54
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