Eram três raízes fortes.
Frutos de sementes vulgares, mas sãs e escorreitas.
Eram três raízes, que fermentaram no colo de uma mãe viúva de traços firmes e plácidos, e germinaram num dia de Primavera com o nascer de uma manhã qualquer.
Tinham membros malhados como ferro, forjados na tempra de uma fornalha acesa em brasa. Estavam na terra, como a terra estava nelas, Eram da terra numa pertença sem reservas ou limites, eram e isso bastava.
A viúva que as deitou ao mundo, cansava os braços com os filhos dos senhores, e caiam-lhe os seios de tristeza pelo leite derramado na boca de outras crias que não as suas. Tinha olhos de sal, que às vezes não se fechavam, porque não se podiam fechar, e davam-lhe um ar de estátua. Uma estátua numa praceta de segunda que ninguém olha, pela razão simples de que não há ninguém para olhar. A mãe viúva, tinha os nós dos dedos gretados do frio do pão amassado noites dentro para mesas de outras casas. Ela não tinha casa, nem mesas, nem tampouco pão, só três raízes fortes metidas na terra, de pés sujos e duros que sorriam com a alma toda quando a tarde do dia a seguir trazia embrulhadas num pano grosso, as côdeas do pão dessa manhã.
Codeas , maçãs tocadas com nódoas negras que alastravam mais depressa dentro dos bolsos, escondidas dos olhares famintos de raízes fracas e folhas caídas longe do Outono; raspas dos bolos de torresmo assados no forno do pastor, árvore nobre de tronco rugoso e ramos quietos.
Aquietavam o clamor do estomago com restos de nada, e brincavam de mangas arregaçadas e calções cortados pelos joelho e atados à cinta com duas voltas de cordel.
Eram amados na sombra dos filhos ricos que não eram da sua mãe. Espreitavam do alto do muro as mãos gretadas a pentear cabelos de ondas loiras, e fingiam ser eles, quem estava ali à mercê da doçura daquelas mãos de que só conheciam o cheiro.
Mas os seus cabelos eram negros, e atrevidos, espetados e sujos, e as mãos estavam longe. Acariciavam cabeças douradas, faziam-no com carinho e desmedida dor.
As raízes tomaram conta do seu pequeno mundo, e fizeram dele um lugar fertil para se viver.
Cresceram e multiplicaram-se, ficaram mais fortes a cada pedaço partilhado de amor em forma de pão bolorento. Abraçaram palmos e palmos de terra, sempre na busca, sempre a fossar o cheiro a óleo de amendoas doces que a mãe trazia nos dedos àsperos, o cheiro arrancado a aneis louros incandescentes.
Um dia a mãe viúva fechou os olhos de sal, e não mais os abriu. Nunca mais trouxe côdeas , ou frutas passadas, as mãos mornas, arrefeceram num repente e perderam o cheiro.
E as raízes encolheram-se de dor, calaram gemidos, perderam sorrisos abertos e ganharam um par de olhos de sal para cada uma delas.
As poças de lama, já não eram oceanos sonhados de praias quentes e azuis, e os olhos de sal viam agora apenas poças lamacentas feias, frias e vazias de interesse.
A terra toda encheu-se de raízes novas, e as três raízes fortes sulcavam vales com gretas nos nós dos dedos, e voltavam de rastos com pedaços de pão de ontem e restos de bolos resgatados do lixo das padarias. E havia sorrisos de mangas arregaçadas que esperavam com os olhos cheios de sono, as mãos sedentas de toques e as barrigas cheias de fome.
Aos poucos os olhos de sal que tanto tempo permaneceram abertos, escancarados de fé, e tantas vezes (muitas mais vezes) de desespero, fechavam-se.
Uma a uma, as três raízes fortes foram perdendo o viço, os olhos foram ganhando a paz.
Os olhos de sal e a busca de pão foram passando de raíz em raíz, até hoje.
Os meus olhos salgados já mal se fecham.
Três raízes fortes esperam as minhas mãos.
Cantarolava baixinho enquanto as suas mãos dobravam com astúcia os lençóis de linho bordados à mão.
- Estes têm que ser tratados com se fossem gente! Levaram-me anos de vida a bordá-los, custaram-me dores nas costas, horas de sono, dedos picados....mas valeu a pena! Oh meu Deus, é um enlevo só olhar pra eles! Tão delicados! Tenho tanto orgulho de os ter bordado, que é até pecado!
A cançoneta de amor, continuava a soar, em solavancos, entrecortada pelos trejeitos de admiração, de cada vez que descobria uma nova peça.
Uma camisa de dormir em tons de pérola com ajurs de rendas aplicados à altura do peito, era agora o objecto da sua atenção.
- Esta camisola!!! Que perfeição! É de organdi tão fino, que parece que não existe, e estas rendas....a linha é de uma tal finura que os olhos queimavam e esgotavam-se em lágrimas de esforço! - via-se ao espelho de corpo inteiro do guarda-fatos de madeira envernizado. A camisa de dormir em frente dela, colada ao corpo como uma outra pele, uma mão aberta à altura do ventre, a outra segurava o cabide pelos ombros. Movia-se numa cadência de matiné domingueira, ainda debitando o bolero de amores cruéis . Sorria, os olhos semicerrados numa indolência permitida pela música.
Ajoelhou-se aos pés da cama, estendeu a camisa de dormir, alisou-a com a mão, ao de leve, quase sem lhe tocar, e com uma precisão geométrica, dobrou-a com cautela e depositou-a na caixa de cartão. Os anjinhos alados, roliços e rosados na tampa da caixa, dedilhavam pequenas harpas, que acompanhavam a voz dela. Deu um laço com as fitas de seda largas cor de uva, meticulosamente e sentiu-se deveras feliz com o resultado.
Todo o enxoval era primoroso, por cima da cama digladiavam-se toalhas de rosto, e panos de chá, robbes de chambre e lençóis monogramados . Bordados delicados, panos de uma leveza que não podia ser deste mundo, cores etéreas , texturas adamascadas, todo um rol de toques de uma sensualidade tantas vezes ensaiada ali naquela cama.
Quando se levantou, pegando na caixa dos anjinhos, como quem pega num bebé recem nascido, sentiu cair alguma coisa aos seus pés. Pousou de novo a caixa, e apanhou um envelope amarelecido do chão, havia ali muitos mais, tombados às dúzias no chão de tacos impecavelmente encerados. O cordel de sisal , antes louro, agora sépia pela acção dos anos, desatara-se e libertara dezenas de cartões pelo soalho.
Apanhou a medo o pequeno envelope manchado aqui e ali por nódoas de humidade do fundo do baú.
Abriu-o e retirou devagar o cartão em papel de boa qualidade. As letras conservavam a cor, um dourado velho ainda brilhante e chamativo. Uma primeira lágrima caiu em cima daquelas letras, daqueles nomes fechados a sete chaves na arca de papelão vermelho e ouro. O liquido salgado caiu e alastrou como uma erva ruim. Em pouco tempo, o papel estava ensopado, e os nomes impressos nele brilhavam com redobrada força.
Era o nome dela, e o nome dele. Quando ainda havia ela e ele...
Era o nome dela, e o nome dele. Um convite. O anunciar ao mundo de um amor finalmente consumado.
Empurrou o cartão molhado para dentro do envelope, e, ainda de joelhos apanhou um a um todos os envelopes caídos. Refez o molho, voltou a cingir o sisal com firmeza e devolveu o embrulho agora recomposto, ao baú.
Os lençóis de linho.
Agora depois dos olhos lavados pelo sal das lágrimas, podiam ver-se pequenas pintas ocre de ferrugem. Talvez das dobradiças da tampa da arca.
As toalhas de rosto, as cobertas, os atoalhados, tudo tinha escurecido um tom acima do original.
Como ela.
Arrastou-se sempre com os joelhos no chão, até ao espelho. Tocou a sua própria cara. A sua boca. Estava seca e descaída. Os seus olhos. Aqueles eram os seus olhos? Ela não se lembrava de ter uns olhos assim...
O seu cabelo. O seu cabelo comprido, lindo, inveja de tantas outras raparigas, cobiça de tantos outros homens...
Mais parecia uma manhã de nevoeiro cerrado. Quando seria que o seu cabelo tinha ficado assim?
Quando teria ela ficado presa dentro daquele corpo que não reconhecia como seu?
Porque é que ele não apareceu à hora marcada?
Sequer se importou que os cartões ficassem todos amarelos.
Deixou o cheiro a mofo apoderar-se do enxoval.
Limpou os olhos com as costas da mão. Levantou-se devagar. A caixa dos anjinhos estava ainda em cima da colcha de renda da cama. Com a mesma cautela de antes, apanhou-a, depositou-a dentro do baú de papelão encarnado e ouro, e fechou a tampa com cuidado.
Baixou os fechos metálicos, verificou, se nada ficara de fora.
Ajeitou a colcha. Aprumou-se frente ao espelho, e saiu do quarto.
Era Sábado, quase hora de jantar.
Não tinha nada preparado. Era melhor apressar-se não fosse ele aparecer.
O Luís e a Tininha eram namorados vai pra mais de três anos.
Amavam-se e faziam planos, como todos os namorados.
"Um dia vamos ter uma casa do tamanho de um castelo, e um carro descapotável, para viajarmos com o vento na cara!" dizia o Luís com aquele ar sonhador que a Tininha conhecia tão bem.
Tinham dezasseis anos e andavam de mão dadas. Caminhavam lado a lado, com o coração no bolso do outro e os olhos postos nos sonhos de ambos.
Partilhavam chupa-chupas de morango e pastilhas elásticas de mentol, comiam sorvetes de limão a meias, e riam de tudo e de nada quando estavam um com o outro.
O Luís tremia de cima abaixo quando avistava o sorriso da Tininha , sentia as mãos a suar e a garganta a ficar seca. O Luís era quase um homem, e queria a Tininha com a força de um homem. Vivia num misto de paraíso e inferno, tal era o desejo que tinha dela.
Sabia que aquele fogo que lhe crescia nas pernas e se lhe espalhava pelo corpo todo mal a tocava, não podia estar muito mais tempo ocultado no seu peito. Temia até pela sua saúde mental. Pensava amiúde que por este andar ia acabar louco varrido.
A Tininha fazia pouco caso dos acessos de loucura e carne com que ele a assediava.
Ria-se e ateava um pouco mais as brasas já incandescentes nas veias do Luís , esquivava-se em gestos ambíguos , e alimentava de palavras o sentimento que os aproximava.
- Já te disse que não! Às vezes és um chato do pior...devias ouvir-me! Até parece que estou a falar pró boneco!
- Mas tu sabes que eu gosto de ti! É só por causa disso...
- Mesmo assim! Se eu já disse que não, é não!
- Tininha ...isso é uma parvoíce , és minha namorada, e eu gosto tanto de ti!
- Não insistas! Vou acabar por me aborrecer a sério!
- Se ao menos me desses uma boa razão....
- Queres melhor razão que o meu querer!?
- Mas....
- Não há mas nem meio mas Luís !
-....eu sei que tu também queres...queres tanto como eu quero....mais parece que estás a judiar de mim...
- Sabes bem que não é nada disso amor. É que....há querer e há poder, e eu não posso...tu sabes. Somos tão novos...
- Agora é a idade...
- É a idade sim! E então? Tu pensas que não te conheço? Depois fazes-me o mesmo que fizeste às outras! E eu não sou elas!
- Lá vem a mesma conversa.....é de ti que eu gosto! Por isso estou contigo!
- ...aposto que repetiste isso a todas elas....
- Tininha , agora quem está a ficar chateado sou eu! O que é que eu preciso fazer para acreditares em mim?
- Jura que me amas mais que tudo no mundo! Jura que morres por mim se eu te pedir!
Tininha não levava a sério os anseios de Luis , mas sentia a urgência nos olhos dele.
Sabia da angustia que os dedos das mãos dele passavam nas mãos dela, nos braços dela.
De uma maneira serena e pensada, Tininha , gostava de o saber assim, sofrido, doído de desejo. Às vezes quando fechava os olhos, também pensava nas mãos do Luís pousadas nas suas ancas, pensava na boca do Luís a amassar a sua própria boca entreaberta. às vezes o cheiro a pinho silvestre do cabelo do Luís imiscuía-se pelas narinas e a sua respiração ficava mais pesada e mais premente.
Mas quando abria os olhos, o mundo à sua volta ficava outra vez cor-de-rosa como um algodão doce nas feiras de verão, e o ar ficava de novo povoado de sonhos de castelos e príncipes .
- Vamos comer um gelado?
- Agora? Estamos aqui tão bem.....vem cá...dá-me só mais um beijo...
- Chega de beijos! Queres de chocolate ou baunilha?
- Não me apetece...queria estar aqui contigo....
- És um pegajoso!!! Anda lá comer um gelado, não sejas chato!
- Está bem. Pode ser chocolate...
Luis , outra vez, guardava o fogo no peito, e em gritos mudos de dor, afogava o desejo num gelado de chocolate.
Acordei cedo.
Ainda antes de o dia acordar.
Não havia sombra de sol ou claridade lá fora. Só um rasto de noite e uns laivos roxos na linha do olhar.
Sentei-me na cama à espera de ver o dia voltar a si. Mas estava demorado. As gostas de água nos vidros denunciavam um amanhecer difícil .
Bocejei. Acendi a luz do candeeiro, vi as horas e deixei-me ficar ali sentada na ponta da cama, os pés no soalho frio, os olhos na madrugada baça, e a cabeça no sono, ainda no sono.
Ouvi um ruído . Era sinal, que aos poucos todo o meu corpo ia despertando da letargia da noite.
Era o vento nas laranjeiras do quintal. As laranjas já estão maduras, se insistir, vai acabar por derrubá-las, e depois vão saber a chão, e já ninguém as vai querer comer....
Esfreguei os olhos com força.
Lá fora a noite não se resignava, e trocava humores com um sol sem vontade para disputas.
Enfiei uns chinelos de lã e aventurei-me até à ombreira da janela de sacada... Olhei o exterior em tom de desafio, e o vento lembrou-me as laranjas a cair da árvore e a rebentar em estrondos de sumo no chão de lajes do quintal.
Chovia menos agora, e a madrugada, envergonhada cedia finalmente às suplicas de cama que o sol lhe lançava.
Apanhei o cabelo sem pressas. Na cozinha, os motores cansados dos electrodomésticos debatiam-se na monotonia dos sons. A chuva parecia ter parado de vez, e era agora só um pingar das beiras dos telhados.
O café acabado de fazer encheu o ar de uma fragrância de especiarias quentes. Inspirei aquele odor até mais não poder e bebi com demora o liquido que me embaciava o olhar e me aclarava o dia.
Lá fora, como num jogo de crianças, estava tudo montado para mais um acto. Tudo no mais perfeito balanço, um jogo de compatibilidades e cedências que desde o berço do mundo regia os vazios dos homens.
Liguei a televisão. as notícias eram como sempre deprimentes, ou não seriam notícias, mas sim eventos. Desliguei, e deixei-me ficar ali, enterrada no sofá, longe da perfeição do mecanismo de bons dias e amanheceres risonhos que vinham pela janela da salinha.
Nunca tinha sentido vontade de fazer parte da engrenagem. Via-me, como sempre me via, uma peça solta que sobrara na hora da montagem.
Apetecia-me voltar para a cama.
Olhei outra vez de soslaio. Vi duas vizinhas a falar na esquina da frente, sorriam em gestos largos, e havia crianças a comer bolos agarradas às suas pernas.
Respirei fundo e fechei os olhos. Só por uns breves segundos pude pensar em sair, levantar-me dali, romper o casulo e atrever-me a bater as asas, a não ter medo de mostrar as cores de mim.
Foi só um instante, um abrir e fechar de olhos, uma amarra cortada.
Ao fim do cais, apenas um grito breve e...voltar atrás, pousar ao de leve, como se nunca tivesse sequer voado.
Levantei-me do sofá. Deixei os chinelos de lã esquecidos no chão, e pé ante pé, tomando consciência do frio que me subia pela planta do corpo, voltei à cama.
Desliguei a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira, deitei-me no mesmo compasso com que pautava as minhas horas, e, cansada de voar, adormeci sentada no cais.
Fotografia de João Palmela
6
A luz da vingança espalhou-se longe, alto, e dentro, até os olhos de Catarina não verem nada mais que o cumprimento urgente daquela promessa pagã.
Alindou o luto com um xaile puído de lã grossa, e passeou-se pelas ruas da vila arrastando os passos descalços e arrastando olhos e línguas no seu caminhar.
Chamaram-lhe louca, tresloucada, demente...mas no fundo de cada ser, bem nos alicerces das certezas, o medo corrompia como uma térmita, e a sombra ia-se derramando sobre as casas.
A caminhada diária enegrecia os dias, o xaile arrefecia os corações, e as portas fechavam-se com um bater aflito à sua passagem.
Catarina sorria por dentro, ela era tão grande quanto o medo que insuflava nos outros. Não! Ela era maior!
Trincos e ferrolhos não lhe chegavam, ela sonhava atear aquele medo com arrependimentos antigos, ela ansiava por joelhos no chão implorando perdões que jamais daria.
Durante semanas a fio, recolheu-se no campo aberto que era a sua casa, como um gato que finge dormir, quando se prepara para atacar a presa.
Suspiros de alivio, varreram da vila restos de sombras nas ombreiras das portas, e as janelas acolheram de novo os raios de sol.
7
No campo colado à seara de trigo, nas margens da ribeira do Lucefecit , não havia mais luz que a que a sombra dá.
Catarina rangia os dentes enquanto tingia de encarnado a correnteza fraca que fugia assustada.
A navalha ferrugenta, que encontrara debaixo do colchão de palha, no cabanejo onde o pai um dia dormira, aliava-se a ela. Fria e de fio arrancado às pedras, rasgava a pele áspera do animal e embaciava-se dos hálitos quentes de dentro deles.
Esperou o sol desaparecer. Entulhou uma saca de estopa rija com o ganho da sua labuta, e sem descuidar o xaile negro como ela, rumou à vila.
As casas estavam apaziguadas pelo fim de mais um dia de trabalho, quando o ruído cavado, dos passos arrojados, repassou paredes e entupiu de temor as almas desprevenidas.
Lembrou-se das caras dos homens que a tinham desfeiteado no meio de estevas e alecrim, como se estivesse a folhear um álbum de fotografias de família . Sabia-lhes os números das portas, melhor do que lhes sabia as feições, e, num porta a porta sem pressas, foi depositando em cada soleira bocados de vingança ainda servida quente.
O amanhecer na vila, foi de trevas e por todo o lado os olhos estalavam de indignação, e as gargantas latejavam de orações.
Os homens que caçavam Catarina, espreitando-a no meio das moitas, calavam a sua culpa. Aquilo era como um sinal de nascença, daqueles que não se podem ocultar do asco dos outros.
Coelhas prenhas esventradas, tingiam de tintas berrantes, os mármores dos portados. Amontoados de peles baças da cor da morte atestavam um a um os artífices do vazio de Catarina.
8
Nunca ninguém a viu. Não havia vivalma que pudesse afirmar que os feitos tinham sido arte sua.
Os homens não mais voltaram aos campos. Catarina não mais voltou à vila.
Diluiu-se nas águas da ribeira, na lama das chuvas, no canto dos pássaros.
O mundo aos poucos convalesceu e as imagens daquela manhã vermelha de Janeiro, foram caindo no regaço das avós que contavam estórias antigas nas noites de Inverno passadas em frente do lume de chão.
Ás vezes uma brisa gélida encana pelas ruelas, e não há quem não procure à sua passagem a presença antiga de um xaile negro a arrastar-se nas calçadas.
Catarina paira no ar, como o cheiro a café acabado de moer na mercearia do largo. Gosta de ouvir sussurrar o seu nome, baixinho, não vá acordar ventanias.
A casa das velhas, onde viveu algemada por regras durante alguns dos seus verdes anos, continua lá, inteira, naquela mesma esquina de sempre, em frente à igreja.
Tem as paredes cheias de musgos e fungos da humidade que emana, o sol, não a aquece, e à sua volta há noite e sombras em pleno Agosto.
" Nas manhãs depois da chuva, há peixes a sair por debaixo da porta da frente, e nas tardes de verão, durante a hora da sesta, diz quem já viu, há dezenas de coelhas paridas a escavar tocas no quintal dos fundos." - conta a avó Morgada de olhos esbugalhados.
Imagem DevianTart
Hoje vou falar um bocadinho da minha terra.
Não propriamente para exaltar as suas conhecidas belezas, mas porque me lembrei de dias que ficaram pra trás, e que nestas datas nos trazem alguma saudável nostalgia.
Hoje é dia de S. Martinho, é dia de, conforme manda a proverbial tradição "ir à adega e provar o vinho". As uvas colhidas em Setembro, maceraram o suficiente para nesta altura se poder provar um ainda áspero mas já temperamental vinho, mais o branco, que matura mais rapidamente , mas para os corajosos, também o tinto.
No entanto, é razão para se dizer que também para o Santinho que elogia o Outono e a riqueza dos campos, a tradição já não é o que era. A minha antiga e vistosa vila cheia de pequenas adegas com vinificação própria, cheia de cantares ao fim da tarde, quando o vinho novo já gozava nas tascas, deu agora lugar a uma bonita mas envergonhada cidade, onde o esforço da modernidade tem aos poucos decepado anos e anos de estórias que já só podemos ver nas memórias faladas de alguns poucos.
Ainda me lembro bem, do cheiro das adegas...
Apesar do acesso a estes círculos não estar vedado às mulheres, não era hábito ver alguma por lá.
Mas no dia de provar o vinho, lá na escola, enchíamos o peito, grupos de rapazes e raparigas e aventurávamo-nos de taberna em taberna, às vezes, como era o meu caso, só pra entrar e molhar os lábios no azedo do liquido.
Havia cacholeira assada, e castanhas, e batata doce, e nacos de pão e queijo de ovelha curado e a saber a cardos. Havia tilintar de copos de vidro, e homens rudes de mãos grossas e voz moura e quente.
Cheirava ainda a mosto, e a humidade, um daqueles cheiros que chega pra dar vida a um morto. Os balcões eram negros, de madeiras puídas e velhas que estavam gastas de tanto beber. A música de odores, paladares e sons entrava-nos mal passávamos a porta da entrada e permanecia muito pra lá da despedida.
Havia o Julião, o Cagão , o Zé de Sousa, o Chico Brites, e tantas outras tabernas que se enchiam de cantares e rimas de improviso neste meado de Novembro.
Nas portas onde antes moravam os generosos jorros de vinho novo, estão agora lojas de artigos orientais, e outras quinquilharias que vão apagando do mapa de Reguengos todos os vestígios de antes.
Nem sei se alguma taberna digna desse nome existe ainda nas ruas da cidade. Existem Adegas /Restaurantes, aos montes, rústicos qb , decorados de artefactos alentejanos, com ementas cheias de porco preto e migas e açordas, porque é fino, mas não têm, não podem ter a aureola de autenticidade entranhada nelas.
Há poucos dias, o meu filho, veio perguntar-me se eu conhecia lendas Alentejanas. Eu lá lhe falei de umas quantas que ouvia contar desde sempre, umas que estão nos livros, outras que só estão nas velhas e nas ruas.
Hoje, neste S. Martinho, estou aqui sentada, a escrever sobre a vivência desta data aqui, e vieram-me à lembrança alguns bêbedos, que já não estão entre nós, e hoje até parecem lendas, o Papa Cachola, homem rude e grosseiro, que em novo manteve uma paixão assolapada por uma jovem, que a dias de consumar o casamento renunciou ao amor terreno e se entregou nos braços de Deus, entrando para um convento, o Papa Cachola, lá foi afogando as mágoas com muito vinho ao longo de toda a sua vida, até que um dia, decidiu fazer as pazes com O lá de Cima, e resolveu ir a pé a Fátima com um grupo de peregrinos cá da terra, por ocasião do 13 de Maio. Rezam os que assistiram, que o bom do homem, quase no termo da caminhada, quis pôr também termo à sua vida, saltando de uma ponte. Mas ao ver que o rio estava seco, e que lá abaixo o que havia era um monte de pedras e pedregulhos, resolveu que seria demasiado doloroso, e lá prosseguiu até ao fim da jornada, sempre acompanhado pelo seu fiel companheiro de todas as lutas: o tinto.
Outro era o Salinhas, se não me engano era pintor de profissão, e versejador de todos os dias e copos. Apesar das rimas pouco felizes, era um homem sempre bem disposto, fruto especialmente das suas "rezas" em todas as muitas "capelinhas" da vila.
Conta-se que uma noite em plena praça do Papança , gritava de peito aberto: "Esta noite, nã me dêto !!" no mesmo instante aparece uma patrulha da GNR local, ao que ele continua dizendo "mesm'agora me vô dêtari !"
Bem, agora pra afogar a nostalgia destas lembranças, vou comer castanhas assadas, e beber um copito de tinto.
Boas Noites
Imagem: Fotos Sapo
4
O pai morreu na Terra. O coração que há anos batia contrariado, parou.
Andava a semear trigo.
Uns caçadores encontraram-no, deitado de bruços, com a boca cheia de terra e as unhas cravadas no chão vermelho.
As velhas vieram dar-lhe a notícia à escola. Pranteavam tingidas de preto e de mágoas que não eram suas. Catarina esbugalhou os olhos, e deixou-se levar por aquelas mãos frias de corvos.
Paramentaram-na de negro da cabeça aos pés, enquanto lhe rezavam a excelência do defunto, como pai, marido, trabalhador aguçoso e amigo inteiro.
Os lamuriosos ais, lembravam a Catarina os balidos das vacas a parir em noites de tempestade, e não conseguia deslindar se sentia mais dó do pai morto, estendido no caixão de pinho, ou das velhas que de desfaziam em caudais de água doce.
Para Catarina o pai nunca fora vivo. A única diferença era que antes estava morto dentro da carcaça que era o seu corpo, e agora estava morto dentro daquele caixote de madeira ruim.
Por isso, não sentia mais tristeza, ou queixume, nem menos. Os dias continuaram como até aí, na mesma cadência de passos vazios e silêncios.
Esta falta de reacção, foi tomada por desprendimento por uns, outros houve que asseguraram de imediato a insanidade mental da criança.
As velhas agarraram nela, e sob a secreta mas ténue esperança de verem ali uma rapariga, levaram-na pra casa, e induziram-lhe uma formação intensiva lançando Catarina num corrupio de tarefas que cintavam mais as suas angustias, e agigantavam o nó de revolta que lhe engasgava as horas.
5
A adolescência chegou em bicos de pés, sem avisos, e, o animal que as velhas alimentaram e criaram dentro do peito de Catarina, cresceu e preparava-se para desferir todo o veneno destilado numa dose única de abandono.
Aos 12 anos, pegou na trouxa negra que adoptara como uniforme, e foi-se tão de repente como tinha chegado.
Regressou ao campo, regressou à vida. Dormia debaixo das copas das árvores, por cima do chão húmido que a chamava como antes quando era ainda uma semente enraizada e forte.
Tornou-se implacável como as estações do ano, sempre a fazer o que queria, quando queria, e quase sem dar por isso, foi largando a pele de serpente escorregadia aos pedaços debaixo dos seus pés.
A emulsão de pés de vento foi tomando forma, e com a força brutal de uma trovoada de Maio, a rapariguinha esguia e seca, deu lugar a um ser diferente, feito de contornos reais e carnudos, que primeiro a amedrontaram e quase em simultâneo lhe deram a noção do tamanho da fúria que ardia nos olhos dos homens.
E o seu campo era também o seu corpo. E a sua cama era também a dos homens que vinham em busca de relâmpagos gemidos no meio do pasto alto.
E Catarina viveu de trocas que deixavam na boca o travo azedo do campo vazio.
Os olhares de espanto e perguntas eram já olhares de raiva mal contida nas palavras ditas em surdina.
Era virtuosa nos corpos dos homens, era bruxa na boca das mulheres, era puta nas vozes ecoadas na vila.
A terra fria de Novembro, acordou-lhe a dureza da vida e asfixiou-lhe o ensejo de voar mais alto. A simplicidade dos dias de outrora, desvanecia-se no mundo, e Catarina cada vez mais vezes aquecia as mãos na fogueira baça da solidão.
O frio que lhe vinha de dentro, ameaçava tomar conta do astro, e transformar em gelo todos os seres que olhassem a imagem negra curvada como um junco num charco ao fim de uma semana de chuva.
Já sabia de cor as ervas que expulsavam almas inocentes do seu corpo doído, conhecia como a palma da mão, a toca onde se acocorava em banhos de sal e sangue, e de onde saia mais vazia, mais pálida, quase uma sombra.
Mas as sombras crescem com a claridade, e inundam os caminhos de cabras ao pôr do sol.
As sombras acolhem os males e afagam as vinganças.
(continua...brevemente...)
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Não havia memória de um dia, naquela magra vila, em que não tivesse sido pronunciado o seu nome.
Anos e anos de peripécias, envolviam-na numa espécie de halo mítico, que tornava a sua, uma história em tudo igual a tantas outras impressas nas páginas de um qualquer livro de lendas antigas.
O seu nascimento, as escadas íngremes da infância, os amores e desamores da adolescência, a queda na vida adulta. Tudo se conjugava num único verbo, singular e solitário de engrandecimentos de boca em boca, e vazio dentro da casa onde morava, ainda.
Ouvia contar de si, como quem ouve o relato de um filme que acabou de passar na televisão. Via-se sempre no papel da heroína , forte, bela, sobrevivente. Via-se sempre assim por fora dela, por fora de si mesma.
Os pontos acrescentados à teia de eventos, eram tantos e tão espessos , que não havia olhares que resistissem à sua passagem pelos passeios empedrados. As vozes calavam por instantes os seus infortúnios , e a pena que as suas expressões debotavam, feria-a fundo, no corpo tolhido pela força dos elementos. Ou então não. Feria-a no sítio onde antes tinha acalentado um pequeno ego, que cresceu depressa até sufocar de tanto ar, até arder como uma Fénix que se zangou com os homens e se recusou a renascer.
2
Era ela Catarina das Graças. Não era uma velha, também não era nova. Era uma mulher que tinha a idade exacta dos seus dias, e os seus dias eram do tamanho da sua existência, e a sua existência pairava, mais do que era.
Nascera com a morte da mãe. O primeiro grito de uma foi o último da outra. Uma só alma, que abandona um corpo, porque se enamora de outro.
Cresceu na casa do pai, mas fora do colo dele.
O pai era um homem duro e pouco dado a afectos, que nunca conseguira lavar da boca o sabor amargo do dia em que a filha chegara a este mundo de Deus.
Trabalhava a terra com avidez, e se algum calor sobrara em si, era a ela que o dedicava. A terra era a sua única amante, que o esgotava de toques e o esvaziava de forças. A terra sugava-lhe o suor do corpo e a vida do olhar.
Catarina cresceu na terra, livre como os coelhos, a correr pelos campos, acossada pelas raposas e outros bichos das sombras. Comia flores e mordia ervas frescas, nadava nas ribeiras que corriam depressa nos meses de Primavera, por entre os baixios do terreno, e dormia sestas coberta apenas com o calor do verão ou o frio do Inverno. Era do campo, como outros são da lua. Não sabia outra fala, não percebia outra vida que não fosse essa.
3
Entre ventanias e trovoadas, Catarina foi crescendo à margem das gentes, à reveria de regras, ao contrário das leis dos homens, que a cada bater de porta, mais se ausentavam da sua presença no mundo.
completados os 6 anos, entrou na escola, e livros dentro foi trilhando caminhos de descoberta. A carteira de pau, sovada e castigada de tabuadas cantadas em coro, abrigava-lhe os primeiros medos. Medo das pessoas que agora lhe apertavam os seus dias, medo das horas contadas com esforço no relógio por cima do quadro preto, medo daquelas paredes pálidas e opacas que eram o limite do seu campo.
O seu campo tinha ficado lá fora, solto, livre e verde, farto de terra e água e passos de bichos.
Sonhava acordada, e abalada, acordava de sonhos que não o eram.
Um dia de sol morno, logo depois do almoço engolido à pressa debaixo do telheiro da escola primária, cerrou os dentes e calou-se. Abriu os olhos para o mundo com que lhe queriam entulhar a alma, e como uma escolha que se faz por querer, calou-se.
Não é certo o tempo que durou tal situação. Uns falam de dias, outros de meses, os mais audazes arriscam anos.
Enquanto o silêncio não se quebrava por dentro, o burburinho de vozes e sons crescia como cogumelos no tronco de árvores na estação das chuvas.
Havia dedos apontados, murmúrios que eram quase sussurros, segredos expostos, e prosas inventadas com pormenores arrancados pela raiz à laia de dentes inúteis.
Aquela criatura, pouco maior que um cão vadio, ia assim, tomando conta do ar, das casas e de todos os poros da vila.
(continua...brevemente)
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