Segunda-feira, 31 de Dezembro de 2007

Monsaraz é um navio

Tudo o que a vista alcança...

 

 

 

 

 

 

....e tudo o que a alma inflama!

 

Fotografias : Leonor Fernandes 

música: Cante Alentejano
sinto-me: da terra
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Original Zumbido por meldevespas às 11:04
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Quarta-feira, 26 de Dezembro de 2007

Sem rede

Dá-me a tua mão.

Só assim consigo. Dá-me a tua mão, e de vez em quando aperta com força, para eu não me esquecer que estás aqui, que não estou sozinha.

Nunca gostei de estar só.

Em criança, quando a noite caía, e as luzes se apagavam, o silêncio estava sempre carregado de estranhos rangeres que me estalavam nos ouvidos e me enchiam de medo.

Quando a noite caía, e as luzes se apagavam, como um animal do escuro, percorria a distância entre os dois quartos, pisando os mosaicos gelados, um pé, depois outro, numa marcha certa e precisa, e de joelhos na beira da cama, procurava a mão da minha mãe.

A silhueta mexia-se ao de leve, e voltava ao sono profundo logo de seguida.

Eu ficava de joelhos, ali, encostada na madeira dura, finalmente em sossego. A minha mãe dormia, podia vê-la, perfilada na luz da lua coada pelos estores entreabertos.

Era só na escuridão que as pontes se estreitavam. Durante o dia, as ruas eram largas, e o meu espírito ávido de descobrir recantos e espicaçar esconderijos recondidos.

Agora, mesmo de dia, só há pontes, arames esticados...arames sem rede.....e becos escuros.

É por isso que não posso...não consigo ir sem ti. Se me deres a tua mão, como sempre dás, assim, a apertar devagarinho, e às vezes com força, se fizeres assim, posso olhar em frente e confiar.

Subia para o colo do meu pai. Primeiro para cima de uma cadeira , e depois para o colo do meu pai. Era uma aventura! Uma escalada em segurança. O mundo a meus pés, sem dores, sem mágoas, sem ferir nada nem ninguém.

Depois cresci. Como? - Não sei, ninguém sabe como cresce. Cresce e pronto. E quer muito crescer! É toda a gente assim...

O desejo de tocar o céu, leva os ramos fracos a afastarem-se dos troncos protectores. Mas o céu não é dos ramos, nem dos homens. O céu deve ser dos pássaros, e de Deus.

Vamos? Agora é só pontes estreitas, vês? Caminhos de pedras escorregadias, estradas de declives pronunciados, e escarpas tão altas e íngremes que nem se vê o fundo.

As crianças perderam-se? A inocência está a perder-se...eu sinto que sim. Já não sou capaz de dar um passo sozinha no escuro. E tu?

 

Fotografia Fotodependente

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Original Zumbido por meldevespas às 22:59
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Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2007

Gabriel - O Anjo (Conto de Natal)

Gabriel queria voar.

Era mais que um sonho. Era uma vontade que o perseguia e lhe norteava os dias.

Não sabia bem como, nem quando tinha começado aquela fixação , a que os outros chamavam mania. Para ele era quase uma marca genética . Ele era um pássaro sem asas.

Quando era criança pequena, ainda lá na terra, a mãe costumava vesti-lo de anjinho, por altura da procissão da Sra. da Boanova . Era logo depois da Páscoa, quando as estações do ano se debatem, e os céus incham de água e electricidade. Sorria sempre que recordava aquelas caminhadas, tantas vezes debaixo do ribombar dos trovões, e por cima de um chão de terra lamacenta, que ensopava as bainhas das imaculadas túnicas brancas da legião de pequenos anjinhos.

A mãe, vestia-lhe aquela opa branca pela cabeça. Leve e a cheirar a bolas de naftalina, dava-lhe uma dobra nas mangas compridas, para estas não chegarem à chama da vela, e com aquelas mãos sábias, atava-lhe à cinta um cordão grosso de cetim cor de pérola, e tufava bem o tecido, de molde a evitar tropeções e quedas.

Por fim, lá vinha a melhor parte, a mais aguardada por ele. A mãe colocava-lhe às costas, presas por grossas tiras de tecido de sarja forradas a tafetá brilhante, umas asas....

umas asas de finas penas brancas como a neve nos postais de Natal, que a Tia Ludovina mandava da Suíça !

As asas de penas brancas, eram pesadas e pouco confortáveis, mas para Gabriel, eram o ponto forte de todo aquele aparato. Ele tinha umas asas! Não atingia, como podiam os pássaros voar com umas asas assim, tão pesadas! Mas um dia ele também seria capaz!

Quando o S. Pedro se zangava, dizia a mãe, vinham a chuva e a trovoada, estragar a festa. A procissão desenrolava-se em passo apressado, os fieis corriam atrás dos andores, e as imagens dos santos chegavam ao santuário, cambaleantes , desalinhadas, e encharcadas. 

As crianças logo atrás do andor da Santa e do Pároco da Freguesia, inundavam as alas da pequena igreja, afogueadas pela correria, e pela adrenalina da salva de foguetes que media forças com os trovões do S. Pedro.

Gabriel era o oposto da figura de um anjo. Cabelos negros, escorridos para a cara pela força água, a tez morena, habituada à liberdade dos campos abertos, a opa branca enlameada até à altura dos joelhos, e as asas....as asas pingando em fio, deixando poças de água no chão de xisto cinzento escuro da igrejinha.

Ainda assim, ele sentia-se grande, as costas doridas do peso, as fontes a latejar de dor, a garganta cheia de espinhos, os pés a chapinhar dentro das botas de lama...e ele sentia-se grande!

Nunca como naqueles tempos felizes e distantes ele estivera tão perto do seu querer. Nunca estivera tão certo de poder voar, como quando a mãe lhe colocava, com um sorriso seguro, e as mãos macias, as asas de penas brancas.

Agora, hoje, sentia a realidade apertar-lhe a garganta, ao ponto de ser doloroso até o acto de respirar.

Sabia-se de mãos atadas atrás das costas. Aquele apartamento para onde voltava todas as tardes depois do trabalho na repartição, estava a ficar cada vez mais tacanho, e mal podia mexer-se ali.

Há anos que se mudara para a cidade. Só com o pai. Fora pouco tempo depois da mãe ter morrido às mãos de uma doença má.

Para Gabriel a cidade era um nó que se cingia mais e mais a cada passo dado. Muito diferente da largueza do campo, da liberdade das corridas nas ruas da sua aldeia.

Mas tudo isso ficara longe. Lá atrás, há muitos anos.

O pai era homem de poucas palavras. Fora sempre assim. Era um homem fechado,  não o conhecia de todo.

Gabriel só queria voar dali para fora.

Por muito que a cidade o limitasse, não tinha conseguido tirar-lhe a capacidade congénita de querer voar. Passava horas à janela. Aquela janela de sacada era a parte mais entusiasmante de toda a sua existência presente.  Passava lá horas, sentado, ou de pé, a observar os pássaros. sabia de cor os fluxos migratórios, as espécies, as cores, as características de voo...tudo!

Agora, hoje, ali naquele 4º andar, à janela, na janela, tinha o mundo a seus pés, e sabia exactamente o que fazer. Tinha toda a sabedoria de anos e anos de estudo atento. Tinha a conjugação perfeita de saber e querer. A direcção do vento era a que esperava.

- Abre a porta! Agora! - a ordem soava num tom aflito, e a porta quase cedia aos murros e safanões. As paredes finas estremeciam, e a voz era agora rouca e de súplica - Por favor Gabriel, abre a merda da porta!

A porta cedeu no momento exacto em que Gabriel abriu os braços.

- Nããooooo !!!!!!! - o pai correu desvairado para a janela aberta na noite, agarrou-se às barras de ferro, onde um segundo antes Gabriel tinha apoiado os pés, e debruçou-se à procura do filho.

Lá em baixo a vida corria como sempre. Pessoas iam e vinham. As vésperas de Natal eram denunciadas aqui e ali pela quantidade de sacos, e pelos risos de excitação das crianças pequenas. A noite descia calmamente, e o burburinho de formigueiro do dia a dia, começava a sossegar aos poucos. Lá em baixo na rua o buliço evaporava-se.

O pai, de olhos esbugalhados de tanto procurar em vão, lentamente, endireitou-se, e sempre com as mãos nas barras de ferro frias, olhou o céu.

Nas antenas de televisão dos prédios em frente,  alguns pássaros de passagem por estas paragens frias, preparavam-se para passar a noite.

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música: There Must Be an Angel (Playing with My Heart)-Eurytmics
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Segunda-feira, 17 de Dezembro de 2007

O Príncipe da Colmeia

Parabéns Zequinha!!!!!

12 Anos!!!

 

Todos por aqui, já conhecem o meu Zeca, e esta é a minha homenagem ao meu rapazinho, que me enche a cabeça de problemas, que me moi o santo dia, que me chateia até aos limites da insanidade e que apesar de tudo.....eu AMO tanto tanto ( e sim! sou uma mãe babada

"Não quero, não quero, não,

ser soldado nem capitão.

Quero um cavalo só meu,

seja baio ou alazão,

sentir o vento na cara,

sentir a rédea na mão.

Não quero, não quero, não

 ser soldado nem capitão.

Não quero muito do mundo:

quero saber-lhe a razão,

sentir-me dono de mim,

ao resto dizer que não.

Não quero, não quero, não,

ser soldado nem capitão."

Eugénio de Andrade

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Sexta-feira, 14 de Dezembro de 2007

Livre...

 

Rebolavam-se por detrás das estevas, sem fazer caso das pedras, e da humidade da terra, entregavam-se a gestos apressados, urgentes, escondidos.

Ela soltava gritinhos histéricos a denunciar o desejo em quarto crescente. Ele murmurava por entre dentes  mantras antigos, palavras pagãs , enquanto  lhe puxava as sais pesadas para cima. A respiração de ambos era ofegante, corrida, o vislumbre da meta depois de uma espera amarga.

Joaninha e Xavier, tinham-se escapulido de perto do grupo de trabalho. Com desculpas diferentes, e por caminhos opostos, desapareceram dali já com o encontro marcado para aquele lugar. Quando lá chegaram, mal conseguiam respirar, tal era a excitação e também o temor de verem o seu segredo a nu. Abraçaram-se em gemidos, e amaram-se na terra molhada pelo orvalho da manhã.

O Monte do Enforcado, era nesta época, o ganha pão para a maior parte das famílias das aldeias ali em redor. Eram olivais a perder de vista, vales e encostas de árvores carregadas de frutos grados. Este ano a apanha estava atrasada, a falta de água obrigava patrões e moirais  a esperar um pouco mais pela altura certa.

Era o principio de Dezembro, e os trabalhadores iam chegando, uns a solo, outros em magotes, alguns em família. Estendiam os panos de serapilheira grossa e áspera por baixo das oliveiras e com paus altos varejavam as árvores arrancando-lhes as azeitonas perfeitas e sãs . As escadas em tesoura por baixo da árvore, ajudavam a tirar dos ramos os frutos mais teimosos que  recusavam  cair.

O varejar mais parecia o som de dezenas de bandos de pardais a bater as asas em silêncio numa tarde de primavera.

Os campos estavam salpicados de gente nessa manhã. Caras cansadas, semblantes pesados, roupas carregadas que era o mês do caramelo, e o frio chegava aos ossos com a rapidez de uma faca afiada.

 

Regressaram, com os corpos em paz, sempre com o cuidado de aparecer aos outros em separado.

- Já tás mais aliviada rapariga!! - gritou o moiral , estranhando a demora.

- Oh se estou Ti Jacinto!! Muito mais aliviada !! - respondeu a Joaninha, lançando o cabelo para trás , com uma gargalhada sonora.

A Joaninha era uma rapariga fogosa. Solteira e sem compromissos com ninguém que não fosse ela própria. Era nova e tinha um corpo inteiro e duro que virava a cabeça dos homens, a Ti Estrudes Marmela , estava sempre a repetir que ela tinha o diabo no corpo.

Exibia as ancas redondas e generosas num andar que fazia balouçar as saias pesadas e os olhos dos homens quando ela passava. E em jeito de desafio, empinava os seios  fartos, engasgando as palavras de todos quantos a ela se dirigiam.

Pouco passava das 10 da manhã. Era a hora da bucha, todo o  grupo se sentava ali por perto, abriam-se os tarros e as marmitas, comia-se qualquer  tapa-buracos ", e aproveitava-se o tempo para descansar as costas cansadas de andar dobradas, debruçadas sobre o pano escurecido. Havia sempre alguém que puxava de uma moda, e a música dolente, por momentos encantava os pássaros e outras criaturas do campo.

O Xavier, comia, cabisbaixo, os olhos cravados no naco de pão com toucinho salgado, e na navalha. Ao seu lado a mulher, Catarina observava-o com desconfiança - aquele homem andava tão ensimesmado, que até parecia que trazia a alma enegrecida - pensava ela muito amiúde nos últimos tempos.

Catarina estava sentada numa pedra maior, que  Xavier tinha arrastado para esse propósito. Tinha as pernas abertas e uma manta de lã escura pelos joelhos. Já mal conseguia sentar-se quanto mais andar ali dobrada, esta era a última semana que vinha, já tinha dito ao marido que assim com o bucho cheio, ainda lhe nascia a criança debaixo de uma oliveira!

A Ti Estrudes Marmela , o Ti Jacinto, o Inácio, a Branca e a Joaninha, tinham acabado a cantoria e riam agora a bom rir com os sonhos da Branca:

- Ai Jesus, eu nã peço muito, nã senhora! Um olival piqueno , um cordão de ouro e uma casinha pra eu morar mais o mê Toino!

- Um cordão d'ouro ! Homessa! E inda dizes que nã pedes muito - atiçava-a o Ti Jacinto - Atão e tu Xavier, homem de Deus estás mais calado que a morte!  O que queres tu da vida, hã!?

-.....eu.....bem....quero o que toda a gente quer.....acho eu...

- Saúde! - saltou-lhe Catarina em defesa - Saúdinha e paz prá nossa família ! O que há-de agente querer Ti jacinto. A gente é pobre, nã pode pedir muito mais que isso!

- Nisso tens tu muita razão Catrinita , aos pobres tem que lhe bastar pão e canseiras, que os sonhos são prós outros!

- Pois eu não quero ouro, nem olivais, nem casas, nem saúde...a única coisa que eu quero é um homem...um homem a sério, que me sossegue! - disparou Joaninha diante do olhar perplexo de Catarina, do susto de Xavier e dos risos altos do resto do grupo.

Enquanto falava, Joaninha, destemida, nem por um segundo descolou os olhos do Xavier.

Xavier empalideceu. Faltou-lhe a coragem para olhar para Catarina em busca de compreensão, para as palavras tolas da outra. Calou-se, branco como a geada, e o nó que sentia na garganta, era toda a vergonha que lhe incendiava o ser.

Como podia? Como ousava?

Como se permitia que aqueles olhos de azeitona galega o olhassem assim, como deixava aquele ardor subir-lhe pernas acima e inflamar-lhe o corpo, mesmo ali, na frente da mulher quase a parir !?

A Joaninha não era de ninguém! Só queria usurpar-lhe o prazer, sugar-lhe toda a lealdade que tinha para com os outros, enlamear-lhe a honra de ser um homem honesto.

Não havia cão nem gato que a quisesse fora dos lençóis , não havia vivalma por aquelas redondezes que não conhecesse a índole dela! Todos sabiam que o homem que a tomasse para esposa seria um cornudo!

E ele ali estava...todo a tremer por dentro, confrontado com a degradante verdade que lhe apertava o coração...ele queria ser o cornudo! Ela queria-a só pra ele, e pouco lhe importava o que diriam os outros, família , amigos...nada! Ela era uma puta , uma cobra, mas ainda assim ele sofria de uma dor imensa só por causa dela....

Mas Xavier sabia que a Joaninha era do vento e do prazer, era so sol e dos lençóis , era da chuva e da terra molhada..mas não era dele.

Ás vezes tinha vontade de desaparecer dali, pôr uma corda ao pescoço e pendurar-se duma oliveira... morrer longe dos olhares dos outros, longe do olhar de azeitona galega...

Ás vezes....

- Xavier, acorda homem de Deus! Agora deu-te pra dormir de pé! Anda lá tá na hora de enregar !!! Anda lá, até a adiafa estar acabada, temos muito que batalhar!

Catarina abanava-o com força, o resto do grupo voltava já ao trabalho, e Joaninha queixava-se do calor enquanto desabotoava sem pressas, mais um botão da camisa grossa, com os olhos cravados nele.

Era o mês do caramelo, e Xavier ardia em febre.

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Segunda-feira, 10 de Dezembro de 2007

Pim Pam Pum está a crescer!!!

 I

Já estão dois a abanar

outros mais lhes seguirão

parece que estão a dançar

ao som da mesma canção

 II

-Mãe, olha! estou a crescer

o meu dente vai cair!

Vou ficar envergonhada

quando o sol me vir sorrir!

III 

-Vai valer o teu sorriso

Isto que te vou contar:

Também o sol, já teve

um dentinho a abanar!

IV 

Era ainda pequenino

Cabia na tua mão

Mais parecia um pirilampo

Mal aquecia no Verão!

 V

Agora que já cresceu

Tem um sorriso brilhante

A lavar bem os dentinhos

Ficas como ele num instante!

 

 

 

 Ilustrado por Pim Pam Pum

 

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Domingo, 9 de Dezembro de 2007

Diz que sim!

A minha amiga Lua do Asas para Voar, deu-me este prémio maravilhoso, que aqui quero publicamente agradecer, e passar a todos os que no meu parecer o merecem, parece que tinham que ser só sete, mas nisto dos afectos, sou uma mãos largas e não consigo escolher. Vai daí, que os meninos da lista que se segue acabaram de ser distinguidos pelo Meldevespas, com este magnífico galardão:

- Hold on Weee

- Pralemdalinhavermelha

- Open Door

- Estante de Livros

- Tótó da Cabeça

- Mais Astuto

- Espaço Rosa

- Conteúdos

- Asas para voar

- FotografiaJoãoPalmela

- A Ver Navios

- Irracional

- The Carpz

- Contelação das Letras

- Lost in Portugal

O prémio é para passar a 7 blogues que tenham a v/ sincera perferência, e que façam parte das vossas visitas diárias.

Beijinhos Grandes para TODOS

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Quarta-feira, 5 de Dezembro de 2007

Romance de Cordel

Mariazinha levantou-se de supetão, derrubou no seu gesto, o livro de capa castanha que tinha no regaço, e a manta de viagem que lhe cobria os joelhos. O xadrez verde e branco derramou-se no chão, morto pela pressa do impulso.

Correu para a pequena janela da salinha de leitura, que dava para a rua das traseiras da velha casa.

O som metálico da campainha de uma bicicleta a pedais arrancou-a de viagens, e beijos arrebatadores do seu romance de cordel.

Três toques, como era habitual, três toques era a senha para olhar a rua.

Afastou com força as cortinas curtas floridas, e o estampado amarelo torrado encolheu-se todo a um canto da janela, temendo tamanha impetuosidade.

Espreitou , tentou em vão levantar o trinco de ferro da portada, mas a ferrugem acumulada impediu-lhe a vontade. Irritada viu a roda traseira desaparecer na calçada de granito cinzento, que brilhava com a força de um diamante à luz fria do sol de Dezembro.

Baixou os braços, numa fúria contida de desespero e desilusão.

- Agora só amanhã...raio da janela!!! Juro que se não te abrires amanhã, parto-te! Ouviste bem! Parto-te em pedacinhos tão pequenos, que ninguém vai reconhecer neles o vidro de uma janela!

Gritava com a janela. Mas a janela não podia ouvi-la, não podia saber a raiva que crescia na garganta da Mariazinha. Aquelas duas canas que lhe engrossavam o pescoço esganavam-lhe a voz, e tolhiam-lhe a razão.

Voltou para o sofá puído , mas ainda assim de porte nobre, de um veludo adamascado rosa velho, empalidecido pelo dias.

 Agarrou os joelhos com força e permaneceu muito tempo assim, toda dobrada, em cima do cadeirão, como uma almofada decorativa, imóvel, absolutamente imóvel.

Mergulhou numa inércia, que conhecia de outros dias, não se atreveu a levantar a cabeça do conforto das pernas, do calor do abandono, e deixou-se ficar ali, a esvaziar-se aos poucos, da raiva, do desamor, das esperanças de há pouco.

Nos romances de gosto duvidoso, que sorvia de olhos esbugalhados e coração em tempestades tudo era mais fácil, agora, neste preciso momento, ele chegava, jogava a bicicleta com estrondo e descaso no passeio da rua, e arrombava a porta fraca com os seus braços duros e queimados do rigor das estações. Depois em dois passos largos alcançava-a no sofá e levantava-a como uma pena, sem hesitações e com a firmeza de um deus de pedra. Seguiam-se beijos lascivos e trocas molhadas, e acabariam no meio do soalho arrastados por enxurradas de orgasmos...

Abriu os olhos em transe. A salinha continuava ali, na penumbra do estampado amarelo torrado das pequenas cortinas acanhadas, que coavam o tímido entardecer. Ela também. Continuava ali, sozinha , enrolada em si própria, encolhida, o corpo todo em ondas de dor, o peito dormente de mais um dia sem vida.

Apanhou do chão o livro da capa castanha, procurou na amalgama de páginas amarrotadas pela queda, o capitulo que estava a ler quando a campainha a interrompeu. A trama não fazia sentido, e os amores eram pardos, a heroína de cores macilentas e o deus de pedra era apenas pó.

Fechou o livro com força, e como se o quisesse apagar das suas mãos, arremessou-o para bem longe, com o ímpeto de um vento norte.

Sabia bem, que tinha que passar uma noite por cima dela para sentir de novo todo o seu ser domesticado e dócil. O coração debatia-se, algemado pela indiferença, os pulmões ardiam sacudidos por baforadas de areia, o cérebro amortalhado pela certeza do impossível .

- Amanhã...amanhã logo cedo, levanto-me e espero aqui sentada.

Mariazinha adormeceu, embalada em sonhos vazios.

Estava sentada num campo todo relvado de veludo azul noite, alto e farto, atrás de si havia um pomar de macieiras...e as maçãs eram campainhas de bicicleta a pedais, que tocavam sem parar.

Escancarou os olhos num repente, e deixou-se ficar na madrugada do acordar, o olhar fixo no tecto branco, percorreu todos os traços barrocos do centro de gesso esculpido em redor do candeeiro de vidro opaco de um azul leitoso. Analisou cada floreado, cada ponta, cada sequência de ramagens brancas.

-Daqui a pouco...três toques- soltou uma gargalhada, depois outra, e sempre num riso frenético , saiu da cama rodopiando no seu eixo, com um sorriso solto e as mãos rasas de esperança.

O livro de capa castanha, já estava aberto, a manta de viagem tapava os joelhos, e Mariazinha enterrada no velho sofá, mantinha os ouvidos na rua das traseiras.

Ela sabia que não tardava. A hora era aquela, já ouvia o pedalar, o deslizar da corrente oleada, era agora.....três toques!!!

Mariazinha, dum salto, repetiu os movimentos do dia anterior, a janela deixou-se de caprichos, e abriu sem esforço. A rapariga debruçou-se e derramou o sorriso no passeio da rua, mesmo por baixo do parapeito da janela.

O cinzento do granito estava de novo animado pelo brilho de mil estrelas que o sol despejara de manhãzinha, e a bicicleta descia ritmada pela campainha metálica e pelo sorriso franco do ciclista.

No outro lado da rua estava a Clara, encostada à ombreira da porta, como todas as manhãs mal ouvia o sinal do Rui. O Rui, trabalhava na serralharia do beco do Mendes, e todas as manhãs, saia de casa ainda a mastigar o papo-seco com manteiga, saltava para a sua bicicleta e descia a rua ansioso pelo sorriso da namorada, a Clara, era louco por ela!

Todas as manhãs lhe atirava um beijo com a mão, e recebia de volta um sorriso que lhe injectava forças para mais uma jornada de trabalho duro.

Mariazinha recolhia-se. O ciclista nunca reparara nela, nem um bom dia tinham sequer trocado. Ele não imaginava com que ardor uma outra rapariga, que não a sua Clara, sabia de cor a hora, a senha, o som da corrente, os três toques...

Fechou a janelinha pequena, acalmou o coração com carícias e palavras de compreensão, e regressou ao sofá.

 No calor da manta de xadrez verde e branco, deixou-se levar para os braços do seu deus de barro, impresso nas páginas enxovalhadas do romance barato.

 

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