O dia acordou devagar, como todos os dias de Verão acordam.
Tapou os olhos com as mãos em concha e virou-se de costas para fugir da luz clara e baça que tinha tomado conta de todas as frestas do quarto atarracado.
Enterrou a cabeça na almofada, e deixou-se ficar ali até quase perder o fôlego.
Finalmente levantou-se. Os olhos franzidos, as mãos em pala de protecção. Pôs os dois pés fora da cama, e num impulso ficou de pé, frente ao espelho de corpo inteiro, à direita do divã onde dormia.
Aproximou-se mais de si. Espreitou o olhar reflectido, demorando-se nas linhas franzidas por debaixo dos lagos cinzentos, fundos, ansiosos. Aquela claridade em corta-luz, tinha-lhe conferido um ar desconfiado, permanentemente encandeado, as rugas em volta dos olhos pareciam exércitos de riscos a lápis de carvão...exércitos desalinhados, cansados, que tinham assentado arraiais por aquelas bandas...
As sombras lá de fora, despertaram-no da letargia do ritual de observação.
As sombras cresciam na proximidade, e minguavam na distância, mas em momento algum tocavam sequer a sua existência de ilhéu...apartado do calor dos outros por vontade própria.
Então era assim? Era assim, estar sozinho.
A única metamorfose à vista era o facto de aquele familiar nó no peito, a dor constante que transportava pra todo o lado... estar agora transformado num enorme e estranho vazio de sons, que lhe apertava a garganta e o impedia de abrir a boca.
Voltou às linhas dos olhos...eram como um pecado que ainda está por fazer, sempre a chamar, num sussurro.
Agora tinha desaprendido tudo.
Estava preso do lado de dentro do casulo. Uma prisão sem amarras, sem grades, e sem gente.
Acordava devagar nos dias de Verão, deitava-se depressa nas noites de Inverno, dormia ao de leve, enroscado em si mesmo, na ânsia avassaladora do amanhecer, de olhos quase fechados, franzidos, secos.
Vinham de mãos dadas.
Subiam pelo caminho ladeado de água.
Tinham os dedos enlaçados e as mãos suadas.
Traziam sorrisos francos, abertos nos lábios.
Caminhavam lado a lado, os joelhos trémulos do amor acabado de fazer às claras, debaixo da figueira, só os frutos leitosos, ainda verdes, como testemunha.
Guardavam na pele o suor do outro, como uma relíquia, e deixavam atrás o chão marcado de pegadas molhadas.
Sorriam, motivados pelo vazio imenso ao seu redor, e pelos caudais de saliva derramados sem pressas.
Transportavam nos olhos apenas a leveza do dia de hoje, e partiam sem mais rumo que não a presença do outro, pelo caminho adiante.
Passaram por mim.
Fiz de conta que não os vi.