Quinta-feira, 12 de Junho de 2008

O rapaz no casulo

 

O dia acordou devagar, como todos os dias de Verão acordam.

Tapou os olhos com as mãos em concha e virou-se de costas para fugir da luz clara e baça que tinha tomado conta de todas as frestas do quarto atarracado.

Enterrou a cabeça na almofada, e deixou-se ficar ali até quase perder o fôlego.

Finalmente levantou-se. Os olhos franzidos, as mãos em pala de protecção. Pôs os dois pés fora da cama, e num impulso ficou de pé, frente ao espelho de corpo inteiro, à direita do divã onde dormia.

Aproximou-se mais de si. Espreitou o olhar reflectido, demorando-se nas linhas franzidas por debaixo dos lagos cinzentos, fundos, ansiosos. Aquela claridade em corta-luz, tinha-lhe conferido um ar desconfiado, permanentemente encandeado, as rugas em volta dos olhos pareciam exércitos de riscos a lápis de carvão...exércitos desalinhados, cansados, que tinham assentado arraiais por aquelas bandas...

As sombras lá de fora, despertaram-no da letargia do ritual de observação.

As sombras cresciam na proximidade, e minguavam na distância, mas em momento algum tocavam sequer a sua existência de ilhéu...apartado do calor dos outros por vontade própria.

 Então era assim? Era assim, estar sozinho.

A única metamorfose à vista era o facto de aquele familiar nó no peito, a dor constante que transportava pra todo o lado... estar agora transformado num enorme e estranho vazio de sons, que lhe apertava a garganta e o impedia de abrir a boca.

Voltou às linhas dos olhos...eram como um pecado que ainda está por fazer, sempre a chamar, num sussurro.

Agora tinha desaprendido tudo.

 Estava preso do lado de dentro do casulo. Uma prisão sem amarras, sem grades, e sem gente.

Acordava devagar nos dias de Verão, deitava-se depressa nas noites de Inverno, dormia ao de leve, enroscado em si mesmo, na ânsia avassaladora do amanhecer,  de olhos quase fechados, franzidos, secos.

 

sinto-me:
tags:
Original Zumbido por meldevespas às 15:21
link | zumbir | zumbidos (13) | favorito
Terça-feira, 3 de Junho de 2008

Leve...

 

 

 

Vinham de mãos dadas.

Subiam pelo caminho ladeado de água.

Tinham os dedos enlaçados e as mãos suadas.

Traziam sorrisos francos, abertos nos lábios.

Caminhavam lado a lado, os joelhos trémulos do amor acabado de fazer  às claras, debaixo da figueira, só os frutos leitosos, ainda verdes, como testemunha.

Guardavam na pele o suor do outro, como uma relíquia, e deixavam atrás o chão marcado de pegadas molhadas.

Sorriam, motivados pelo vazio imenso ao seu redor, e pelos caudais de saliva derramados sem pressas.

Transportavam nos olhos apenas a leveza do dia de hoje, e partiam sem mais rumo que não a presença do outro,  pelo caminho adiante.

 

Passaram por mim.

Fiz de conta que não os vi.

 

sinto-me:
tags: , ,
Original Zumbido por meldevespas às 15:52
link | zumbir | zumbidos (20) | favorito

mais sobre mim

pesquisar

 

Abril 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

posts recentes

Constelaçoes

O Sorriso do Parvo

Porque sim

O Cheiro da Chuva

Estória para adormecer .....

Na lama

Memórias de Vento

A solo

Sem fim

Estória para adormecer......

arquivos

Abril 2011

Janeiro 2011

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Janeiro 2007

Julho 2006

tags

todas as tags

links

blogs SAPO

subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub