Era feliz, o parvo.
Ria-se dos outros, porque os outros lhe davam graça, só por isso.
E não entendia, as carrancas de alguns, quando ele desatava uma gargalhada de gosto, só porque sim.
Os outros davam-lhe vontade de rir.
O queixo espetado do Dr. Vinagre, sempre muito azedo. O avô fizera-lhe justiça com o nome, e a senhora sua mãe, feia como uma barata, oferecera-lhe de bandeja o queixinho de rebeca arrebitado, e os olhos de morcego cegos! O Dr. Vinagre era um regalo para os olhos!
Também havia o Teodoro do Talho, com aquela cabeça de porco rosada e redonda, as mãos de vaca, e as unhas de águia cheias de caca até ao sabugo.
A madrinha que o criou desde os cueiros, dizia-lhe - ai rapaz, és mais burro que uma parede, mas tens um olho que nem um repolho!!! É que não te escapa nada!
Vagueava dia e noite pelas ruas da vila. Encontrava sempre alguma alma esquecida que lhe dava uma moeda pra cigarros, ou para um poejo, na venda da Esquina, e depois, na volta a casa, enchia folhas e folhas de um caderno pautado, de rabiscos, que cheio de orgulho mostrava à madrinha Aurora.
- Este rapaz! Chamam-lhe parvo! Mais parvos são eles filho! Olha, o qeixo do Dr. Vinagre! Ahahah! Se ele te apanha estes desenhos interna-te na casinha dos malucos! Põe-te a pau, e não saias com o caderno prá rua!
Ria-se da madrinha, enfiando o dedo sujo de carvão pelo nariz acima, e com o caderno todo dobrado e escondido debaixo da camisola interior, fugia para o quartinho, olhando para todo o lado, e soltando guinchos de gozo.
Não dizia uma palavra. Nunca dissera. Nem em pequeno, muito menos agora.
Tinha ouvidos de tísico e olhos de lince, tinha-lhe diagnosticado o Dr. Queixo Esticado à Madrinha Aurora, há muitos invernos - é como lhe digo! não é surdo, nem é cego, é parvo!Parvinho de todo!!! - as últimas palavras sairam-lhe com um azedume cozinhado pelo riso do rapaz.
A Madrinha saiu do consultório de éter, com a alma entorpecida pelo cheiro e pela tristeza, ele vinha pela mão, feliz, rindo a bom rir - aquele queixo.....
Gostava de ver as raparigas...gostava tanto!. Eram tão bonitas e cheiravam a leite quente com lírios. Sabia que não se podia aproximar muito....já o tinha sentido na pele uma boa meia duzia de vezes.
Elas não compreendiam que ele só queria tocar, cheirar, desvendar os segredos por debaixo das saias rodadas, ver por onde desabavam montanhas e vales, de onde floresciam as rosas carnudas na boca de cada uma....
Uma vez, no dia do seu aniversário, uma quadrilha de rapazes lá do bairro, e mais pelo gosto da tropelia, do que pelo prazer da oferta, levaram-no à vivenda das meninas.
Ficava já fora da vila, num descampado abandonado pelas artes de Deus, e farejado pelo desejo dos homens.
Era plena luz do dia, para a Madrinha não desconfiar. Se ela soubesse, era capaz de o desancar com porrada...e quando ela queria tinha a mão pesada de um mineiro.
Entrou no antro de veludo vermelho, e perante o escárnio dos companheiros, demorou-se nas palpações às cortinas, almofadas, sofás e chaise-longues que por ali abundavam. Era tudo macio, como pessegos na árvore...
Uma mulher sabida e bem disposta, puxou-o para um cadeirão, e escarranchou-se de pernas abertas em cima dele.
A um gesto os outros sairam, e a maestrina, foi-lhe ensinando com destreza a arte de atiçar animais selvagens, e no meio de risinhos e suspiros arrancados do fundo de um poço, abriu-lhe janelas nas nuvens e trouxe-o de volta ao sofá acetinado, com carícias de mel nos olhos e uma chibata de pelo de cavalo na mão.
Andou duas semanas de olhos esbugalhados, a sonhar acordado com a cor vermelha, e a ter despertares alagados de sumos de pessegos.
Nunca mais lá voltou. Tinha medo de subir às nuvens. Tinha medo que as vertigens e tonturas se pegassem à sua pele.
Não guardava mágoas de ninguém...a não ser talvez de dois rapazes, que um dia espalharam pela vila um boato feio sobre ele.
Ele tratava dos porcos dos vizinhos, que estavam numa pocilga comum por detrás dos quintais. E os miúdos trataram de entreter os homens que se juntavam nas vendas ao fim da tarde, para o vinho do trabalho, com estórias floreadas de cenas escabrosas de relações carnais entre o parvo e os porcos da pocilga.
Foram dias tristes. A primeira vez que sabia que os seus olhos choviam água do mar, que só vira uma vez em pequeno.
A madrinha sovara-o até ter a pele das costas empoladas, e ainda assim, se ele pudesse falar, perguntaria porquê? Não percebia as estórias dos rapazes, mas sabia que o que eles contavam era muito feio e não se fazia...não com porcos....
Mas o tempo, como o vento, encarrega-se de levar as coisas para longe, e a não ser os dois rapazes, que agora eram homens, e um deles cornudo de cartilha, nunca mais ninguém tocara em tal assunto.
O parvo era feliz, na sua forma despegada de o ser.
Caminhava na berma do passeio, sorria de braços abertos, para a indiferença dos outros e abraçava o nada deles, que era ao mesmo tempo o seu tudo.
Ezequiel acordou de mansinho, foi amanhecendo para a claridade, sem pressas, e foi também sem pressas, que despertou nele a consciência de que tinha finalmente chegado o dia que aguardava desde que o tinham aventado para este mundo.
A sombra de uma nuvem escureceu-lhe o olhar, mas não mais do que dois efémeros segundos. Hoje não era dia para amarguras. Esfregou os olhos com um vigor de outros tempos, e de um impulso pulou da cama, e puxou as cortinas grossas.
Levou a mão aos olhos, para os proteger da luz intensa do sol maduro de Agosto, e ficou ali até habituar o olhar ao massacre solar de espreitar a rua.
-Que belo dia.... - pensou - é hoje ou nunca mais!
E nunca mais era muito tempo para Ezequiel. Nunca mais era quase o tempo que ele levava de espera, de dar corda ao relógio de bolso, de gastar as solas de cabedal grosseiro no chão de barro do casarão, de espreitar a rua , abrir e fechar trancas e ferrolhos....
- É hoje ou nunca.
Deixou a água a correr na banheira de esmalte estalado, enquanto fazia a barba.
Custou-lhe levar a lâmina aos lugares mais difíceis, e tudo por culpa do sorriso de lhe crescera na boca como o dia. Espalhou a colónia de alfazema calmante, e bateu nas faces com as palmas das mão, exorcizando a energia que emergia das pontas dos dedos, e que ameaçava transformá-lo num bocado de carvão a qualquer instante.
Entrou na banheira, e pensou que seria a última vez que o faria assim...sózinho. Tocou-se com saudade. Cada milimetro do seu corpo de homem feito, tinha uma estória de cumplicidade com as suas mãos, um segredo guardado, um êxtase calado pela vergonha...
Abafou um último gemido no calor passageiro daquele lago molhado, e saiu de lá outro.
Esfregou com força o corpo todo. Arrancou da pele os restos do Ezequiel que todos conheciam, deixou em carne viva um homem novo. Um homem capaz de andar no mundo como todos os outros homens.
Ficou de pé frente ao espelho.
Nu
Sem roupa
Sem pele
Sem pesos
Olhou-se com tempo .... as rugas que começavam a aprecer como as ervas nas primeiras chuvas, sem dó nem piedade.... o peito de águia, escurecido pela mata densa de pêlos que aqui e ali íam ficando grisalhos das névoas dos outonos tardios....as pernas finas de galgo...não estava mal....pensou num arquear de sobrancelha.
A manhã tinha corrido apressada, enquanto ele disfrutava do sabor doce que antecipava a mudança.
Puxou o relógio de cima da cómoda, e espantou-se com a consulta. - Já 11 horas!
Abriu o guarda-fatos de madeira envernizada cor de avelã, e tirou a roupa que já tinha escolhido para quando lhe fugisse o medo. O melhor fato. Um fato cor de chocolate, de espinhado inglês. - Muito fino! - dissera-lhe o caixeiro da loja de voz afeminada e gestos ameninados - é a última moda no estrangeiro!
Ezequiel, lembrava-se de ter olhado o sujeitinho esquisito de lado, desconfiado....mas, a cor ficava-lhe bem, e decidiu comprar o fato completo.
Mirou-se de alto a baixo, uma e outra vez...de frente, de lado, o outro ângulo, espreitou a parte de trás...... -Olha pra ti velho Ezequiel ... Quando tu queres até pareces um doutor! - sentenciou para o reflexo opaco e desfocado do espelho de pêndulo.
Meio dia em ponto. Abriu a porta do casarão, saiu para a rua e deixou entrar em casa um rasgo de ar quente carregado de borboletas azuis que tingiam daquela cor triste, tudo o que tocavam no seu voo.
Ezequiel seguiu o seu rumo, sem fazer caso das asas azuis invasoras do seu reduto de solitário.
Seguiu pela rua acima, sorrindo boas tardes aos poucos que se atreviam a um frente a frente com o sol tirano do meio do dia.
O suor escorria-lhe por dentro do paletó, e ensopava a camisa, as cuecas, a vontade....
Entrou no jardim da vila. Não havia viválma a não ser ele por aquelas bandas, sentou-se no banco que ficava situado por baixo dos longos braços do chorão frondoso. Fechou os olhos por um momento breve, respirou fundo e sentiu uma miscelanea de cheiros e sabores que lhe saturaram os sentidos, e lhe depositaram um travo anizado no céu da boca.
Concentrou-se nos ruidos que o rodeavam, a ausência da brisa, o canto dos pardais, dos melros, dos pintassilgos, um cão vadio que farejava urinas alheias, na relva ressequida.....o seu coração....
Era hoje .... sorriu ..... levou a mão ao bolso das calças, suspirou de alivio.
A solidão era um bicho teimoso, fossão, como o cão sarnento que estava agora a coçar as mordidelas das pulgas deitado ao lado do banco, mas Ezequiel, sentia a leveza infinita do abandono do estado solitário.
Retirou a mão do bolso, abriu-a, olhou o objecto pequeno e reluzente, uma aparição com artes mágicas, e num gesto encostou o aço rijo e frio à orelha direita e puxou o gatilho.
Houve uma debandada de asas e pêlo de cão vadio, e uma brisa tingida de azul uivou a romper a tarde.
Os pés da cadeirinha de madeira, ecoavam ao ritmo da cançoneta de embalar, no chão de tijolo vermelho bem encerado.
O frio cortava os dias a meio.
Era a hora da sesta da mais nova.
Dormia, ali ao seu colo, embalada pela sua voz, e pelo toc toc dos pés da cadeirinha de madeira, ali mesmo, em frente da braseira de carvão ardido.
"Ó papão vai-te embora, de cima desse telhado, deixa dormir a menina um soninho descansado..." a voz era doce, como são as vozes das mães, e a menina dormia sem sobresaltos.
A canção parava a tempos... o sono, tentava-a sem dó nem piedade.
- Maria! Acautela-te! Olha que deixas cair a gaiata dentro da braseira, mulher!
A vizinha, a velha Angela, fazia-lhe companhia nas tardes, fintando a solidão de uma casa sem filhos.
Mas, não. Maria abria os olhos e sorria. Não estava a sonhar. Tinha mesmo a sua menina nos braços. Os mais velhos, estavam na escola, e esta, a seroidinha, como chamavam os mais velhos aos filhos mais novitos, estava na segurança do seu regaço.
Maria sorria.
Não sonhava.
Era tudo verdade. As crianças, a casa, o seu homem, a vida toda.
Ficara longe a infância arrancada a ferros, a mãe viúva no fulgor dos 20 anos, os irmãos descalços de amparo, o orfanato a fingir de familia. A distância dissipava contornos, e ela estava agradecida por isso.
Era tudo dela! A vida, a casa...o amor....
Sorria por dentro, tentando a custo suster a vaidade que irrompia no seu peito. Ele era o rapaz mais bonito da vila. Um forasteiro é certo, ninguém o conhecia, mas as raparigas todas derramavam suspiros aos pés dele, e ele, ele escolheu-a a ela.
Não era a mais bonita, não tinha nada de seu, a não ser a inquietação nos seus olhos castanhos, breve no olhar, mas que permanecia muito para lá do momento. Um olhar líquido, uma torrente de paz.
E esse Inverno desaguou irremediavelmente numa Primavera plácida e morna, que deu lugar a um Verão irrespirável, inundado de suores e anseios de correntes de ar fresco, e por fim um Outono frutado em sopros de nevoas.
O ano deu a volta, uma vez, outra e mais outra...e as voltas ficaram mais curtas, e já quase parecia que Janeiro dava lugar a Agosto e a vida passava na porta, como mais um lá de casa.
Nunca foi exigente nos seus ensejos. Os do custume.....saude, alegria, o pão na mesa, bastava-lhe o essencial, e o sonho de uns sapatos de verniz, ou de um vestido novo, eram enfatizados no silêncio dos seus pensamentos, imaginando ocasiões, alindando dias, e ... ficando guardados, porque o rapaz precisava de umas calças para o trabalho, ou então eram os livros da escola da mais velha....e não tardava a pequena começava com aquelas exigências das sempre insatisfeitas jovenzinhas imberbes.
Maria eclipsava-se diante da vida que tinha, não porque fosse obrigada, mas porque estava nela ser assim, mais dos outros que de si.
Trazia enjaulada uma corsa dentro do coração que dava couces e pulos, pelas injustiças, pelas coisas bonitas, pelas viagens.
De vez em quando soltava o animal, isso impedia-a de asfixiar, e permitia-lhe colher sempre dos dias o melhor que podia.
E Maria podia muito...podia tanto.
Os filhos cresceram, muniram-se de armas, e fizeram-se à vida. Casaram, tiveram filhos, ficaram longe, às vezes tão perto...
Chocaram de frente muitas vezes, riram às gargalhadas muitas vezes, viraram costas muitas vezes, voltaram em lágrimas muitas vezes, bateram à porta sempre. À procura dela, da mãe Maria. E a porta abria-se incondicionalmente, e esqueciam-se azedumes em volta da mesa, em volta da mãe.
O seu homem, esse continuava ali, firme, a seu lado, sempre embalado pelos olhos castanhos dela.
Foram sempre um só. Orgulhava-se disso. -Já são poucos os que se orgulham de 50 anos juntos, dizia em tom de farsa, que mais não era, que o doce sentido do dever de amar cumprido em pleno.
Viveram felizes até ao fim...sem o para sempre, pelo menos nesta vida.
E agora Maria? Agora onde está a porta para eu bater nos dias de frio...ou de sol?