"- Não é fácil errar por esta terra... "- disse o homem só, em voz alta e limpa. Estava de pé, em cima de uma pedra de granito, e tinha o olhar fitado num ponto inatingível, no horizonte de trigo moreno.
"- Primeiro é a paixão....avassaladora..., a entrega, sem reservas, sem guardar nem um bocadinho que seja de nós para outra jornada.
O sol mima a pele, aquece palavras frias e ateia lenha molhada.
A chuva acalma a sede, lava o espírito e liberta o ser que escondias de vergonha dentro do teu corpo...
E o vento? O vento espalha-te na carne sementes de amanhãs, e tu deixas, sereno, quieto...aberto...
Depois quando vais à procura de ti...já não és... "
O homem só, passou a mão pelos cabelos longos, e uma nuvem de insectos caleidoscópicos fugiu em debandada pelo tempo parado.
"- Se eu soubesse escrever, desenhava tudo o que estou a sentir em letras redondas, num papel branco, para que todos pudessem fugir do chamamento opressor, disfarçado em canto dócil de musas aquáticas.
Primeiro são as estrelas que te cobrem o frio nas noites em que o Verão de despede às pressas e a seguir a lua encena todos os sonhos que te nascem das mãos e vais deixando caídos nas veredas lavradas pelos teus olhos salgados..."
Sozinho, o homem falava como quem prega a palavra de um qualquer Deus pagão. O que saía da sua boca, eram sons apaixonados, gritos libertadores que apaziguavam a dor de um amor desprovido de limites.
As mãos nodosas como galhos de árvores velhas, descansavam uma na outra, apoiadas num cajado encorcovado, de nogueira. As unhas escuras cresciam à deriva como ervas daninhas, e perdiam-se por entre os dedos compridos e finos.
"- Não é fácil viver por esta terra...quando já deste tudo, quanto não te resta mais que braçadas de vazio atrás de braçadas de vazio, és cuspido como um caroço de azeitona. Mas aí....não há nada mais a fazer...desaprendeste de outra coisa que não seja dar-te inteiro, e podes até fugir, correr sem olhar para trás....não tens mais certezas que o regresso, o regresso em dores insuportáveis, em dádivas incondicionais...
Já não és tu. As raízes estão fundas, espalharam-se como veias que pulsam a cada batida do teu coração, e não há palmo de chão virgem."
A solidão conferia ao homem um matiz pálido de pérola embaciada pelos anos. Nos ombros conformados, uma força maior que ele, impelia-o para o sim eterno e etéreo como ele.
".... não é fácil morrer por esta terra.....esperares acomodado o voo da foice que te vai cortar os ossos, dilacerar o fio umbilical que te une ao sol.....ainda."
O homem sozinho calou-se, cansado do eco que se emaranhava nos longos cabelos espinhados e num suspiro resignado diluiu-se na terra, adubando dias vindouros.
As manhãs de Sábado eram as preferidas pelos amantes. Perfeitas para encontros fortuitos na frente do mundo e nas costas de Deus.
A casa da Santinha estava incrustada na Rua do Comércio, o centro nevrálgico da pequena vila, e as manhãs de Sábado enchiam a calçada de passos e vozes. Correrias de crianças, chamamentos de mães, cumprimentos de ocasião.
Os homens discutiam as últimas notícias do desporto, encostados na ombreira da porta da Tabacaria Moderna e havia magotes de mulheres amontoadas nas mesas da Pastelaria Docemel, a beberricar cafés ao ritmo do último mexerico.
O Dr. Nataniel, o advogado mais proeminente da praça, folheava o Semanário Económico sentado num dos bancos de ferro pintados de verde abeto, que ladeavam a rua para descanso dos passantes. Olhava as notícias sem as ler...As manhãs de Sábado eram as melhores para apreciar o mulherio, pelo rabo do olho. Fixava-se na dança das saias embaladas pelas ancas, fitava os saltos altos qual altar de corpos que imaginava nus e de braços abertos para si. O Dr. Nataniel gostava de sentir o desejo que lhe corroía o corpo todo, a dor aguda que lhe tomava conta das partes intimas e lhe devolvia esperanças vãs de adolescências infames.
A Santinha, entreabria a janela da frente e deixava entrar o buliço da rua. O peito ardia-lhe na antecipação da chegada dele.
Vestiu o robe de chambre de organza rosa velho por cima da pele leitosa, e bebeu o chá, já quase frio, em goles nervosos. Ele raramente se atrasava. Quase 10 horas da manhã, os sons vindos da rua emolduravam a ansiedade da sala. Dois toques. Um, depois o outro, na porta das traseiras da casa. Era ele!
Abriu uma nesga da porta. Apenas o suficiente para o intruso passar. Deixou-se ficar ali atrás da porta, como uma gata no cio, a retorcer-se da ausência dele.
A porta fechou-se. Ele olhou-a, sorriu, e ela entregou-se ali mesmo, sem bons dias, sem mais nada que não fosse a pressa de apagar o incêndio que ameaçava a sua integridade física e que ceifava vidas no interior das pernas.
Na rua do Comércio, a manhã decorria na costumeira cadência de vai vem, e os gemidos que escorriam da janela entreaberta, imiscuíam-se com as vozes dos transeuntes, e coloriam aquela manhã de Setembro de prazenteiros tons solarengos.
O sino na torre da igreja, chamava para a missa das 11, e uma debandada de pardais assustados precipitava-se sobre as acácias da praça.
A Santinha rezava mistérios a duas vozes. Cumpria promessas feitas ao ouvido, pelo chão frio e rijo da casa. Dava graças pelo caudal de vida que lhe varria os sentidos.
Aos poucos, o dia foi escoando sons e passos, deixando no ar apenas a urgência do almoço anunciado em cheiros a comida quente.
O sol de Outono, implacável fazia o casario cair em sombras densas sobre a rua do Comércio, agora abandonada à sua sorte de fim de semana, a solidão.
A sombra silenciou também a casa da Santinha. Lá dentro um manto de suor cobria os dois corpos fartos e quietos.
- Sábado de manhã voltas?
- Sempre minha Santinha.
Na rua ouvia-se agora um passo arrastado, e melancólico. Era o João Francisco, o deficiente que vivia na esquina de baixo com a mãe. Vinha da igreja, onde pedia esmola na saída da missa, e varria com a perna morta os últimos vestígios de gente do meio da rua.
Depois ficou o nada. As casas deitaram-se à sesta, e a Santinha fez juras de manhãs eternas enquanto acenava um adeus saciado.
Estou em destaque, estou em destaque, estou em destaque!!!!!!!!
Ok, ok calma, muita calma meus senhores.........
Obrigado Sapinho, mais uma vez obrigado por te teres lembrado aqui do estaminé!
- Prometes?
- Tudo!
Esperei entre folhas caídas. Folhas de livros que esqueceste no chão.
Tudo!
Esperei entre palavras caídas, e os meus pés encontraram o chão onde esqueceste o meu nome.
Depois tu vieste.
E quem já não sabia o meu nome era eu. Não sabia o meu....nem o teu.
Estranhei-te.
Tudo?
- Prometeste...
- Fiz pouco caso de mim. E agora já não sei o que sou....
Se calhar não sou nada.
Os meus pés encontraram o chão. E os teus?
- Nada...