Não preciso do teu desprezo...
Rasgas-me o orgulho...
Falava para o vazio. De costas para o objecto das suas palavras.
Era um acto cénico. Um monólogo carregado de gestos coreografados pela indiferença.
"Porque somos tão diferentes......" e isso, o que é?
Uma pergunta?
Uma resposta?
Ou apenas a constatação da tua latente incapacidade de criar laços?
Ouve-me.
Com as tuas próprias mãos, abre uma cova na terra. Sente o cheiro a carne viva que a terra húmida emana, toldar-te o pensar.
Abre fundo...bem fundo, e depois enterra lá o peso das tuas dúvidas. Deixa lá sepultados os restos mortais desse ser que criaste à tua imagem.
Susteve a respiração.
Uma janela aberta alaga de luz o cenário.
Continuam de costas.
Não respondas.... tenho medo de não reconhecer a tua voz...
Sabes que mais?
Eu, inclino-me perante a frágil efemeridade das certezas.
Cai o pano.
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Matias perdeu-se no mundo ainda verde.
Da noite para o dia, a doce certeza familiar fundiu-se no leito de uma cama de hospital. As lágrimas confundidas com éter.
Durante anos a fio, um sonho tornou-se recorrente. A mãe.
Todas as noites vivia os últimos dias dela, com ela, com o sorriso dela .... e todas as manhãs, fazia a um Deus diferente, a mesma pergunta:
- Quantas vezes vou ter que a perder?
A resposta não veio....nunca....e Matias desistiu de questionar as sombras das árvores.
Era pouco maior que um cão rafeiro, e sozinho perdeu-se nos arredores da vida.
Fugiu do ruído insuportável do eco da casa vazia.
Correu o mais que pode para longe da ausência do toque apaziguador nas noites de tempestade.
E sem saber como, caiu nas graças de outros tantos foragidos, que habitavam nas franjas das serranias, nos subúrbios das vidas impressas em papel...nos espaços adjacentes expressos em extractos bancários.
O Joel da oficina mecânica, foi seu mentor naqueles tenros anos.
Protegeu-lhe os primeiros Invernos de criança sem rumo, partilhando a pouca comida ao som de grandes feitos do passado. O Joel tinha um dom....abria qualquer fechadura que se lhe deparasse, de caixa de música a cofre comercial, nenhum segredo estava ao abrigo de tão hábeis mãos.
O "dom" já lhe valera estadias dentro de muros de betão, mais afastado ainda do centro vital do mundo.O Joel era um homem duro, todo esculpido em granito, e Matias, perdido, achou-lhe um coração dentro do peito.
A Rosa era puta de carreira. Caçava na beira da noite, fregueses sem norte, que como ela se aventuravam no escuro com ares de predador, e no fim, mais não eram que presas fáceis.
A Rosa foi madrinha de guerra de todas as lutas travadas por Matias. As primeiras carteiras palmadas à socapa nos transportes públicos, os primeiros cigarros fumados em tosses vulcânicas, e, a seu tempo, foi também ela que lhe ensinou tudo o que um homem feito tem que saber na cama. Em lições privadas, sob a luz mortiça de uma velinha de igreja.
As mãos de Rosa conduziam Matias a latitudes superiores, onde havia mais sol e coragem. E depois do espanto do corpo, enroscava-se como um gato a brincar nas tetas da mãe, e adormecia a tremer de medo, pela premonição de mais uma despedida.
Mesmo neste mundo onde a claridade era só uma miragem, e a penumbra era companheira de luta e suor, Matias cresceu como uma trepadeira, forte e espigado.
Andava pelas ruas ao sabor da vontade. O buço sombreado pela puberdade, os joelhos ossudos e encardidos, e um assobio desentoado de quem se julga dono do mundo.
Matias viu Bia a primeira vez, na paragem do autocarro. Ela viu-o a roubar a carteira a um finório com ar superior...e calou-se. Baixou os olhos e quase sorriu. Matias ficou aflito quando deu por ela. O coração ameaçou sair pela boca. Olhou-a num tom de súplica, e saiu dali disparado. Só parou na oficina sebeirente do Joel.
Sentou-se num pneu, tirou a boina e limpou o suor da testa com ela. Fechou os olhos com medo....e lá estava aquele quase sorriso, debaixo de uns olhos castanhos suaves.
Bia estudava num colégio de freiras. Era aplicada e boa aluna. Os pais estavam noutro país, e tinham deixado a pequena à guarda de uma tia-avó muito chegada, que a tratava com capricho e amor. Bia tinha o coração aberto, e sonhos de muitas cores, que acabavam invariavelmente com o beijo de um príncipe dourado e juras de eternidade.
No outro dia, com os joelhos a bater um no outro, e as forças a escapulirem-se, Matias atreveu-se a ir espreitar a paragem do autocarro. Estava tudo calmo. Respirou fundo com alívio. Mas um formigueiro tomou conta dele. Lá estava a rapariga outra vez. O cabelo claro, atado num rabo-de-cavalo austero demais para a idade, e os olhos mansos. Aqueles olhos que eram da exacta cor das avelãs...
O olhar de Matias teve em Bia o efeito de um espelho reflector, e ela virou-se na sua direcção.
Esboçou um sorriso, e num gesto pensado, deixou cair todos os livros que carregava nas mãos
Matias saltou como um galgo, e de pronto apanhou do chão a amalgama de livros e papeis espalhados.
- Toma ...uhhhh desculpa, tenho as mãos todas sujas... - disse o rapaz tomate, envergonhado, pela primeira vez na vida, do mau trato dado às suas mãos.
- Ahhh obrigado..nnnão faz mal- a rapariga escarlate mal o olhou. Agradeceu com decoro e regozijou-se do sucesso do plano.
O autocarro chegou, apanhou o grupo de pessoas, Matias acenou um breve adeus, e num suspiro profundo, voltou para casa.
Contou a Joel o que se tinha passado, na esperança de ouvir dele uma pista sobre aquele calor que agora sentia dentro do peito. Joel não se interessou. Joel não perdia tempo com essas dores que não se vêem.
Estava na hora do almoço, e Matias, um esfomeado por natureza, tinha perdido o apetite por completo.
Procurou a Rosa, que o acolheu de braços abertos como sempre:
- Então rapazinho, já vens à procura da sobremesa? Ahahaha! - gracejou a mulher alto e bom som.
- Não. - respondeu o rapaz, lacónico, por entre um sorriso amarelo.
Contou-lhe. Rosa ouviu calada, e assim permaneceu por alguns minutos, depois de Matias se calar.
- Então? Não dizes nada!? - disse o rapaz inquieto.
- Espera...deixaste-me um bocadinho assim....como se....olha miúdo, isso deve ser amor...digo eu que já me esqueci o que isso é. - respondeu a mulher de olhos húmidos, e a voz embargada por memórias de outro mundo, de outro corpo, de outra Rosa.
No dia seguinte, Matias acordou antes do relógio velho do Joel. Foi ao quintal, abriu a torneira e meteu a cabeça debaixo da água fria. Esfregou bem o cabelo com sabão azul e branco, lavou a cara, uma e outra vez, até ficar vermelha, e depois demorou-se nas mãos. Ensaboou-as, passou-as por água, e repetiu o processo umas duas ou três vezes.
Entrou outra vez em casa, e procurou ver a sua imagem no pedaço de espelho partido pendurado ao lado da porta. Não estava mal. Nem se reconhecia de tão desencasqueado. Vestiu uma roupa limpa que as senhoras da igreja lhe tinham dado há tempos. O traje era tão "pipi" que nunca tivera coragem de o envergar...e agora as calças mais pareciam uns calções. Mirou-se desconsolado. Que figurinha! Ao menos estava limpo, pensou.
Estava quase na hora. Penteou-se com os dedos como era habitual, e saiu em passo de corrida. A ansiedade transbordava, e isso notava-se nas mãos suadas que pelo caminho ia limpando nas calças.
Quando chegou à paragem, Bia já lá estava. Matias caminhou direito a ela:
- Bom dia, posso ajudar-te a segurar os livros enquanto o transporte não vem? - perguntou de uma vez, até quase perder o fôlego, e continuou - hoje tenho as mãos limpas, vês? - disse ao mesmo tempo que exibia as mãos abertas de um lado e depois do outro.
- Está bem. Podes. - respondeu vitoriosa e sorridente.
Ficaram ali os dois, no meio da pequena multidão a caminho do trabalho, mas apenas com olhos um para o outro.
- Chamo-me Matias...
- Eu sou a Belisanda, mas todos me chamam Bia.
Quando o autocarro chegou, despediram-se com um "até amanhã" que selava a efemeridade dos sonhos juvenis, e um aceno em tom de carícia.
No regresso a casa, o assobio harmonioso e as mãos nos bolsos, acentuavam a leveza da alma.
Ao sabor da vontade, Matias ia-se encontrando por caminhos perdidos.
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