Segunda-feira, 30 de Março de 2009

Seguir

 

Abril chegou morno como fermento, fazendo crescer os dias. As horas de sol prolongavam as vozes de homens e mulheres pelos campos. Havia ainda muito que fazer antes de a Pascoa chegar e o tempo corria a sete pés. Mais quinze dias, e seria Sexta-Feira Santa, nem pensar em mexer na terra, no dia da morte do Senhor. Os trabalhadores espalhavam-se pela vinha como carreiros de formigas, a trabalhar até ao sol-posto, numa cadência ritmada pelas vozes, pelo cante e pela solidão do silencio nas planícies dolentes.

Jacinto andava no meio deles, ensimesmado. Tímido no trato, e parco de palavras, Jacinto era um homem corpulento e grosseiro, num corpo que não sentia como sendo o seu. A pele curtida pelas soalheiras de Verões a fio passados apenas à sombra da sua própria miséria, uns olhos pequenos e tristes confinados à rudeza daquele rosto feio. O nariz grande tinha uma úlcera crónica na ponta redonda, uma vermelhidão causada pela inclemência dos elementos e pela evidente ausência de pedigree.

As mãos, rudes, manuseavam as vides, com uma sabedoria ancestral, sem olhar sequer, era um trabalho que o libertava, apesar de todas as correntes. Podia deixar fugir o pensamento, por onde lhe apetecesse, que ali nos confins da solidão, ninguém se daria conta. As costas curvadas por força da posição das videiras, realçavam o traço mais revelador de toda aquela anatomia desarmoniosa...umas ancas largas de matrona emolduravam um par de nádegas pesadas. Ele tinha-se acostumado ao escárnio dos outros - Há muito tempo, desde que era ainda quase uma criança, que tinha aceitado o facto de estar enclausurado naquele corpo estranho. Tinha uma alma delicada, um outro corpo, mais bonito, debaixo daquela pele áspera...

Uma vez por mês, sempre aos Sábados de manhã, deixava o campo para trás, e rumava à cidade mais próxima.

A cabeleireira já não o estranhava. Cumprimentava-o com um carinho oco e falso e encaminhava-o para uma das cadeiras de napa azul clara, desbotadas e antiquadas.

Tudo ali exalava a bafio e falta de classe.

Esticava-lhe o cabelo ralo, cortava, tingia-lhe madeixas de um amarelo oxigenado que o fazia parecer uma actriz travestida num filme decadente do final dos anos 30.

Ficava sentado de frente para um espelho grande demais, castigador, inclemente, enquanto a Madame (como gostava de ser chamada) lhe dava o toque final com uma escova cheia de cabelos velhos, ao mesmo tempo que debitava numa voz demasiado aguda para ser real, que ninguém fazia mises à brasileira como ela.

Ás vezes, poucas vezes, enchia-se de coragem e subia de um sopro os 22 degraus inclinados de uma casa sombria na zona mais antiga da cidade, uma pensão de má fama, atarracada e suja, com um barzinho no 1º andar, onde homens cansados saciavam corpos ausentes e gestos reprimidos. Pedia uma bebida barata, e forte, que engolia de um trago, e despido das vergonhas diurnas arrastava um companheiro de fome para um dos quartos acanhados do andar. Nos lençóis imundos, ensopados em suores e paixões paridas  à socapa, despejavam os corpos em carne viva de tantas e tantas provações

Saia daquela casinha decrépita, limpo, leve, novo.

Na aldeia, todos o conheciam como o Jacintinho, e, não obstante a sua existência peculiar ,tinham aprendido a repspeitá-lo de alguma forma - não virava as costas ao trabalho, e isso era de louvar.

No recato velado da casa onde vivia com a irmã viúva, bordava a ponto de cruz, pelas noite dentro, à luz vaga da manga de um candeeiro a petróleo O corredor de acesso aos quartos, estava povoado de cães de pelo comprido bordados em pano cru, alindados com laços de cetim aplicados à laia de coleira, com pontos de uma delicadeza sem par.

Num canto do quarto, um cima de uma pequena mesa de abas, tinha um gira-discos antigo, e num cesto de vime, mesmo ao lado, uma quantidade considerável de discos de vinil. Vozes femininas, que de frente para o espelho do guarda-fatos, imitava num play back-bizarro.

No Domingo de Passos, acordara mais tarde que o normal, a irmã, de buço cerrado e semblante vazio, estava a guardar a loiça do jantar do dia anterior.

- Só agora!? Estava a ver que hoje pegavas o dia com a noite! Anda, ajuda a por a mesa, que temos que nos despachar para a procissão.

Jacinto estendeu a toalha branca bordada de malmequeres amarelos - tinha-lhe dado um trabalhão, mas estava um deleite -  pensava ele com satisfação embevecido nas flores brilhantes. Depois da mesa preparada. Varreu o canto da cozinha. Agora já era de dia. Todas as noites, sacudia a toalha da mesa do jantar para o canto da cozinha. Parece que estava a ouvir a voz da finada mãe - Oh rapaz, de noite não se sacode a toalha para a rua! Estas a deitar à noite o pão da tua casa! - e ele ainda hoje acatava todas as ordens da sua mãe...

Depois do almoço, vestiu-se, imaculado, como todos os Domingos, ajeitou o penteado puxando um tufo escasso de cabelo para a testa, na tentativa frustrada de esconder as entradas que lhe sulcavam o escalpe. Perfumou-se em demasia, como era habitual e saiu para a rua, as ancas cheias a marcar o compasso.

A tarde ameaçava chuva, e o céu estava carregado de farripas roxas de nuvens - já mexeram no Senhor dos Passos...ele não gosta....assim que lhe mexem, é chuva certa... - dizia para si mesmo no caminho para a Igreja.

A procissão estava a sair. A banda a tocar, os homens das congregações religiosas enfiados dentro capas acetinadas de um púrpura profundo. O queimador de incenso a balançar na mão de um acólito, impregnava o ar e os sentidos de um cheiro quente e transcendente, e todos os paroquianos tomavam os seus lugares no cortejo.

- Que triste - pensou - engalanarem-se todos, só para mostrar o sofrimento do Senhor carregado com a cruz....

Os rufos dos tambores da filarmónica começaram a fazer-se ouvir, e o desfile arrancou em marcha lenta.

Jacinto ía ficando para trás consciente da sua própria cruz, da sua nudez disfarçada, dos olhares cravados na sua nuca, onde o cabelo arranjado ondulava com a força da laca, sentia-se a desistir, apetecia-lhe voltar para casa, esconder-se do resto do mundo, no seu quarto perfumado de saquinhos de alfazema bordados em cambraia, ou fugir para a cidade e estancar o sangue com uma garrafa de aguardente e a caridade de um outro qualquer.

Apetecia-lhe sair daquele corpo feio, daquela alma atormentada.... se calhar até morrer... 

Parou de repente. Fechou os olhos por um momento. Engoliu, outra vez (mais uma vez) a vergonha que apascentava dentro de si...

as pessoas mais atrasadas, encalhavam nele, parado no meio da rua, cego e ausente...

por fim recomeçou a andar, um passo, a seguir outro e mais outro ... olhou para a frente, um olhar quase firme, quase um desafio.

Era Domingo de Passos, pelo menos por hoje também ele carregaria a sua cruz na frente de todos.

sinto-me:
tags: ,
Original Zumbido por meldevespas às 21:16
link | zumbir | zumbidos (5) | favorito
Quarta-feira, 18 de Março de 2009

Espera-me, que eu não volto

 

 

 

O motor do tractor emoldurava-lhe a indiferença. Aquele rosnar cavo e profundo, ressoava no vazio do campo pontilhando a monotonia das horas.

Joaquim António, manobrava a máquina apenas com uma mão, recostado no banco plástico e rijo, forrado com um pano de cotim coçado.

A outra mão estava esquecida nas costas do banco. O braço pendurado com a mesma displicência com que conduzia sete dias na semana aquela máquina pachorrenta e estúpida.

Sentia-se estúpido ele também, naquele vaivém, arrastado pela grade de ferro pesada, que arava a terra seca e a sua culpa ainda em carne viva, com igual intensidade.

Desde que aquilo se dera, não mais tinha encontrado paz. O cheiro forte da terra, costumava ser um bálsamo para todas as dores ou maleitas. A ressaca das segundas-feiras de manhã, o sol vigoroso e cruel dos verões varonis, as chuvas agoniantes e potenciadoras de ansiedades e apertos no peito... tudo, o cheiro visceral da terra tinha sido sempre fonte de paz e acalmia. Por isso não se via a fazer outra coisa que não fosse aquilo. A escola aborrecia-o de morte, quatro paredes a cingir-lhe o corpo, quatro corpos hirtos a encolhrem-lhe a vida, que corria lá do lado de fora, livre, sem grilhões, sem algozes.

Ele não era diferente agora do que era antes. Era o mesmo rapaz, respondiam as pessoas à pergunta - "Achas que mudei? Responde com a verdade! - repetida vezes demais nestes últimos dois anos.

Mas ele sentia-se diferente. Claro que era o mesmo Joaquim António que estava todas as manhãs reflectido no espelho da casa de banho. Mas ainda assim, a imagem devolvida pelo espelho provocaca-lhe um calafrio suado que o invadia sem misericóridia.

Já não havia mistérios naquele sentimento...não agora. Chamava-se culpa, e doía como um corte infecto infestado de bichos, uma dor lancinante, sem reservas, sem perdão, sem apelo.

Caíra de amores por ela, toda a gente sabia ali pelos arredores, que ele arrastava o mundo por ela, e ela um dia viu-o.

Amaram-se em segredo pelos recantos, desafiaram regras, atreveram-se por caminhos ainda por descobrir, juntos apagaram estrelas e acenderam constelações inteiras.

Mas Laura tomava conta da vida de Joaquim com a voracidade de uma erva daninha, e ele sentiu-se outra vez na escola, sentado direito numa cadeira de pau, com a cartilha aberta na letra errada, e a visão do vento a soprar segredos às árvores do recreio. Sentia outra vez os braços atados, a letargia imposta pela porta fechada, a inquietação a germinar em rebentos primaveris no seu peito em pousio.

A rebelião pressentia-se a cada dia de amores jurados e gemidos entornados no leito apertado do abraço dela.

- Vou pra França... o meu primo Germano, tem lá um serviço bom à minha espera. É na terra, nas vinhas, tu sabes que é só o que eu sei fazer... Queres vir também!? Não! Isso é impossível! Aquilo é só homens, é lá sitio pra uma rapariga como tu! Tira isso da ideia! Agora vou eu, e depois, conforme as coisas correrem, mando-te buscar.... ouve, não chores, eu volto, claro que volto... ela não acreditou. Ele também não.

Fez a mala. Dois pares de calças de algodão, a camisa dos dias de festa, a outra toda passajada pelas mãos deformadas da avó Miquelina, e os botins de pele curtida que o pai encomendara ao Chico das Botas há anos atrás.

A culpa era assim como uma doença, um mal daqueles sem cura, que se pegam à pele da gente, e em menos de nada já nos correm no sangue num galope certo.

Desligou a chave da ignição, o ronco do tractor cessou finalmente, e devolveu o silêncio àquelas paragens. Joaquim António, saltou para o chão, limpou a testa com a boina de gabardina axadrezada, e caminhou sem pressas os dois quilómetros que o separavam de casa.

Nunca mais pegara na bicicleta a pedais. Agora seguia a pé. Chegava sempre mais cansado. O cansaço era redentor.

No dia seguinte, o dia amanheceu antes da hora, havia um alarido no ar que puxava quem passava num remoinho crescente, e as vozes em surdina subiram o tom, e os gritos perfuraram tímpanos e sonhos, e uma multidão de gestos urgentes e olhares esbugalhados precipitava-se para o termo da vila.

Ali, debaixo da nogueira antiga, ao lado do Poço das Virtudes, jaziam lado a lado as sapatilhas de lona vermelha de Laura.

 

 

sinto-me:
tags: , ,
Original Zumbido por meldevespas às 13:47
link | zumbir | zumbidos (7) | favorito

mais sobre mim

pesquisar

 

Abril 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

posts recentes

Constelaçoes

O Sorriso do Parvo

Porque sim

O Cheiro da Chuva

Estória para adormecer .....

Na lama

Memórias de Vento

A solo

Sem fim

Estória para adormecer......

arquivos

Abril 2011

Janeiro 2011

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Janeiro 2007

Julho 2006

tags

todas as tags

links

blogs SAPO

subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub