Por esses dias, a morte andava no ar.
Como remelas em olhos de crianças doentes, pegava-se a tudo sem pudores.
Nas casas desertas não moravam agora mais que recordações vagas de vidas passadas em suspiros breves.
Pelas ruas ecoava um soão soturno e atrevido, que se insinuava pelas frestas de portas e janelas, e irrompia em explosões de pó que se elevavam das chaminés estéreis.
No Beco da Cova, mesmo ao virar da esquina, encravada entre as raízes encarquilhadas de uma mimosa, e as paredes altas do Palacete abandonado dos Fidalguinhos, ficava a casa da Velha Justina.
A Velha contava, se soubesse contar, mais de 100 anos. Movia-se em sinuosos círculos, como uma assombração, do seu eu passado. As costas curvadas, o queixo a poucos centímetros dos joelhos, os dedos das mãos deformados pela descalcificação da alma ausente há muito. Arrastava os pés nodosos e antigos pelo chão ladrilhado de barro vermelho. O lume na soleira da chaminé, era a única companhia da velha. Os restos dos lenhos secos trazidos pelo Vespertino no princípio do Inverno, estalavam ateando labaredas vivas.
Estranhava a estadia prolongada nesta dimensão. Estranhava a forma como as lembranças se lhe iluminavam. Agora mais que antes, agora mais que nunca. Lembrava-se de coisas sem sentido... e no entanto, esquecia-se de quem era, não poucas vezes.
Lembrava-se dos olhos espertos do marido. Dos modos ladinos que tinha de a namorar, mesmo nos tempos mais duros...e depois, na cegueira do cair da noite, fechava os olhos e via-o no seu melhor fato de tyrilene, comprado ao Paco contrabandista... as mãos postas em descanso sobre o peito. As maçãs do rosto salientes da pele cinzenta . . .os olhos sem ninguém caídos no fundo de duas covas escuras..
Falava, enquanto se movia naquele rodopiar arrastado, sem fim... era mais um murmurejar, um ruído de fundo, uma prece em ladainha, que se renovava a cada rumor de vento. - Pai! Filho! Espírito Santo! qual de vós se esqueceu de mim nesta cova rasa de silêncios ruins!
Já não chorava. O caudal fértil tinha secado, nada mais restava da bonança de outrora...apenas a pele árida, gretada, quase morta...
Porque andava Ela a imiscuir-se na vida de uns e de outros, e resistia teimosa a todos os seus chamamentos ?
Anda no ar Ti Justina, anda no ar! - dizia num gemido surdo a Maria Adelina.
Anda nada - ripostava a velha da janela do quarto de dormir - se andasse no ar já tinha entrado por estes buracos que tenho em mim, onde entra tudo quanto é dor... menos essa magana, que não tem dó desta sombra eterna.
Maria Adelina benzia-se em ânsias, e fugia às pressas, deixando atrás de si um cheiro a nêsperas azedas caídas da árvore em dias de trovoadas de Agosto.
A vida era uma erva daninha. A morte uma carícia que tardava.
O lume de chão, ardia em estalidos.A velha enchia de água uma cafeteira esmaltada, e encostava-a estrategicamente às brasas matutinas. Juntava o pó de café, e acocorada na cadeira baixa fundilhada a buinho, esperava o fervilhar do liquido. Assistia com pormenor a todos os pequenos movimentos dentro da cafeteira. No momento exacto em que a ebulição começava, e o café ameaçava transbordar, a Velha munida de uma tenaz de ferro fundido, apanhava uma brasa, e deitava-a com saber para dentro do liquido. Depois com o pé, arredava a cafeteira. Ali, era o único lugar do seu dia que lhe despertava um sorriso franco, tímido, mas franco.
Cerrava os olhos pesados, e inspirava com uma força escondida para a ocasião, o aroma forte do café acabado de fazer.
- Bem podias vir agora - conjurava baixinho, enquanto beberricava o liquido escuro - não sei o que ainda esperas...
As mãos envolviam a caneca de loiça pintada. Não havia tremores, só uma tristeza que cobria as paredes da casa, e escorria por baixo da porta até à raiz da mimosa.
O vento passou por ali, manso e calado. Fez ranger portas e batentes, e farto de desígnios vãos, deixou um rasto de Maio por toda a parte.
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