Segunda-feira, 25 de Maio de 2009

A preto e branco

Passos decididos ouviram-se lá fora no corredor.

- Vem aí! Todos em sentido, depressa - era mais que um pedido, ou mesmo uma ordem, era quase uma prece à Nossa Senhora Auxiliadora dos Inocentes com Medo.

O Professor entrou calado. Correu um olhar desconfiado por toda a sala, e por fim, ainda de pé atrás da secretária de madeira polida, começou a abrir a pasta de calfe castanho chocolate.

O Dr. José Vieira Andrade, era tão digno do epiteto de Dr. como os alunos da primária, que agora o olhavam com temor genuíno.

Tinha ido para o Ultramar, província de Benguela, como Professor Regente, ainda verde. Filho único de uma família pobre,  acabara de cumprir os 18 anos quando a despeito do desagrado de mãe e pai, embarcou no paquete Uíje, cheio de sonhos de conquistar o mundo.

Perdeu metade durante a penosa viagem pontilhada a vómitos, tonturas e febres tenazes.

Regressara 30 anos passados, com um espírito colonialista que apesar da revolução, cultivava ainda e sempre com afinco e um particular deleite.

Ali no interior do país, as coisas pouco ou nada tinham mudado, e o Andrade, depressa assimilara uma verdade universal: também ali, naquele cú de Judas, havia pretos....mesmo que fossem brancos.

Os miúdos tinham um medo dele que se pelavam, e todas as manhãs de todos os dias da semana eram passadas entre dores de barriga e diarreias que esverdeavam as caras e encharcavam as mãos de suores gélidos.

A euforia de Abril esfumara-se em três tempos por ali. Os ecos de reforma agrária que soavam mais a sul, pareciam vindos dos confins da terra. Ali, nas serranias, a realidade era bem diferente.

Os filhos do Rogério das manifestações de punho erguido, eram pretos da cor do carvão, e os filhos do Dr. Justo, descendente directo do grande latifundiário Matias da Luz, eram alvos como claras em castelo.

- Todos de pé! O hino, o hino! Tenho que repetir todos os dias a mesma coisa!?

O rebanho levantava-se ordeiramente.

à frente as ovelhas de primeira, olhos vivos, cheio de certezas, cabelos bem lavados, apanhados em totós com grandes laços de cetim brilhante, logo a seguir, as ovelhas mais ou menos; camiseiros de chita, impecáveis, bem passados a ferro, abotoados até a cima e cortes de cabelos espartanos e sérios. Lá atrás, as ovelhas tresmalhadas, calças surradas, passajadas e à meia canela, a denotar a herança de outras gerações; cabeças tosquiadas, em tentativas vãs de eliminar colonias de lêndeas e piolhos nascidos na imundice própria da pobreza...

"Heróis do maaaaar nooobre povooo............" - o som diminuía, à medida que se caminhava na sala, e era pouco mais que um sussurro sujo na última fileira de carteiras.

-Podem sentar-se!

-Tragam os trabalhos de casa!

-O menino Luís para o quadro!

As ordens sucediam-se a um ritmo alucinante, manhã adentro. O Luís, sentava-se numa das carteiras a meio da sala. O pai era o guarda-nocturno do vilarejo, e a mãe era lavadeira. Nenhum dos dois sabia uma letra do tamanho de um camião. - Oh Sr. Dr. Professor, a gente nunca aprendeu, porque a gente não fez mais nada a não ser trabalhar! A gente mesmo que queira não pode ajudar o rapaz! - Dizia o Rameloso, alcunha dada ao pobre diabo do guarda-nocturno que varava as noites em claro. - Ouve lá oh Joaquim, o gaiato é burro que nem uma porta! Arranja-lhe mas é um trabalho na estranja, ou a guardar cabras na serra! Só está aqui a atrasar os outros! - O Joaquim Rameloso, Ferreira de seu nome, lá dava meia volta, de cabeça em baixo, envergonhado, mas nunca derrotado.- (Se os outros aprendem, o meu também há-de aprender, ora essa!) Era o orgulho parvo dos pobres, com vontade, mas sem coluna vertebral.

O Luís levantou-se a medo, tentou não arrastar a cadeira, e encaminhou-se com passos pastosos até ao quadro de ardósia negra.

- Resolva o problema: O Sr. João foi comprar um metro de tecido, pagou com uma nota de cinco escudos, recebeu troco de vinte e cinco tostões. Quanto custou o metro de tecido?

O rapazinho tinha agarrado num pedaço de giz branco, a mão tremia-lhe com tal violência que ele deixou cair o giz duas vezes seguidas, antes mesmo de o professor acabar de ditar o problema.

- Tens mãos de aranha! - Gritou ao mesmo tempo que descascava uma vergastada com o ponteiro no pescoço do passarinho assustado.

Os joelhos batiam um no outro com força. Agarrou o giz, e olhou para o quadro, cego, surdo, mudo, vazio como um balão. " Cinco contos, um metro, tecido, quem? O Sr. João....." não fazia ideia do desfecho daquilo tudo, agora tremiam-lhe também os lábios. O professor tinha-se levantado, e estava a um passo dele. Antes mesmo que conseguisse processar mais alguma coisa, sentiu um puxão de cabelos, seguido de um impulso que o fez espetar uma cabeçada na ardósia dura e fria. Pensou que era o seu fim, conseguia distinguir os risos abafados da fileira de carteiras da frente, sentiu os olhos esbugalhados dos companheiros de trás. Por baixo dos calções de cotim azul, uma risca de liquido amarelo corria até entrar nas meias brancas e por fim em gotas grossas, desenhava uma auréola molhada no estrado de madeira.

A vergonha doía ainda mais que a testa, ou a cabeça, ou o pescoço...

Voltou para o lugar, encolhido enxovalhado, um quase nada no espaço daquela sala de aula.

- Ditado! - Outra vez a voz de comando.

"A Tia Rita bebeu a xícara de chá........" o tom das palavras era monocórdico e metálico.

Feito o ditado, os alunos formavam uma fila indiana em direcção à mesa do Dr. Andrade, todos por ordem, a mesma ordem que imperava dentro das portas daquele pequeno mundo e que era, todos o sabiam, inalterável, imutável, absoluta.

- Muito bem menina Madalena, zero erros, Bom Grande! - o sorriso dirigido à rapariguinha empertigada tinha assomos de subserviência, afinal de contas era a neta do Presidente da Junta de Freguesia, homem de princípios cristãos rígidos que sobrevivera a cravos e palavras de ordem, com a benção dos Santos e uma mão pesada.

- Dois erros Manelinho, da próxima vez tens que ter mais atenção - o filho do veterinário, o Dr. Júlio Horta, era um rapaz miudinho, franzino, com o nariz pingão, e uma asma crónica que não o deixava medrar como as outras crianças. No entanto, era branco, muito branco.

A fila serpenteava da mesa do professor, para as respectivas carteiras de madeira inclinadas.

A menina dos 5 olhos, repousava ainda no tampo envernizado.

- Vinte erros!!!!!! - o olhar raivoso e escarlate ameaçava saltar das órbitas a qualquer momento - vinte erros!!!!!! - Burro! As mãos! Já, as duas mãos!

Viriato Afonso Henriques Pinto era o filho do coveiro. Espigado, muito mais velho que a grande maioria dos seus companheiros, rapaz escanzelado, os ossos a apontar debaixo da pele macilenta, os cantos da boca pejados de frúnculos, os olhos cheios de medo e vazados de esperanças.

Era um dos nove irmãos dos Pintos, o pai vivia com duas mulheres, duas irmãs, gordas e infectas, e já ninguém sabia bem quais eram os filhos de uma e de outra. A promiscuidade era tal, que o Padre Humberto, tinha já pedido a intervenção divina do Bispo da Comarca que pessoalmente tinha retirado as duas meninas mais velhas do barraco onde viviam.

Agora estavam no Convento das Beneditas, perto de Deus e longe da fome do pai.

 Cassiano Pinto, o pai, era atrasado, diziam os vizinhos, tinha uma figurinha, esguia e esquálida, a espinha curvada, da picareta, os olhos esfomeados, e as unhas encardidas de terra santa do cemitério - São todos uns atrasados, os desgraçados! - Dizia a voz crua do povo.

 Toda a gente sabia que o Cassiano, na última feira de S. Mamede, tinha comprado 12 pares de botas a um cigano raiano, que lhe fez um desconto de quantidade. Já lá vai um ano, e na casa dos Pintos, ainda ninguém precisou de calçado. O Viriato, lá vinha com a biqueira das botas amputada, e os dedos de fora uns bons dois centímetros, a arrojar pelo chão.

É que o Cassiano não se importara de todo com os números que as crianças calçavam, e houve que fazer as necessárias adaptações.

Viriato estendeu as mãos, sentiu uma corrente de ar, a anunciar a velocidade do artefacto e logo a seguir uma dor lancinante, primeiro numa mão, depois na outra, uma vez, e mais uma e ....fechou os olhos e deixou de contar. Cerrou os dentes, mas não conseguiu impedir que as lágrimas corressem em fio.

O Andrade finalmente deu-se por satisfeito. Das palmas das mãos do rapazote, brotavam bolhas de sangue como ervas ruins num campo são.

A campaínha do recreio fez-se ouvir, num som forte e purificador.
Ao menos durante aquele quarto de hora, rapazes e raparigas podiam respirar à vontade.

O Viriato, o Ângelo e o Prudêncio, correram para trás do edifício principal, sacaram de uma onça de tabaco de enrolar, fizeram uns cigarros mal-amanhados e sorveram o fumo com a força da meninice e a ânsia da liberdade por cumprir.

Por breves instantes detiveram-se nos cabelos dourados da menina Madalena, que brilhavam ao sol enquanto ela saltava à corda a cantar uma lenga-lenga "Pepita queria ser, enfermeira da marinha ....", como era bonita, tão bonita ....

- Aquele cabrão ainda mas há-de pagar! - rosnou Viriato enquanto mostrava as mãos em chaga aos companheiros incrédulos

- Deixa lá - disse-lhe o Prudêncio assentando-lhe um cachação na nuca - quando tu fores doutor e eu presidente da Junta, espetamos com ele no olho da rua!

- Reza que isso passa - retrucou o Ângelo já engasgado e morto de festa.

Em coro entoavam - Avé Maria cheia de graça, tens a barriga cheia de massa......"

As gargalhadas dos três amigos ecoavam por toda a escola, entre tossidelas e palmadas nas costas.

O recreio era pintado a muitas cores.

 

 

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Terça-feira, 12 de Maio de 2009

A Confissão

 

Tomou-lhe as mãos, com as suas. Pressionou-as ao de leve.

Olhou, sôfrego, aqueles membros macios, e quentes, depois mergulhou o rosto exausto no vale húmido do seu colo. Sentiu o cheiro adocicado a cravo-da-índia e açúcar mascavado que o faziam sempre ter vontade de a abraçar.

Não era altura para isso.

Pedira-lhe que ficasse mais um pouco, que deixasse todos os afazeres, só para o ouvir....no entanto agora hesitava. Enquanto descansava a culpa no leito morno, embalado pelas dúvidas que lhe assaltavam a razão, ponderava na melhor forma de evitar o Inverno nos olhos dela. Respirava fundo, imerso na brandura da sua pele, tentando guardar todos os cheiros e toques e climas daquele solo sagrado.

Pressentia-lhe uma ansiedade em crescendo. Ela estava muda, é certo. Mas havia um odor forte a pimenta do reino, que lhe crescia nas palmas das mãos e antecipava a estação das chuvas.

Ela sentada, rígida, expectante e ainda assim, calorosa e doce.

Ele de joelhos, entregue, fundido nela...

Tinha começado a chover lá fora.

Uma bátega de água, rija e consistente.

Das encostas uma enxurrada exangue escorria até à foz do peito dos dois amantes.

Então ele disse: - Não há nada mais triste do que ler o segredo escondido de outro alguém...deixa-nos num limbo entre culpa de o ter feito e a dor de o saber....

O silêncio, quebrado por breves instantes pela voz dele, voltou a falar mais alto. Sobejaram as palavras ditas num sussurro. Permaneceram no ar, caladas, a perpetuar distancias.

Doíam-lhe os joelhos dobrados no chão de cimento mal afagado - ainda bem - pensou com uma pontada de exaltado prazer. O gozo antecipado da expiação.

- Devias saber que o conhecimento é o berço da dor.

Ele levantou o rosto incrédulo. Ela falara...

Ergueu-se devagar, lambeu as feridas e os restos de silêncio agarrados às suas mãos, e olhou-a acanhado.

Ela esboçou um sorriso maternal, breve e fugaz.

- Agora vai. A chuva lavou a culpa, a tua e a minha...

 

Image by Pablo Picasso "Portrait of A Woman" 

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