Deixava-se encantar pela fragilidade das coisas. Prendia-se no mimo do pormenor.
Cantarolava uma canção de roda, envolta em atenções e vapores etéreos.
A colher de pau, deixava rastos em espiral no fundo da panela de cobre, rendida ao aroma forte do xarope de laranja alindado com um canudo de canela.
O ponto pretendido estava no exacto e irrepetível momento, uma calda fina e delicada, pronta para embeber o bolo fofo que arrefecia ali mesmo ao lado, e espalhava no ar um aroma a regresso. "é assim que deve cheirar o céu..." pensou semicerrando os olhos com deleite.
Desligou o bico do fogão, e a chama anilada extinguiu-se deixando uma pontada de vazio a pairar no colo de açúcar pilé.
Tirou um palito da caixinha de papel, e furou o bolo, meticulosamente e sem pressas. Como se daquela tarefa dependesse o caminho nocturno da sua vida. Quando terminou, pegou num pano de cozinha, tomou a panela de cobre bem polida, e verteu o xarope sobre toda a superfície do bolo. Espalhou o líquido brilhante, ainda morno com a ajuda da colher, e deixou-se ficar, ali encostada, os cotovelos a servir de apoio, o néctar a ser absorvido pela esponja doce do bolo.
A boca aguou-se-lhe de desejo... Cobriu o doce com a rede protectora, correu as cortinas floridas, e com um sorriso satisfeito, saiu fechando a porta da cozinha atrás de si.
A salinha de estar, muda, amadurecia a tarde, envolta numa gaze fosca. Lá fora o dia exalava um semblante carregado..." Santa Bárbara, bendita, hoje não passa sem cair uma trovoada!" ladainhou enquanto afastava as cortinas de organdi, para espreitar o astro.
Era cedo ainda... Sentou-se no sofá, ajeitou a saia, alisou o tecido, arreliavam-na os vincos.
Pegou no talego de linho ajurado, abriu os cordões de seda entrançados, e tirou lá de dentro o naperão de renda que tardava em terminar...as mãos pequenas e redondas pegaram na agulha de metal fino, afagou o trabalho executado, com o mesmo cuidado que punha em tudo o que fazia. Os dedos curtos e roliços, eram de veludo fino, sem a mais pequena mácula. Demorou-se naquela carícia impassível
Não tinha vontade. Guardou tudo de novo, no talego, com ordem e método. Inquietava-se. Às vezes nem se reconhecia, Tinha repentes que a assustavam. Sentia uma uma tontura que a deixava mole como pasta de açúcar.
Três batidas na porta interromperam a placidez da tarde.
...
Caminhava num passo pastoso e arrastado, o ombro sempre a roçar a parede das casas da rua. Não procurava a sombra, apenas o contacto. A tarde estava macilenta como um velho doente, tomado por uma maleita mortal. Sentia o calor crescer-lhe no cocuruto destapado, e o suor a ensopar-lhe a roupa escura e pesada.
Caminhava sem pressas, o caminho sabia-o de cor, e a meta era certa como a morte. Ia sussurrando frases soltas, naquela mesma calma que punha no passo.
O fim da rua era já ali à frente, depois era só atravessar para o outro lado e fazer o caminho inverso, uma vez e outra, e outra... Desde há uns tempos, sempre a meio da tarde, àquela hora, nem mais um minuto, nem menos, fazia uma pausa. Descansava a inquietação e aplacava a imaginação prodigiosa que todos diziam ter.
O Profeta. Era assim que o conheciam nas redondezas, por culpa das suas palestras improvisadas sobre inflamadas previsões apocalipticas.
Nascera a melhor maçã do pomar, crescera forte e feliz, mas as águas revoltas da adolescência assolaram as suas margens e deixaram à deriva o frágil equilíbrio próprio da idade. "Passou-se de todo! A pouca sorte dele foi a tropa, ai foi, parece que quando tirou as sortes conheceu pessoas estranhas, dizem que lá na recruta se entupia com cigarros daqueles..." diagnosticavam uns e outros, na senda do insondável. "Foram os livros, ah não tenham dúvidas, leu tanto que queimou o cérebro todo" atiravam certezas de barro.
Um relâmpago alumiou a tarde fechada. Acelerou o passo, chegou à frente da porta já curvado sobre si, as mãos a tapar os ouvidos. Com o pânico a comê-lo, desfechou três batidas urgentes, com o trinco de ferro forjado.
...
Vivia há dois anos na companhia opaca da solidão. A avó amanhecera pendurada numa corda grossa na viga de ferro da chaminé. Dois anos... numa manhã de um dia quente como o de hoje. A mesma viga onde noutros tempos os enchidos curavam ao sabor do fumo e do tempo. Não se despedira sequer. Fora no mesmo silêncio com que pontilhava os dias em companhia da neta. Não havia nada para dizer... Os pais deixaram-na aos cuidados da avó num sopro de alívio. Mal sabiam o que fazer com aquele ser estranho que Deus lhes dera " a criança tem um Deficit Cognitivo severo", informou o Dr. Marat, com a solenidade que a ocasião exigia. Tinham ficado ali, pasmados, de boca aberta, na posse daquelas palavras de malabarista " o que o Senhor Doutor quer dizer, é que a rapariga é atrasada, não é?"
Aprendeu a falar quando os outros aprendiam a escrever, e até hoje não sabe mais que meia dúzia de letras do alfabeto, e contar pelos dedos até dez.
Saía pouco da casa, era o seu reduto. Dentro daquelas quatro paredes, não havia risos de escárnio por causa da sua forma atabalhoada de falar. Aqui dentro desta caixa, o mundo é simpático, e só entra quem ela quer, como ele...
...
Levantou-se de um pulo, correu para a porta e abriu-a para deixar passar uma criatura ofegante. No mesmo instante o som gutural do primeiro trovão fez estremecer as vidas e os vidros das janelas. Ele afundou-se no sofá de napa enroscado como um animal acossado. As mãos a tremer abraçavam a cabeça, os olhos escancarados estampavam um terror genuíno e antigo e o corpo todo naquele mesmo frémito expelia gemidos aflitos.
Enquanto rezava Magnificas e invocava as graças de Stª Bárbara; corria estores, fechava portadas, corria cortinas, até que por fim um manto de negrume cobriu toda a sala, corrompido apenas pelos flashes eléctricos que entravam pelas frestas da porta da rua.
Ajoelhou ao lado do sofá "shh shh já vai passar, não te preocupes " alinhavou de forma confusa.
Ele latia de medo. Ela ardia em segredo.
Por fim o céu abriu-se em fitas grossas de chuva, e ruas e passeios deixaram-se galgar por correntezas fartas. O dia cedeu, e a noite cálida serenou os elementos e reconciliou o estio.
Acariciou-lhe a mão ainda encrespada, e sentiu aliviar-se a pressão. Ergueu-se devagar, ainda em guarda, olhou-a, tirou as mãos da cabeça, e depois sorriu-lhe. Ela acendeu-se " sabes o que fiz? Bolo. Bolo de laranja como tu gostas!" O sorriso abriu mostrando uma fileira de dentes mal tratados. "Então venha de lá o bolinho, venha de lá o bolinho, venha de lá...." e continuava até outra qualquer frase a destronar.
A ele não importava que ela mal soubesse falar. A ela não importava a alienação dele.
Lá fora a noite enchia-se de frescor e estrelas, dentro da casinha do meio da rua, a rapariga enchia-se de vida e o rapaz de razão.
Em êxtase, ela ouvia-o profetizar as maravilhas do fim do mundo, e o coração crescia ao sabor do bolo de laranja...
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