O dia chegou destemido. Entrou em jorros de luz pelos vidros da janela sem se fazer anunciar, como uma visita inesperada.
Os meus olhos cegaram de tanto sol. Senti a noite escorregar pelos lençóis de linho até se diluir no rasto de pó dourado.
Uma profusão de claridade, encheu o ar de partículas brilhantes que te tocavam a pele, e te lambiam as costas nuas.
Foi nesse instante, nesse momento em que o toque se sublima, que duvidei da tua presença.
Serias tu corpo, e carne e sangue? Ou apenas restos de um qualquer cometa espalhados em mim...
Acho que sorri. Eras tu. Corpo, carne, sangue. Meu.
Cheia de certezas, e ainda ébria de tanta luz, levantei-me.
Senti os pés queimarem. O amor usado na noite, fervia em borbotões derramado pelo soalho.
Apanhei-o com cuidado, e antes que o dia o invejasse, guardei-o a sete chaves, num sítio que só eu sei.
Com as mãos em labaredas, enxotei a luz com as cortinas, e deitei-me outra vez.
A penumbra embalou a manhã, e eu abracei-te iluminada.
Pics by Meldevespas
Ficava aqui a falar dela, horas a fio. Dela ou do que me lembro dela.
O tempo encarrega-se de retocar as memórias, editar as imagens que fazemos das coisas e das pessoas. Agora, assim, ao longe, tudo me parece mais belo. Notam-se os remendos aqui e ali, numa ou outra passagem, ou em algum momento que se revela na escuridão das noites mal dormidas. A verdade, é que já não há noites mal dormidas, agora que penso nisso, atinge-me em cheio, a seco até, atrevo-me a dizer, a certeza do sono profundo e conciliador que me vem acontecendo.
Horas a fio, se quiser. Fora parte isso da cor, e dos retoques, está tudo claro como o dia de hoje, aqui, e aqui - apontou para a cabeça com o dedo indicador, e depois, pausando as palavras, com a mão aberta tocou o peito.
Era cheia de vidas. Assim, mesmo, no plural! Vidas. Ela era muitas. Ria-se do nada, brandia gargalhadas alto e bom som, escoando nela toda a alegria da terra. - descansou as palavras num meio sorriso - Parece que estou a vê-la... ria alto, a boca perfeita abria-se sem pudores, e jogava a cabeça para trás num espicaçar constante. Os cabelos negros tomavam conta de toda a moldura da terra, e rasavam os sentidos de perfumes. - falava entre silêncios e cambiantes poéticos - Ria-se de tudo, e de todos... se era bonita? Era bonita sim. Não que fosse uma estampa, dessas das revistas e do cinema, não, nada disso. Tinha lá os seus trunfos, se calhar era um bocadito...original. É a palavra que melhor a define. Os olhos deveriam ser menos afastados, os lábios mais finos, a silhueta mais delgada... - soltou uma gargalhada - era o que ela carregava dentro dela, ou sei lá onde, era isso que era bonito. Era esse não sei o quê, que ela transportada num esconderijo só dela, que provocava aquela vertigem à sua passagem.
Também há quem diga que era...única... não gosto desse epíteto, Única! - escarneceu - Estaria a condenar as pedras do caminho a nunca mais serem pisadas daquela forma. Não era única, não tinha esse direito.
Eu avisei, horas a fio a desfiá-la, a tecê-la...sem me cansar - atirava um olhar atulhado de vigor de outras épocas - mas antes que perca o fio à meada, sim porque a minha boca e o meu cérebro, andam cada vez mais por estradas desavindas. E isto...isto é a foz e a nascente, o derradeiro lugar. Talvez, não ainda, mas ela é o meu derradeiro lugar.
Dizia eu que ela era muitas a um tempo só. Quando chorava, e se ela chorava Santo Deus.... - as mãos impacientavam-se de sal. Estancou. Mudo -... chorava a cântaros, e nos dias de chuva, aqueles dias cinzentos em que a tristeza é um estado de alma, nesses dias vidrados pelas janelas embaciadas, ela deixava de ser e escorria pelas paredes numa humidade de dar dó - uma sombra tombou em ameaça nos olhos fundos - era assim quando chovia, ou quando ouvia outros prantos que não o seu. O contágio era súbito e fatal.
Justiça lhe seja feita, tão depressa desaguava na dor, como renascia em fogos. Ela era também o fogo...como diz? Se ela era tudo? Tudo...mais que tudo.
Punha rubores onde pousava os olhos, e deixava rastos de labaredas por onde passava as mãos. Aquela mulher tinha o corpo em ferida aberta, do lume que o queimava, ardia devagarinho em lugares onde o recato aconselhava esquecimento. Se soubessem - podia quase ver-se o caramelo aquecido pelo desejo, escorregar-lhe pelos cantos da boca, num torpor de lava - se ao menos pudessem ter visto, como ela se entregava, mansa como uma cadela de colo, submissa e terna como um carneiro na Páscoa,.. cavalgava-a por montes e vales, banhados os dois em albufeiras de suor. Cada galope no dorso dela, era um passo para o abismo...ela tinha o abismo nos olhos e na ponta dos dedos com que me tocava inteiro... - as mãos branqueavam, apertadas uma na outra, e os olhos, esses perdiam-se na luz sépia da lembrança.
Porquê? Tardava a pergunta...porquê...Cheguei a perguntar a mim próprio. Nunca tive uma resposta, melhor, nunca houve uma resposta.
O sitio dela era em mim, percebe? Agora pergunto eu, percebe? Em mim...mas não fui compreendido, os abraços desatavam-se, ela deslizava pelo meu amor, fugia-me... não havia saída. Podia existir sem ela, mas nunca fora dela. Entende?
Então lamento...não sei dizer de outra maneira.
Como? Estava a dormir. Ela estava a dormir. Parecia uma criança ainda com a alma transparente. Sentei-me na beira da cama, toquei-lhe o peito destemido, subi pelo colo, até ao pescoço de garça, de graça... - sorriu triste - detive-me por ali, senti a macieza daquela pele adamascada, apertei um pouco, só um pouco, mas firme. Os seios por fim calaram, ainda altaneiros, no entanto ausentes.
Respirei fundo, inspirei as réstias de desafios e por fim, já com ela a correr-me nas veias, levantei-me e saí, em paz, completamente em paz.
O sentido da vida confundia-se com as curvas da estrada. A vida ela própria, fundia-se no macadame em delírio com o sol a pino. Limpou a testa com a manga da camisa desbotada, e com a mão em pala sobre os olhos, levantou a cabeça em direcção ao astro rei, "hoje morre-nos a alma, queimada viva!" murmurou entre dentes enquanto baixava a cabeça e encetava nova etapa.
O cão seguia-o, preso por pouco mais de um metro de sisal grosso, atado à laia de coleira. Uma existência dedicada e servil posta à prova a cada anoitecer no meio das moitas.
O homem vivia de sombras, bebia penumbras com sofreguidão, e alimentava-se de cada noite que caia sobre aquelas paragens, mas era no cume do dia, naquele momento em que o sol é só orgasmos e sabedoria, que ganhava forças e altura.
Pela berma da estrada, mesmo na rebentação das ondas de calor, seguiam a par, o homem e o cão. O homem. Livre, os cabelos e vermelharem o passo, uma juba farta e sem grilhões, o corpo curado em fumeiros de vento, seco e esguio, os olhos cheios de caminhos por fazer, a boca rasa de silêncios, os braços carregados de vozes e rumores. O cão, pisava ao de leve, quase pairava, para não entrar de rompante no espaço fecundado pelo homem. Um olhar medroso, insignificante naquela berma de estrada esmagadora e cruel ao mesmo tempo.
O sol descrevia um arco, esfumando-se em pós de incenso.
As duas criaturas, lado a lado, imolavam o dia, envoltas em gazes de lusco-fusco, e como a luz, extiguiram-se em estrelas e sopros de assombro.
Destaque! Ahhh poizé!
Não sei como se processa esta escolha do Sapo, (confesso que me acende a curiosidade), mas todos os anos, me tem sido dada esta honra, nem que seja por uma vez.
Cá "o je", claro está, fica babada, com tudo isto.
Ter a casa assim, cheia até à porta, dá-me vontade de desatar a fazer bolos e a servir chás e refrescos pra toda a gente!
Sejam bem vindos, façam de conta que estão em casa, demorem-se o tempo que quiserem.
Obrigada pela visita e voltem sempre.
Sapo, mais uma vez, és um querido!
Edit: Pááá tive mesmo que fazer edit!!! Ainda não tinha percebido que a escolha de hoje, para os destaques do Sapo, esteve a cargo do Amigo João Palmela! Este homem estraga-me com mimos. Muito muito obrigada pelas emoções fortes amigo João!!!