Então parece que no Domingo, da uma da tarde até às três, vão ler, a qualquer altura (ehehe) uma estória cá do tasco, na rádio!!! A coisa vai dar-se no programa a História Devida da Antena 1, que vai contar com a presença da escritora Ana Nobre de Gusmão. Curioso, ou não, é que o programa vai passear-se pelo meu Alentejo, logo a minha pequena estorieta até faz todo o sentido.
O conto de que falo é este, e é completamente real :DD:
Se quiserem saber mais, vão aqui, está lá tudo!
Desde já obrigada e bom fim de semana.
Naquele momento, apenas a falta de um espelho, pequeno que fosse, a entristecia. Gostava de ver no espelho o poder daquilo que sentia. Era madrugada, o vento fininho dos primeiros dias de Novembro, aventurava-se por debaixo de portas e janelas, e enregelava o quarto atarracado.
Rodopiou, uma e outra vez, descalça. O frio das lajes do chão faziam com que se sentisse ainda mais viva ... Mal conseguira pregar olho. Fora duro chegar até ali. Anos a fio de penas e martírios. Noites desfiadas em rosários de lágrimas, tantas vezes de arrependimento. Dias calados em febres de saudade.
Sentou-se na cama estreita, tonta de tantas voltas. Se alguém a visse, antes do nascer do dia, a dançar daquele forma, na certa temeria pelo seu equilíbrio emocional. Abafou uma gargalhada com a mão em concha. Uii - doíam-lhe os dedos dos pés! Massajou-os devagar, tinha tempo ainda. Ninguém lhe mandara andar em pontas no chão de pedra! Deixou-se cair para trás, os pés ainda no chão, os braços debaixo da cabeça, o corpo todo ao abandono feliz daquele momento. A vida estava a ser boa pra ela...pensou.
Fechou os olhos por um momento, via a outra vida dela. Os cabelos cor de palha compridos, a franja sempre a cair para os olhos, a saída da escola às 5 da tarde, os lanches na pastelaria do Amadeu com os amigos. Acendia um cigarro assim que caía numa das cadeiras à roda da mesa - Ufa! Esta época de exames está a dar comigo em doida! Estou mais que morta! - Puxava uma e outra baforada do cigarro e expelia o fumo com gosto. Depois chegava ele, vinha pelas costas dela e como sempre dava-lhe um beijo no pescoço - Olá linda! Então como foi o dia? - ficavam ali, no meio de toda a gente, apenas um com o outro, sem intromissões, falavam do dia, trocavam novidades e beijos, e depois do lanche saiam abraçados. Faziam amor no banco de trás do Renault 5, e despediam-se com a boca ainda cheia de promessas.
Ele entrou em Medicina, no Porto, ela adiou a Universidade. Era muito nova, sedenta de dar. Propôs-se para uma missão em África. Tomou-lhe o gosto e voltou. Não sabe bem como, mas as cartas começaram a rarear, telefone em muitos lugares era apenas uma miragem, e sem dar por isso a ânsia da paixão, deu lugar à saudade, que deu lugar à recordação doce de um lugar longe.
Não houve choros, nem culpas. Soube que ele casou. Mandou-lhe um cartão de felicitações, e recebeu outro a agradecer.
Numa das missões, conheceu o Toti, missionário como ela, enfermeiro de profissão. Casado. A distância de casa acabou por os juntar na cama. Espantaram o medo, as diferenças e diluíram a cor da pele de um e de outro num alambique de suor aquecido na sofreguidão das noites quentes.
Desta vez não foram feitas promessas, nem juras de amor para sempre. Ali naquele lugar o Sempre era o dia de hoje e cumpria-se em cada criança que faziam sorrir.
Suspirou fundo. Desde muito cedo na vida vivia as relações com fervor, entregava-se sem reservas quantas vezes não foi mal interpretada, incompreendida até, quantas vezes ainda o era. Este pensamento provocou-lhe nova risada.
Passou a mão pelo cabelo. As dificuldades logísticas durante os anos de missões, não lhe deixaram outra saída que não fosse cortá-lo, bem curto. Claro que tantos anos depois já estava habituada. Gostava de se ver. Dava-lhe em ar mais jovem, irreverente. Agora achava que já não conseguiria ver-se de outra maneira.
Os tempos em África tinham-lhe dado sabedoria. Não uma sabedoria aprendida nos livros, levada ao colo por bicas curtas e cigarros em fio, não, era antes uma sabedoria das coisas. De como o sol se põe todos os dias com tonalidades diferentes, de como a terra se agarra à pele e enche os pulmões de um querer cantado em dialectos à tardinha. De como se cai com os joelhos no chão com a certeza de uma mão firme para nos erguer.
Agarrou a mão, e esqueceu a dor. Edificou-se por sobre o pó que às vezes foi.
Olhou para a janela pequena. O sol estava a nascer. Tinha tanto que fazer. O coração batia cada vez mais depressa, tão descompassado que parecia ir saltar-lhe do peito. Podia viver com muito pouco, com quase nada, mas o coração tinha que estar cheio, cheio ao ponto de derramar para fora e sobrar para quem estivesse por perto. Já se tinha apaixonado antes. Mas assim...nunca.
Levantou-se da cama. Calçou as sapatilhas de lona, retirou o fio com o crucifixo de cima da mesinha de cabeceira e passou-o pela cabeça. Ajeitou a cruz por cima da veste branca, à altura do coração. Depois fixou a cadeira ao canto do quarto, deu um passo até lá e pegou no véu branco. Colocou-o num gesto repetido, o cabelo por dentro, imaculado. Era o último dia que o usaria. Nessa mesma tarde, na frente de todos, receberia outro, negro, definitivo. O enlace preparado nos últimos três anos ia ter lugar. Ia poder finalmente apenas amar.
Faltavam-lhe as palavras. Em tantos anos nunca tal lhe acontecera. Eras de palavras em catadupa, despejadas em páginas e páginas ordeiramente arrumadas nos escaparates. Romances frustrados, desventuras e mágoas, lágrimas e traições, paixões fervorosas e abraços arrebatados, fins trágicos e corações destroçados.
E agora? Agora chegada a hora da verdade, o momento supremo do discurso inflamado, a chuva de meteoros brilhantes, a ovação pungente repetida em encores a uma só voz....Agora...agora....nada!
A Meisterstück monogramada na mão, a folha verde clara, perfumada de colónia Vétiver, em frente...vazia...flores pastel, esbatidas em jeito de moldura escarneciam diluídas em sorrisos verde água.
Costumava sentir-se impelida a escrever pelo desejo secreto de semear penas e escombros nos corações frágeis que devoravam os seus contos. Aquelas pessoas reviam toda uma existência de promessas vãs e sentimentos violentados nas páginas de um daqueles folhetins debitados por ela. Alimentara-se séculos a fio daquela pontada doce de sadismo. A dor provocada nos peitos maltratados pelo desamor. As palavras aventadas sem pudor, frases inteiras de solidão, parágrafos de abandono e despedidas prematuras.
Ah! - pensava ainda agora, vazia - como tinha sido feliz enquanto paria livros como coelhos, uns atrás dos outros! E agora nada. Lembrava-se, já de uma forma desfocada, é certo, de como o coração batia mais apressado a cada nova capa, homens fortes e másculos, tomavam nos braços donzelas indefesas que os olhavam em prece, caladas. Títulos sugestivos " O amor de toda uma vida", " Adeus meu amor!", "Não me esqueças!", " A mulher misteriosa", um rol de banalidades, uma receita certificada e eficaz de gestos teatrais e desfechos melodramáticos...
Rodou a caneta por entre os dedos. Sentiu o peso frio do aço. O peso pluma do vazio de palavras que a tomava de assalto.
Fechou os olhos rendida num suspiro fundo.
A Meisterstück deslizou até ao chão alcatifado a Arraiolos. Em cima dos joelhos, o genérico final, uma folha verde água, perfumada de Vétiver, marginada de flores pastel, nua de palavras.
Para Vou de Colectivo - "Hábitos de leitura" - Outubro/09