Eusébio subia a rua sem pressas de chegar. O empedrado da calçada estava molhado, resignado a um dia inteiro de uma chuvinha delicada. Subia a rua de mãos nos bolsos, olhos no chão enquanto ia pontapeando uma pedra que fugia à sua frente.
As calças de cotim remendadas nos joelhos com uma rodela de napa alaranjada, estavam encharcadas até quase aos joelhos, e os sapatos de atacadores pareciam montes de terra andantes. O campo pelado onde se juntavam para jogar à bola depois da escola, estava cheio de atoleiros e lamaçais. Chovera a semana toda, sem tréguas. Subia a rua de olhos no chão, pontapeando o cascalho. Pensava na melhor maneira de abordar o sucedido. "Mãe, desculpa, aconteceu um acidente...", "Mãe...foi sem querer, juro pela minha saúde!". A mãe estava farta de juras, acidentes e sem quereres. O melhor era um directo "mãe, parti o vidro da janela da Irmã Margarida". Já sabia que a seguir era o habitual chorrilho de bofetadas, depois seria arrojado até ao quarto pelas orelhas e por fim a mãe exausta diria mal à vida dela como sempre num pranto rezado vezes e vezes sem conta. Custava-lhe vê-la assim, mas sentia-se preso a uma linha que não se via, apesar de ter a certeza que ali estava. Uma linha que lha atava os pés, as mãos e todo o seu ser a uma espécie de fado, ou sina ou o que quer que lhe chamassem, e que o puxava sempre para o abismo, para aquela parte do mundo em que a luz está sempre apagada e só há tropeções, cacos e feridas abertas.
A Irmã Margarida, de todas as formas, amanhã, logo cedo, havia de estar a bater-lhes à porta a cobrar o vidro e a alma fugaz do gaiato. "Eu bem a aviso D. Deolinda, o rapaz sem Deus não resiste! Nem que seja levado pelos cabelos, mas tem que ir à catequese!".
Pronto, "estava o baile armado", pensava num pontapé forte que fez o cascalho bater no contentor do lixo, com estrondo. A hora de catequese com a Irmã Margarida era uma tortura. O bê à bá do pecado era o "pão pingado", ao ponto de se poder dizer sem sombra de dúvida que mesmo o respirar era um pecado mortal, portanto merecedor da maior das penitências. Mal sabia ela que o cumulo da penitência era ficar ali uma hora, contada minuto a minuto pelo relógio de parede, a ouvir o tom pernicioso da sua voz.
O melhor era mesmo desembuchar! Acelerou o passo, deixando para trás a pedra aliviada.
- Mãe! Cheguei... - entrou na cozinha. A mesa estava já posta, os três pratos nos lugares marcados. O pai à cabeceira, no comando, a mãe à direita dele, (na verdade a mãe, mais parecia uma formiga, quase não se sentava, atendendo às palavras de ordem do homem da casa: "Um copo de água!", "é só este o pão que há cá em casa!?", "Dá cá o vinho!"), à esquerda ele. O lugar vago, na outra ponta da mesa rectangular, era ocupado de tempos a tempos por uma dor estreita nos olhos da mãe.
- Andei a jogar à bola, no campo da Igreja...com o Basílio e o Cajó...ehp....mmm...parti um vidro da janela da casa da Irmã Margarida, ela diz que vem cá dizer-te, são vinte e cinco tostões. - estancou, sem fôlego, os olhos na nuca da mãe, que continuava de costas para ele, de frente para o fogão a vigiar as batatas que fritavam na frigideira cheia de azeite borbulhante.
- O teu pai, está a chegar, é melhor estares bem caladinho. resolvemos isso amanhã. Hoje joga o Benfica. - a voz da mãe, tremia, num tom esbatido. Era a voz do medo, Eusébio, conhecia-a bem. O desfecho da noite dependia do silêncio dela e do resultado do jogo de futebol, que ia começar na televisão daqui a pouco.
O Cabo Zacarias Resende era benfiquista ferrenho. Cada partida era uma luta renhida, uma disputa taco a taco, no terreno de jogo e na vida dele. Militar desde o berço, Zacarias, desde muito cedo aprendeu na pele o frio do aço, e na vontade a força férrea da obediência. Deixado à mercê da inveja e outros tombos, a violência ganhou raízes no seu peito, criou corpo nas suas mãos, e desabrochou nos seus olhos a cada caminho mais apertado. E para Zacarias todos os caminhos eram apertados. Uma mulher incompetente e amorfa, filhos desmiolados e sem perspectivas de espécie alguma.
O mais velho herdara o nome do avô paterno, nem sequer fora uma opção. Cosme Resende. O mais novo, já com o avô morto e enterrado, recebera a bênção de Eusébio, o virtuoso jogador que encantava Zacarias e o deixava embasbacado.
A porta da rua bateu seca. Na cozinha, mãe e filho de imediato adoptaram uma posição de sentido. Eusébio podia jurar que ouvira a mãe engolir em seco. Teve pena dela. Tinha sempre. O jogo era difícil, as competições europeias, um clube de topo. Era bom que a sopa estivesse ao gosto do Cabo, caso contrário alguém iria pagar a factura.
Sabia bem como a mãe escondia por baixo da roupa as nódoas negras dos dedos de ferro do pai, os vergões nas pernas desenhados a rajadas de cassetete. Conhecia o olhar caído, o cabelo nos olhos a guardar segredo de carícias pesadas que brotavam no alvo da pele em pontos roxos. Sabia de cor todos os artifícios usados para proteger a reputação do seu homem. Sabia porque também ele estava farto de os usar.
Zacarias era um homem robusto, largo de ombros e de baixa estatura. Do Ultramar trouxera uma perna aleijada, que arrojava pela calçada e anunciava a sua chegada a casa ao fim da tarde. Era o sinal.
Eusébio fugiu para o quintal, tinha que limpar os sapatos antes de tudo, sacudir as calças, ajeitar a camisa, alisar o cabelo. Um pelo fora do lugar, qualquer coisa era o mote para mais uma discussão sobre a inutilidade dele e o desmazelo da mãe.
O jantar decorreu na mesma paz gorada de sempre. O jogo desenrolava-se à frente deles. Zacarias nem olhava o prato, empurrava garfadas de comida para a boca, umas a seguir às outras. O intervalo chegou. O nulo continuava, e o guisado já frio começava a ferver dentro do homem.
- Cabrão do gaiato! Deixa-te estar sentado! O jogo ainda não acabou!, e tu minha cabra, vê se limpas esta merda toda!
Deolinda sentiu o chão fugir. Quando ele ficava assim, agora tantos anos volvidos, mais que o medo era a afronta de ter chegado àquele ponto. O ressentimento com ela própria. Não conseguia deixar de se culpar. O medo dela tinha provocado mais abalos, mais tragédia do que a força bruta dele.
Eusébio encolheu a vontade de ir à casa de banho. Sentou-se direito a olhar para o aparelho de televisão sem no entanto o ver. Nem sequer era do Benfica. O seu coração batia a verde e branco. Mas se o pai desconfiasse, ele estaria morto. Se calhar era até melhor.
A jarra de loiça em cima da televisão foi a primeira a sofrer a derrocada do único golo da partida. Os estrangeiros marcaram a um minuto do fim, e a cozinha dos Resende vivia a calma que antecipa a tempestade. O silêncio do golo.
O dia amanheceu cinzento, outra vez. Deolinda cirandava pela cozinha. Falava baixinho.
- Cosme, anda prá mesa filho. As torradas já estão prontas, e o leite está quentinho como gostas, anda Cosme, vais ver que ficas bom num instante.
Eusébio olhava-a encostado na ombreira da porta. Era invisível para os olhos perdidos do cirandar da mãe. A irmã Margarida parecia agora outra vida, outro Eusébio. O vidro partido em estilhaços, era uma brincadeira de criança que ria de gosto longe dali.
Cosme o mais velho dos dois irmãos, sempre fora de saúde frágil, um rapaz de alma melindrosa e corpo etéreo desde o nascimento. Tinha mais quatro anos que Eusébio. No dia que completara quinze anos, na calada da noite, tirara o cinto preto de pele da farda do pai e com ele pendurou-se pelo pescoço na porta do quarto. Zacarias, sempre o mais madrugador encontrou pela manhã os despojos daquele filho, a pele transparente, os olhos abertos no vazio, a fivela apertada a arroxear o pescoço fino.
Acordou Deolinda com um abanão - "o paneleiro do teu filho matou-se" - e saiu porta fora. Voltou mais tarde com o cangalheiro, o médico e o padre, e tratou de todos os tramites legais e espirituais como um pai deve fazer.
Eusébio olhava a mãe, o dó que sentia dela dilacerava-lhe o peito. O corpo espigado de rapazola condoía-se da culpa mastigada daquela mulher que era sua mãe, mas que tinha desaprendido de ser pessoa há muito tempo.
Era Domingo. Zacarias dormia ainda. A farda descansava numa cadeira da sala. Eusébio olhou-a, caminhou até lá, tirou o cinto preto de pele das calças e entrou no quarto do pai.
O menino sentado numa pequena rocha, olhava encantado os movimentos soltos do lápis de carvão sobre a tela. A mulher de costas diante dele, fazia magia com as mãos e um lápis, pensou. O menino estava quieto. Os gestos da mulher exerciam nele quase um estado de hipnose. Era pequeno demais para perceber a raiva contida no bico do lápis de carvão, para entender as mágoas caladas nos riscos negros pesados que iam ganhando forma na aridez da tela em branco. Encolheu-se um pouco. Era quase inverno, e àquela hora da manhã, apesar do sol se agigantar no céu, soprava uma brisa fininha, que entrava sem pedir licença pelas costas acima. Esfregou as mãos uma na outra, e meteu-as entre as pernas para as aquecer. Uma árvore de contornos fantasmagóricos, um homem solitário encostado a ela, uma chuva grossa e certa... Os riscos ansiosos ouviam-se com clareza a arranhar o papel sem contemplações. A mulher parou por um momento. Desviou-se um pouco, o suficiente para ter uma visão total e completa da sua obra. Franziu o sobrolho, arqueou o canto dos lábios. A expressão era tão fria como o desenho. Fechada. podia mesmo dizer-se triste. Depois, logo a seguir, outra vez de lápis em riste, atirou-se para o silêncio do desenho, para a tarde encoberta que aos poucos ia transbordando para fora da tela, tisnando o dia de preto e branco. O menino inquietou-se. Estava a ficar frio. Agora, já rendido, o sol envergonhava-se por detrás de umas nuvens escuras, e ainda não era nem meio dia. Olhou o céu, e temeu pelo desenho. Se chover, o homem a árvore e a chuva grossa, vão ficar ensopados, pensou aflito.
Foi então que um sopro quente encheu o vale. O menino cobriu os olhos com as mãos em concha, e caiu de joelhos na terra húmida. Sentiu o mundo parar um segundo, e depois retomar o entardecer. Baixou as mãos, outra vez geladas. A tela jazia à sua frente. Branca. Quase imaculada, não fosse uma chuva miudinha insistente, em pequenos e delicados riscos de carvão. A árvore sombreava cá fora, arrefecendo ainda mais o meio dia, e por entre os ramos o menino pode ainda vislumbrar a mulher. Planava de mãos dadas com o homem de traços negros. O vestido branco com uma bainha de lama fresca, amparava a brisa como a vela de um barco. O menino teve medo. Levantou-se. Apanhou o lápis do chão, o xaile preto esquecido ao lado do desenho. Esqueceu-se do luto daquele voo. Deixou o frio sentado na rocha. Parou a chuva com um gesto e tornou-se tela em branco.
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