Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2011

O Sorriso do Parvo

  

  

 

Era feliz, o parvo.

Ria-se dos outros, porque os outros lhe davam graça, só por isso.

E não entendia, as carrancas de alguns, quando ele desatava uma gargalhada de gosto, só porque sim.

Os outros davam-lhe vontade de rir.

O queixo espetado do Dr. Vinagre, sempre muito azedo. O avô fizera-lhe justiça com o nome, e a senhora sua mãe, feia como uma barata, oferecera-lhe de bandeja o queixinho de rebeca arrebitado, e os olhos de morcego cegos! O Dr. Vinagre era um regalo para os olhos!

Também havia o Teodoro do Talho,  com aquela cabeça de porco rosada e redonda, as mãos de vaca, e as unhas de águia cheias de caca até ao sabugo.

A madrinha que o criou desde os cueiros,  dizia-lhe - ai rapaz, és mais burro que uma parede, mas tens um olho que nem um repolho! É que não te escapa nada!

Vagueava dia e noite pelas ruas da vila. Encontrava sempre alguma alma esquecida que lhe dava uma moeda pra cigarros, ou para um poejo, na venda da esquina, e depois, na volta a casa, enchia folhas e folhas de um caderno pautado, de rabiscos, que cheio de orgulho mostrava à madrinha Aurora.

- Este rapaz! Chamam-lhe parvo! Mais parvos são eles filho! Olha, o queixo do Dr. Vinagre! Ahahah! Se ele te apanha estes desenhos interna-te na casinha dos malucos! Põe-te a pau, e não saias com o caderno prá rua!

Ria-se da madrinha, enfiando o dedo sujo de carvão pelo nariz acima, e com o caderno todo dobrado e escondido debaixo da camisola interior, fugia para o quartinho, olhando para todo o lado, e soltando guinchos de gozo.

Não dizia uma palavra. Nunca dissera. Nem em pequeno, muito menos agora.

Tinha ouvidos de tísico e olhos de lince, tinha-lhe diagnosticado o Dr. Queixo Esticado à Madrinha Aurora, há muitos invernos -  é como lhe digo! não é surdo, nem é cego, é parvo!Parvinho de todo. - as últimas palavras saíram-lhe com um azedume cozinhado pelo riso do rapaz.

A Madrinha saiu do consultório de éter, com a alma entorpecida pelo cheiro e pela tristeza, ele vinha pela mão, feliz, rindo a bom rir - aquele queixo...

Gostava de ver as raparigas. Gostava tanto!. Eram tão bonitas e cheiravam a leite quente com lírios. Sabia que não se podia aproximar muito. Já o tinha sentido na pele uma boa meia dúzia de vezes.

Elas não compreendiam que ele só queria tocar, cheirar, desvendar os segredos por debaixo das saias rodadas, ver por onde desabavam montanhas e vales, de onde floresciam as rosas carnudas na boca de cada uma.

Uma vez, no dia do seu aniversário, uma quadrilha de rapazes lá do bairro, e mais pelo gosto da tropelia, do que pelo prazer da oferta, levaram-no à vivenda das meninas.

Ficava já fora da vila, num descampado abandonado pelas artes de Deus, e farejado pelo desejo dos homens.

Era plena luz do dia, para a Madrinha não desconfiar. Se ela soubesse, era capaz de o desancar com porrada e quando ela queria tinha a mão pesada de um mineiro.

Entrou no antro de veludo vermelho, e perante o escárnio dos companheiros, demorou-se nas palpações às cortinas, almofadas, sofás e chaise-longues que por ali abundavam. Era tudo macio, como pêssegos na árvore

Uma mulher sabida e bem disposta, puxou-o para um cadeirão, e escarranchou-se de pernas abertas em cima dele.

A um gesto os outros saíram, e a maestrina,  foi-lhe ensinando com destreza a arte de atiçar animais selvagens, e no meio de risinhos e suspiros arrancados do fundo de um poço, abriu-lhe janelas nas nuvens e trouxe-o de volta ao sofá acetinado, com carícias de mel nos olhos e uma chibata de pelo de cavalo na mão.

Andou duas semanas de olhos esbugalhados, a sonhar acordado com a cor vermelha, e a ter despertares alagados de sumos de pêssegos.

Nunca mais lá voltou. Tinha medo de subir às nuvens. Tinha medo que as vertigens e tonturas se pegassem à sua pele.

 Não guardava mágoas de ninguém...a não ser talvez de dois rapazes, que um dia espalharam pela vila um boato feio sobre ele.

Ele tratava dos porcos dos vizinhos, que estavam numa pocilga comum por detrás dos quintais. E os miúdos trataram de entreter os homens que se juntavam nas vendas ao fim da tarde, para o vinho do trabalho, com estórias floreadas de cenas escabrosas de relações carnais entre o parvo e os porcos da pocilga.

Foram dias tristes. A primeira vez que sabia que os seus olhos choviam água do mar, que só vira uma vez em pequeno.

A madrinha sovara-o até ter a pele das costas empoladas, e ainda assim, se ele pudesse falar, perguntaria porquê? Não percebia as estórias dos rapazes, mas sabia que o que eles contavam era muito feio e não se fazia. Não com porcos....

Mas o tempo, como o vento,  encarrega-se de levar as coisas para longe, e a não ser os dois rapazes, que agora eram homens, e um deles cornudo de cartilha, nunca mais ninguém tocara em tal assunto.

O parvo era feliz, na sua forma despegada de o ser.

Caminhava na berma do passeio, sorria de braços abertos, para a indiferença dos outros e abraçava o nada deles, que era ao mesmo tempo o seu tudo.

 

originalmente postado neste blog em 28 de Julho 2008 

Original Zumbido por meldevespas às 09:38
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