Ezequiel acordou de mansinho, foi amanhecendo para a claridade, sem pressas, e foi também sem pressas, que despertou nele a consciência de que tinha finalmente chegado o dia que aguardava desde que o tinham aventado para este mundo.
A sombra de uma nuvem escureceu-lhe o olhar, mas não mais do que dois efémeros segundos. Hoje não era dia para amarguras. Esfregou os olhos com um vigor de outros tempos, e de um impulso pulou da cama, e puxou as cortinas grossas.
Levou a mão aos olhos, para os proteger da luz intensa do sol maduro de Agosto, e ficou ali até habituar o olhar ao massacre solar de espreitar a rua.
-Que belo dia.... - pensou - é hoje ou nunca mais!
E nunca mais era muito tempo para Ezequiel. Nunca mais era quase o tempo que ele levava de espera, de dar corda ao relógio de bolso, de gastar as solas de cabedal grosseiro no chão de barro do casarão, de espreitar a rua , abrir e fechar trancas e ferrolhos....
- É hoje ou nunca.
Deixou a água a correr na banheira de esmalte estalado, enquanto fazia a barba.
Custou-lhe levar a lâmina aos lugares mais difíceis, e tudo por culpa do sorriso de lhe crescera na boca como o dia. Espalhou a colónia de alfazema calmante, e bateu nas faces com as palmas das mão, exorcizando a energia que emergia das pontas dos dedos, e que ameaçava transformá-lo num bocado de carvão a qualquer instante.
Entrou na banheira, e pensou que seria a última vez que o faria assim...sózinho. Tocou-se com saudade. Cada milimetro do seu corpo de homem feito, tinha uma estória de cumplicidade com as suas mãos, um segredo guardado, um êxtase calado pela vergonha...
Abafou um último gemido no calor passageiro daquele lago molhado, e saiu de lá outro.
Esfregou com força o corpo todo. Arrancou da pele os restos do Ezequiel que todos conheciam, deixou em carne viva um homem novo. Um homem capaz de andar no mundo como todos os outros homens.
Ficou de pé frente ao espelho.
Nu
Sem roupa
Sem pele
Sem pesos
Olhou-se com tempo .... as rugas que começavam a aprecer como as ervas nas primeiras chuvas, sem dó nem piedade.... o peito de águia, escurecido pela mata densa de pêlos que aqui e ali íam ficando grisalhos das névoas dos outonos tardios....as pernas finas de galgo...não estava mal....pensou num arquear de sobrancelha.
A manhã tinha corrido apressada, enquanto ele disfrutava do sabor doce que antecipava a mudança.
Puxou o relógio de cima da cómoda, e espantou-se com a consulta. - Já 11 horas!
Abriu o guarda-fatos de madeira envernizada cor de avelã, e tirou a roupa que já tinha escolhido para quando lhe fugisse o medo. O melhor fato. Um fato cor de chocolate, de espinhado inglês. - Muito fino! - dissera-lhe o caixeiro da loja de voz afeminada e gestos ameninados - é a última moda no estrangeiro!
Ezequiel, lembrava-se de ter olhado o sujeitinho esquisito de lado, desconfiado....mas, a cor ficava-lhe bem, e decidiu comprar o fato completo.
Mirou-se de alto a baixo, uma e outra vez...de frente, de lado, o outro ângulo, espreitou a parte de trás...... -Olha pra ti velho Ezequiel ... Quando tu queres até pareces um doutor! - sentenciou para o reflexo opaco e desfocado do espelho de pêndulo.
Meio dia em ponto. Abriu a porta do casarão, saiu para a rua e deixou entrar em casa um rasgo de ar quente carregado de borboletas azuis que tingiam daquela cor triste, tudo o que tocavam no seu voo.
Ezequiel seguiu o seu rumo, sem fazer caso das asas azuis invasoras do seu reduto de solitário.
Seguiu pela rua acima, sorrindo boas tardes aos poucos que se atreviam a um frente a frente com o sol tirano do meio do dia.
O suor escorria-lhe por dentro do paletó, e ensopava a camisa, as cuecas, a vontade....
Entrou no jardim da vila. Não havia viválma a não ser ele por aquelas bandas, sentou-se no banco que ficava situado por baixo dos longos braços do chorão frondoso. Fechou os olhos por um momento breve, respirou fundo e sentiu uma miscelanea de cheiros e sabores que lhe saturaram os sentidos, e lhe depositaram um travo anizado no céu da boca.
Concentrou-se nos ruidos que o rodeavam, a ausência da brisa, o canto dos pardais, dos melros, dos pintassilgos, um cão vadio que farejava urinas alheias, na relva ressequida.....o seu coração....
Era hoje .... sorriu ..... levou a mão ao bolso das calças, suspirou de alivio.
A solidão era um bicho teimoso, fossão, como o cão sarnento que estava agora a coçar as mordidelas das pulgas deitado ao lado do banco, mas Ezequiel, sentia a leveza infinita do abandono do estado solitário.
Retirou a mão do bolso, abriu-a, olhou o objecto pequeno e reluzente, uma aparição com artes mágicas, e num gesto encostou o aço rijo e frio à orelha direita e puxou o gatilho.
Houve uma debandada de asas e pêlo de cão vadio, e uma brisa tingida de azul uivou a romper a tarde.