Acendeu um cigarro, e sorveu-o com urgência. Fazia sempre assim quando as recordações começavam a chegar.
Estava sentada numa cadeira. Os braços dobrados pelos cotovelos, apoiados numa mesa redonda. As pernas por debaixo da toalha da mesa que tocava ao de leve no soalho bem encerado. Os livros abertos, forravam a mesa de forma desordenada. Estavam calados. Sempre lhe tinham dito que os livros falavam...mentira crassa! Os livros calam, guardam, envelhecem. Tirou outra passa vigorosa e a brasa incandescente quase lhe queimava a pele dos dedos. Os dedos estavam feitos livros....velhos, amarelentos, calados.
Tinha um casaquinho de caxemira vestido. Era macio, e quente..e ali sentada, era certo, arrefecia depressa. Era cruel aos resfriados. não era preciso muito e lá vinha o martírio do nariz entupido, as dores no corpo, as noites de chá quente com mel e folhas de eucalipto.
Era Agosto.
Mas só lá fora.
Ali na sala, era sempre Novembro.
Tirou um cigarro, da caixinha de prata monogramada, e acendeu-o, aproveitando o borrão do outro ainda em agonia no cinzeiro.
Olhou as folhas quietas na sua frente. Folheou o compêndio de matemática uma e outra vez, sem nexo. Tirou os óculos que repousavam com displicência na ponta do nariz, e pousou-os agora nos papeis mudos.
Há quanto tempo estaria ali?
Não tinha filhos de quem sentir falta, ou marido para chorar...
Então do que se lembrava?
Talvez fosse das vidas dos outros. De todos quantos enfrentavam perigos nas páginas impares de um qualquer livro, e lutavam com monstros inóspitos na capa de um outro, ou faziam amor capítulos a fio. Sempre silenciados na última página...
Ou então a vida dos vizinhos. Via-os todas as manhãs quando saía para comprar o pão. trocavam bons dias formais, gravados em fitas antigas desde há anos e anos...Já ali estava, sentada quando eles casaram. Sorriam um para o outro e olhavam-se de frente, depois só já sorriam, e agora também eles viviam no silêncio dela, sem mais memórias que sorrisos de papel colados em álbuns meramente decorativos. Sorrisos que podiam ser de qualquer um...ou de ninguém.
Recostou-se na cadeira de espaldar alto, e puxou o fumo agora devagar e profundamente.
Sentiu os pulmões estalar de prazer e esboçou um sorriso discreto. Será que eles, os vizinhos, também tinham memórias como ela? Assim, vazias de gente, ausentes, sem cor, sem cheiro.
As suas cheiravam a cigarros fumados com urgência.
Pegou na esferográfica de tinta azul, e escreveu na folha em branco prostrada à sua frente:
As minhas memórias
depois riscou por cima, para voltar a escrever em baixo:
As minhas recordações...
olhou, e decidiu-se por um ponto de exclamação no fim:
As minhas recordações!
Dava mais ênfase à frase, e dava mais peso ao vazio que se lhe seguia.
Seria a tão falada angustia da folha em branco? - agora sorriu com gosto, mas de forma breve...Não, não tinha nada a ver com papel...
Era mesmo a angustia da vida em branco.
O silêncio cresceu para além dela.
Uma vez, um dia, tivera um amor...recordava-se agora.
Encontraram-se num café...não, não, foi numa esplanada. Era Agosto!..ou Setembro, já não sabia bem. Ele trazia um chapéu preto e fumava um charuto cubano que cheirava a rum com chocolate preto. Ou seria Whisky com cacau? Mas fumava. Disso tinha a certeza!
Ela pediu-lhe lume. Ela tinha uma voz rouca e exalava um fumo adocicado quanto falava.
Caia uma chuva miudinha, e o Inverno insinuava-se como uma mulher da vida...
Mas era Setembro!
Uma vez, um dia ela tivera um amor, uma paixão avassaladora, mas o livro terminara, e finda a leitura, fechara-o e jazia numa estante daquele imenso cemitério de palavras que era a sua sala, a sua casa, a sua vida toda.
Apertou o casaquinho de caxemira delicado com as duas mãos junto ao peito. estava a ficar frio.
Era Agosto.
Tirou outro cigarro da caixinha monogramada de prata, eternamente aberta, e fumou-o com urgência.