Terça-feira, 9 de Setembro de 2008

Manhãs Eternas

 

 

 

 

As manhãs de Sábado eram as preferidas pelos amantes. Perfeitas para encontros fortuitos na frente do mundo e nas costas de Deus.

A casa da Santinha estava incrustada na Rua do Comércio, o centro nevrálgico da pequena vila, e as manhãs de Sábado enchiam a calçada de passos e vozes. Correrias de crianças, chamamentos de mães, cumprimentos de ocasião.

Os homens discutiam as últimas notícias do desporto, encostados na ombreira da porta da Tabacaria Moderna e havia magotes de mulheres amontoadas nas mesas da Pastelaria Docemel, a beberricar cafés ao ritmo do último mexerico.

O Dr. Nataniel, o advogado mais proeminente da praça, folheava o Semanário Económico sentado num dos bancos de ferro pintados de verde abeto, que ladeavam a rua  para descanso dos passantes. Olhava as notícias sem as ler...As manhãs de Sábado eram as melhores para apreciar o mulherio, pelo rabo do olho. Fixava-se na dança das saias embaladas pelas ancas, fitava os saltos altos qual altar de corpos que imaginava nus e de braços abertos para si. O Dr. Nataniel gostava de sentir o desejo que lhe corroía o corpo todo, a dor aguda que lhe tomava conta das partes intimas e lhe devolvia esperanças vãs de adolescências infames.

A Santinha, entreabria a janela da frente e deixava entrar o buliço da rua. O peito ardia-lhe na antecipação da chegada dele.

Vestiu o robe de chambre de organza rosa velho por cima da pele leitosa, e bebeu o chá, já quase frio, em goles nervosos. Ele raramente se atrasava. Quase 10 horas da manhã,  os sons vindos da rua emolduravam a ansiedade da sala. Dois toques. Um, depois o outro, na porta das traseiras da casa. Era ele!

Abriu uma nesga da porta. Apenas o suficiente para o intruso passar. Deixou-se ficar ali atrás da porta, como uma gata no cio, a retorcer-se da ausência dele.

A porta fechou-se. Ele olhou-a, sorriu, e ela entregou-se ali mesmo, sem bons dias, sem mais nada que não fosse a pressa de apagar o incêndio que ameaçava a sua integridade física e que ceifava vidas no interior das pernas.

Na rua do Comércio, a manhã decorria na costumeira cadência de vai vem, e os gemidos que escorriam da janela entreaberta, imiscuíam-se com as vozes dos transeuntes, e coloriam aquela manhã de Setembro de prazenteiros tons solarengos.

O sino na torre da igreja, chamava para a missa das 11, e uma debandada de pardais assustados precipitava-se sobre as acácias da praça.

A Santinha rezava mistérios a duas vozes. Cumpria promessas feitas ao ouvido, pelo chão frio e rijo da casa. Dava graças pelo caudal de vida que lhe varria os sentidos.

 Aos poucos, o dia foi escoando sons e passos, deixando no ar apenas a urgência do almoço anunciado em cheiros a comida quente.

O sol de Outono, implacável fazia o casario cair em sombras densas sobre a rua do Comércio, agora abandonada à sua sorte de fim de semana, a solidão.

A sombra silenciou também a casa da Santinha. Lá dentro um manto de suor cobria os dois corpos fartos e quietos.

- Sábado de manhã voltas?

- Sempre minha Santinha.

Na rua ouvia-se agora um passo arrastado, e melancólico. Era o João Francisco, o deficiente que vivia na esquina de baixo com a mãe. Vinha da igreja, onde pedia esmola na saída da missa, e varria com a perna morta os últimos vestígios de gente do meio da rua.

Depois ficou o nada. As casas deitaram-se à sesta, e a Santinha fez juras de manhãs eternas enquanto acenava um adeus saciado.

 

 

sinto-me:
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Original Zumbido por meldevespas às 15:35
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De A VER NAVIOS a 10 de Setembro de 2008 às 08:53
Mais um belo conto.
Impressionante a simplicidade com que aborda os diversos temas, deliciando-nos com a sua leitura.
Parabéns.
Um beijinho,
J. Lopes
De meldevespas a 12 de Setembro de 2008 às 09:44
Fico muito feliz que uma vez mais tenha gostado.
Beijinhos e bom fim de semana
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