Quinta-feira, 24 de Setembro de 2009

Os noivos ( relato de uma visita ao alfaiate )

 

 

 

Olhou para um lado, depois para o outro, certificou-se que a rua estava desimpedida, e preparou-se para atravessar pela passadeira de peões.

- Anda lá, quero ver se ainda lá o apanhamos antes da hora do almoço!

Ana Maria era uma rapariga possante, um metro e setenta de altura, ombros de estivador, e um tronco corpulento. Naquele exacto momento, vinha de braço dado com o noivo. O Bento não via mais nada à sua frente a não ser a sua querida e amada Ana Maria, era perdido por ela. A bem da verdade, ele pouco mais conseguia ver com um muro daqueles à sua frente, e o amor profundo, todos sabiam era um misto de temor mansinho e medo de morte, consoante a ocasião. O Bento era um rapaz bem posto, um rosto miúdo de gaiato, num corpo talhado pelo trabalho no campo, sarado e bem proporcionado. Era também um rapaz acanhado, com alma de pardal espantado, e um coração de manteiga sem sal e sem coragem.

Passaram a rua, ele a reboque dela.

- Falta menos de um mês, e se não sou eu a pensar em tudo, tu não te mexes! - Ana Maria conferia às palavras um certo tom de mágoa - tu não vês que eu não chego pra tudo!

- Tens razão amor, desculpa-me...sabes que eu sou um descuidado...

- ....mas não pode ser! - a conversa continuou no mesmo compasso de culpas e desculpas.

Ao fim da rua, mesmo na esquina que desembocava na praça principal da Vila, podia ler-se num placard em letras manuscritas: Casa Valverde - Alfaiate Masculino; por baixo, em letras mais pequenas mas ainda assim bem sublinhadas: a última moda à sua medida.

Ana Maria sorriu. - Chegámos!

Amândio Tito Valverde, mantinha o negócio da alfaiataria que herdara do avô paterno, com um regozijo extremo. Aquele era o prazer máximo da sua vidinha pequena. Era ali, dentro da lojinha humilde mas bem arranjada que vivia todas as suas fantasias goradas de grande desenhador de moda, estilista conceituado nas melhores capitais europeias, desfilies e brilho, e palmas e agradecimentos. Era ali no meio dos rolos de tecidos de cores espartanas, e um mobiliário sisudo que se imaginava envolto em sedas e veludos.

- Bons dias jovens, em que posso ser útil - perguntou Amândio Tito, esfregando as mãos uma na outra, o tronco ligeiramente inclinado na direcção dos entrantes.

- Sr. Valverde - adiantou-se Ana Maria - este é o meu noivo, Bento Joaquim. Ele precisa de um fato, uma coisa fina, está a ver? É que...vamos casar, daqui a um mês. Acha que pode atender-nos? Ainda haverá tempo? - pergunta ansiosa.

- Casar.....um mês.....hummm...bem, é um tudo nada apertado, já vê....tenho muito trabalho entre mãos, não tenho ajudantes especializados - um assomo de vaidade espreitou-lhe o olhar - mas a bem do amor, o que não faz um artista! - rodou os olhos para o céu e abriu os braços, todo ele drama.

O alfaiate, tinha umas mãos finas de dedos longos, e unhas bem tratadas. Umas mãos de fazer inveja a qualquer mulher. Era um homenzinho pequeno, magro, pensar-se-ia que teria padecido de raquitismo em criança, tal a fragilidade que aparentava. Era no entanto de personalidade vincada e forte, tantas vezes abafada em metros e metros de tecido.

Não era segredo para ninguém da Vila, Amândio Tito movia-se numa singular redoma. Era um homem peculiar. Afeminado, de voz excessivamente estridente e gestos delicados, fazia da custura uma arte, e acima de tudo um escape para os pensamentos que lhe atormentavam os dias longos. O pai, homem rude de má maneira e parca educação, sempre recusara o ofício paterno, mexer com fazendas finas era negócio de mulher, e a sua macheza mantivera-o afastado da alfaiataria durante toda a vida. Amândio Tito filho único de Avelino Valverde, touro cobridor e putanheiro inveterado, nasceu de sete meses, manso como um gato castrado, e melindroso como ponto de açucar.

Cedo sentiu as diferenças medrarem dentro de si, e cedo aprendeu, muitas vezes por acção da força bruta do seu progenitor, a calar anseios e suspiros. Cresceu debaixo das saias protectoras da mãe, e dos "piropos" do pai. - Paneleiro! Larga os panos e vai-te às raparigas. Larilas! Maricon de merda!

Aos 20 anos, com a tropa feita, depois de uma recruta bravia, que incluiu um passar de cama em cama no escuro da caserna, Amândio Tito, já com os desejos moldados, e as vontades domesticadas, cortejou uma rapariga de uma aldeia vizinha, e poucos meses depois uma boda cheia de pompa e circunstância engalanou a Vila.

Maria Rita, tinha 17 anos no dia do casamento. Gostava de Amândio Tito. ele compreendia-a, era vontadeiro, estava sempre a dizer-lhe como se devia ataviar, era um bom rapaz, de boas familias, os Valverde, toda a gente sabia nos arredores eram uma familia de recursos, o velho lidava a custura, e o filho labutava nas terras de sol a sol. Tinham amealhado uns tostões, e Maria Rita, ao casar com o neto Valverde, tinha a certeza de estar a trilhar um bom caminho. Claro que o casamento se revelara muito diferente de tudo o que sonhara, de tudo o que as amigas mais velhas lhe tinham segredado entre gemidos e respirações aceleradas. O marido não tinha o minimo interesse nela, pelo menos a esse nivel carnal, que tanto tinha imaginado. A principio ficou magoada, não negava, depois aos poucos já era um amargo de boca, um quase ódio que germinava devagarinho mas robusto. Gritou, rebelou-se, ofendeu-o, também ela lhe chamou paneleiro e todos os outros epitetos que ela já ouvira vezes sem conta; rasgou as roupas na frente dele, ordenou-lhe que pelo menos a livrasse da virgindade! -  Caramba homem! Será que hei-de morrer virgem e casada!?

Por fim, concedeu-se a si própria uma trégua, arranjou um amante, caixeiro viajante. Passava uma vez de quinze em quinze dias a vender botões e fechos de correr, e deixava-a exausta e viçosa despois de cada visita.

- Vamos então tirar as medidas, meu jovem. - revirou os olhos direito a Bento Joaquim, e segurando-lhe pelo braço encaminhou-o para a salinha de provas. - a menina, venha também - mediu-a de alto a baixo, sem esconder o espanto de ver aquele belo exemplar de homem com uma rapariga tão vulgar. - sempre ajuda a escolher o tecido, e o modelo.

Ana Maria seguiu os dois homens de perto.

- Estamos no Verão, o Sr. Valverde não acha que um linho claro era o ideal? O Bento é moreno, ficava-lhe bem um fato claro, não acha? O que diz Sr. Valverde?

- Oh minha menina, o linho é muito bom, sim senhora, mas para férias, ou até para o escritório, agora...para um noivo - e juntou as mãos junto ao peito - para um noivo é pouco elegante, entende, amarrota-se, enruga-se - franzia a boca e o nariz enquanto falava - para um noivo precisamos de um tecido mais nobre, uma boa lã de seda por exemplo, que cai completamente a direito - deslizou a mão pela perna de Bento num movimento descendente.

O rapaz retesou-se constrangido, mas continuou calado como era seu hábito. Ana Maria olhou para Amândio. Havia uma ponta de desconfiança naquele olhar. Aquele homem era mexido demais para homem. Falava demais.

O alfaiate puxou um rolo de fazenda azul marinho. - Está ver meu jovem? - dirigia-se a Bento, que não sabia o que fazer ou dizer: - errr...bem..... - balbuciou a medo, virando a cabeça para a namorada.  Ana Maria tocou o tecido, apalpou, torceu o nariz, passou o tecido pela face e depois de um silêncio de expectativa - parece-me bem Bentinho, é macio. Não quero saber do preço. Faça o melhor que sabe, Sr. Valverde!

- Ora essa menina! Amândio Tito Valverde faz sempre o melhor que pode! Em especial para um noivo tão jeitoso... - havia mel na voz.

Foram tiradas as medidas, o comprimento de pernas e braços, o peito, ombros, anca, cintura, nada foi deixado ao acaso. A cada numero lido na fita métrica, Amândio Tito elogiava as proporções perfeitas do noivo.

Um cheiro forte a cozinhados intrometeu-se no cenário.  - Ana Maria sentiu uma tontura, procurou o apoio da mesa e fechou os olhos um momento. O cheiro a refogado puxado, estava a deixá-la enjoada. Desde que descobrira a gravidez, há mais de um mês, que se lhe águava a boca de repugnância e vómito, na presença de odores fortes. Só ela e Bento sabiam. Ele de olhos baixos e voz sumida, concordou de imediato com a antecipação da data do casamento. Diriam que era a urgência do amor, que não podiam estar um sem o outro.

- Por hoje estamos terminados! - sorriu Amândio Tito de mãos postas e olhos cravados na camisa de Bento Joaquim, aberta no peito...

Combinaram voltar daí a três dias, para a primeira prova - é coisa rápida, a menina se preferir, nem precisa vir!

Sairam porta fora às pressas, Ana Maria precisava de ar desesperadamente.

Amândio Valverde fechou a porta à sua saída. Encostou-se na ombreira e suspirou fundo.

Por detrás das cortinas da porta que dava para a casa de habitação, Maria Rita assistia, mais uma vez vencida. Aquela guerra sabia-o bem, já não era sua.

Rua abaixo, a reboque de Ana Maria, Bento Joaquim não conseguia parar de pensar no fato novo, na lã de seda azul marinho, nas mãos do alfaiate.

 Image in DeviantArt

 

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Original Zumbido por meldevespas às 00:32
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De R.I.P.per a 26 de Setembro de 2009 às 14:30
mais um sublime texto q expoe os constrangimentos e frustraçoes d gente simples d uma forma simples e bela

como sempre, fiquei c o tom dourado do mel no olhar dp d ler mais um texto teu
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De
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