Segunda-feira, 1 de Fevereiro de 2010

Cegueira (O cheiro das coisas)

 

Este conto, trata-se de uma re-postagem de Maio de 2008, recuperado agora para o desafio da fábrica das Letras para o mês de Fevereiro, subordinado ao tema "Velhice".

 

Os olhos cegos de Jacinta moviam-se numa velocidade inquieta.

Buscavam terra firme. Há quanto tempo nadava, naquelas águas fora de pé. Já mal se lembrava de como era sentir a terra macia a ceder ao seu passo.

Uma maleita estranha ainda nos seus verdes anos tinha-a atirado para o nada em que vivia agora.

A principio a dor de perder o mundo, era aplacada pelos cheiros ou pelos toques.

O seu corpo era ainda um pomar de frutas maduras na ânsia da colheita.

Quando ele chegou, com voz mansa e mãos quentes, ela cedeu na árvore.

Depois ele partiu.

Deixou-a despida e fria.

Ele cheirava a tabaco barato, e tinha um hálito que ateava fogueiras  por onde passava.

Jacinta lembrava-se de sentir crescer um rubor dentro de si, que se espalhava como uma peste, quando  o cheiro dele invadia os seus pensamentos.

Aos poucos tudo à sua volta perdeu o aroma. Permanecia apenas um travo a mofo, que era pouco mais que uma corrente de ar.

Era quase como quando chove uma semana de seguida, e se fecham portas e janelas...

Só que ela estava à chuva. E aquele bafio subtil era ela a envelhecer numa inusitada e húmida escuridão.

Partira sem um adeus.

Deixou-a despida, com um buraco cavado fundo no peito, onde ela enterrou os cheiros das coisas.

Estava exausta de nadar fora de pé.

Sentia falta de sonhar.

Pés descalços, correrias, risos, gargalhadas, beijos, mãos, terra molhada, fogueiras...ele.

Já não conseguia ver os sonhos. Era cega, afinal... Ele deixara-a fria e cega.

Encostou a cabeça no espaldar da cadeira de braços, precisava tanto de descansar...ou então de voltar.

A essência de mulher pomar, tinha-se esvaído com o correr dos dias. E os dias tinham deixado de contar desde que a porta se fechara nas costas dele.

Ali, agora, neste instante, só pernoitava uma alma vazia de sonhos, e cega de vida.

O gato pardo, regressado da caçada nocturna, saltou-lhe para o colo.

Jacinta afagou-lhe o pelo farto, num gesto cúmplice, e o bicho retribuiu com um ronronar satisfeito.

Por breves instantes, na sala abafada, um cheiro a tabaco barato adoçou o ar. 

 

sinto-me:
Original Zumbido por meldevespas às 15:33
link | favorito
De Gingerbread Girl a 1 de Fevereiro de 2010 às 17:07
"O seu corpo era ainda um pomar de frutas maduras na ânsia da colheita."

Tão LINDO pá! =')

Estas entre outras, claro. :p

Faxabôr de escrever mais um. -.-
Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 


mais sobre mim

pesquisar

 

Abril 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

posts recentes

Constelaçoes

O Sorriso do Parvo

Porque sim

O Cheiro da Chuva

Estória para adormecer .....

Na lama

Memórias de Vento

A solo

Sem fim

Estória para adormecer......

arquivos

Abril 2011

Janeiro 2011

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Janeiro 2007

Julho 2006

tags

todas as tags

links

blogs SAPO

subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub