Quinta-feira, 1 de Abril de 2010

O Destino das Ondas

 

 

Ficava ali de olhos esbugalhados, paralisado pela angustia de ter que tantas coisas para fazer.

Do fundo do mar, chegava um ruído surdo que lhe magoava os sentidos e o impelia a cerrar os dentes com quantas forças tinha. Era aquele barulho que fazem os seres enquanto se afogam em sal, um barulho calmo e inquietante, que pronuncia um silêncio sem fim à vista.

E aquele vinil riscado das ondas, uma a seguir à outra, e depois mais outra, todas a suicidarem-se em terra. Perdia sempre uns minutos, a pensar nos desatinos das ondas, queriam morrer porquê? Era cansaço, amor, demência? Morriam degoladas com facas de espuma, e o que restava delas voltava ao mar  para assombrar calmarias e aguçar tempestades.

O mar tinha aquela mania de o manter alerta, tinha aquela cruel tentação de lhe meter medo. Mas ali, não havia mar.

Ali, só havia terra, terra vermelha a perder de vista, torrões de açúcar mascavado que cediam debaixo dos pés dos homens, que os castigavam de manhã à noite.

Aquele pó sépia, acre e doce, secava-lhe a boca e insinuava-se pelas narinas, polvilhando-lhe o cérebro de uma canela mulata.

O pó inebriante trazia-lhe sempre a imagem dela. Era o cheiro da canela que lhe abrasava os olhos, e lhe punha pimenta no corpo.

A terra seca, magoava-o sempre por dentro. O pó perdia-lhe sempre o olhar, e cegava-lhe as mãos. Mas ali não havia terra seca, nem pó, nem nada.

Ali só havia a sua angustia, de não saber o que fazer primeiro.

Tinha baralhado as horas do relógio de parede, o calendário amarrotado pela ansiedade, jazia a um canto da sala, a vida girava a uma velocidade que já não era a sua, e ele continuava, ali, estanque, sentado numa cadeira de pinho velho, no meio daquela sala, sem saber o que fazer primeiro. Os olhos esbugalhados, a boca cheia de pó, o desejo afogado em canela, e os pés encharcados em água salgada.

Pensou no destino das ondas, e gostou dele.

Levantou-se pela primeira vez em séculos, e foi buscar uma faca de espuma.

 

 Re-postagem de 27/09/2007

 

 

sinto-me:
tags: mar, terra
Original Zumbido por meldevespas às 14:54
link | favorito
De joão a 6 de Abril de 2010 às 16:38
é bom ficar com essa ideia do destino das ondas a perdurar na nossa mente... a ver para onde as minhas ondas vão....
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De
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