Acordou com o estrondo da garrafa de cerveja vazia a cair no chão. Não sabia há quanto tempo ali estava. Agora não restava mais ninguém, só ele, ali aventado numa cadeira de madeira surrada e manca. A boca sabia-lhe a tinta da china e o estômago pulsava nervoso. Cerrou os dentes e fechou os olhos enquanto passava a mão pela testa. Onde estaria toda a gente. Porque não lhe tinham dado ordem de saída? A cabeça doía-lhe, parecia que todos os ossos estalavam. Fechou os olhos com mais força e deixou cair a cabeça nas duas mãos. Os cotovelos apoiados nos joelhos, o vómito a ameaçar a sua existência embaciada. Vou ficar aqui só mais um momento, o suficiente para esta indisposição passar. Que merda, quem me mandou beber assim. O mundo não acabou! Aposto que a cerveja também não, acabei-me eu.
A garrafa vazia jazia a seus pés. O troféu de uma noite de promessas amarrotadas nas mãos de outrem. O ar estava saturado de cheiros de fim de festa, pontas de cigarros, cerveja derramada em baforadas de espuma, gargalos ocos. As pranchas de madeira encerada no chão do salão, amanheceram ainda atapetadas de serpentinas e papelinhos coloridos, uma inundação de sonhos a cores acabados debaixo dos pés. O vazio da sala tomou conta dele, sentiu-se dominado, diminuto. Se a mãe o visse naquele estado havia de dizer-lhe que ele era um reles, um estafermo, havia de apontar-lhe o dedo indicador ao nariz, atirar-lhe à cara o pai bêbedo que se esforçava por igualar, até ao fim, até à cova funda, onde o amortalharam muito antes do tempo dele. E ele não poderia negar nada. Nem a vulgaridade, nem a bebedeira, muito menos a vontade que tinha de morrer agora. A morte era mais morna que aquele fogo que tinha no estômago. O fim era mais clemente que a lamina de aço encostada à sua garganta.
Levantou-se devagar. O salão de baile dançou à sua volta. Um odor a suor toldou-lhe a lembrança da noite passada. Ela estava tão bonita. Cheia de si. Nem reparou nele. Nem reparou no buraco vertiginoso no peito dele, cheio de quase nada. Como foi capaz de ser tão cruel? Nem um olhar de soslaio. Nada. Só risos e as mãos daquele outro a marcar território nos seus quadris.
Ensaiou um passo. Tentou equilibrar-se, tinha os pés dormentes, as pernas pesadas. Ao que tu chegaste, pensou com uma pontada de pena. Os últimos tempos tinham sido cruciais para levedar o sentimento de auto-comiseração. Tinha chegado ao ponto que não sabia dizer, nem no recato da sua intimidade, onde terminava a culpa e começava a pena, e qual das duas o esvaziava mais.
Os olhos raiados de vermelho, doíam-lhe ao insuportável, e o sol matinal a insinuar-se pelas janelas altas do salão era uma arma letal para o seu equilíbrio. Levantou a cabeça e passou uma vista à grande sala, ainda engalanada. Os candelabros antiquissimos com pequenos vidrinhos lapidados, as paredes forradas a meia altura de tecido adamascado púrpura e vermelho sangue, com altos rodapés de madeira envernizada. Balões de papel frisado pendiam do tecto de estuque floreado, pendurados em longas varas de aço fino. Estava vazio. Não o salão. Ele. O salão estava imerso na letargia do depois. Lânguido, altivo, sujo ainda. Ele não tinha nada. O antes o depois, o agora. Fundia-se tudo no nada.
Caiu de joelhos e vomitou. Uma espécie de remorso tomou conta dele, mas só um instante. Podia ser tudo diferente. Deslizou para o lado e deixou-se ficar ali, caido no chão. O frescor da madeira aliviava-lhe as dores no corpo. Por cima dele o tecto de estuque imaculado. Ela estava tão bonita. Tão cheia de si. Nem reparou nele. Fechou os olhos. Daqui a pouco viriam varrer o salão.
Image by Deviantart
Ohhhhh então ela nem olhou para ele? Incrível como às vezes somos invisíveis aos olhos dos outros... gostei. Bjs
Neste caso ele carrega qualquer culpa que o faz não invisivel, mas sim indiferente aos olhos dela, um nada.
Beijinhos
De
Nathalie a 3 de Junho de 2010 às 15:34
Deixe-me dizer-lhe que tem o dom da escrita. A sua escrita é clara e rica do ponto de vista linguístico; apresenta características da prosa narrativa; a personagem central apresenta densidade psicológica. Domina na perfeição a descrição (a fazer lembrar Eça de Queirós), pois abundam os detalhes do espaço e das personagens (da presenta e das ausentes).
É um belo conto. Um conto de desencontros de amor, o que mais acontece na vida.
Parabéns. Continue a ler (imagino que leia muito) e a escrever mais ainda para podermos deliciar-nos com os seus textos.
Olá Nathalie, as suas palavras são muito generosas. A Leitura é de facto um hábito antigo.
Muito obrigada, beijinho
De
joão a 6 de Junho de 2010 às 22:21
Ya! Basicamente é isto! Tirou-me as palavras da boca, esta Nathalie, o que não é muito ortodoxo... ou higiénico!
Pouco higiénico de facto...
mas ainda assim, depreendo que gostasteS eheh
brigadinha e beijo grande
De
mz a 2 de Junho de 2010 às 17:31
Estava vazio de afecto, mas cheio de consciência do antes, do durante e do depois. E a consciência é tudo para não desistir e deixar-se ficar por coisa nenhuma.
Arrebita rapaz!
bjs
É essa consciência do antes que o deita por terra neste depois.
Acho que o rapaz se entregou a essa evidência. Nada a fazer ehehe
Beijo
Não apenas a leitura sobre o tema, aqui venho apanhar um pouco do mel da palavra.
No texto o trágico nos é apresentado com o que há de melhor em contar: descrição precisa, psicólogico do herói em alto volume, o estilo, a poesia, sobretudo o fim que não termina.
Excelente narrativa;
dilacerante.
Beijos.
Ricardo.
Olá Ricardo, antes de mais nada muito obrigada pelo prémio Dardos que me deste, e que muito agradeço. Em relação às palavras que me deixas aqui por causa deste conto, claro que me deixam muito feliz. Se calhar são um tudo nada excessivas, mas muito muito obrigada.
Beijinho
De
Catsone a 3 de Junho de 2010 às 01:16
Confesso que este teu texto é dos melhores que tenho lido na blogosfera. Tão descritivo que fiquei também eu com a ressaca da personagem e com a mágoa ciumenta que o consumia. Adorei.
bj
Bem...nem sei que diga. Muito obrigado por teres gostado. (e o meu ego também agradece ;DD)
Beijo
De
chica a 3 de Junho de 2010 às 15:23
Maravilha, rico de detalhes que se fizeram presentes até o final, trágico e profundo!beijos,chica
Obrigado pela simpatia. Beijo grande
De
Pinguim a 4 de Junho de 2010 às 16:38
Já o disse noutro blog, este é um tema difícil, falar sobre o abismo.
E o teu texto está sublime pois dentro de um dos mais normais factos que pode acontecer a um ser humano (ser apanhado por uma embriaguez por um mal de amor), conseguiste de uma forma correcta e directa dar a ideia do que é chegar à beira do abismo.
Lindo!
Oh João muito obrigada, pelas palavras tão simpáticas. Fico feliz que tenhas gostado.
Beijinho
De
Lala a 5 de Junho de 2010 às 18:33
Uma e outra vez, e outra ainda... de cada vez que entro por estas portas fico de queixos caídos!!
A realidade que aqui transmites, perfeita, pormenorizada q.b., embriagante...
É extasiante e muito compensatório ler o que escreves... saio daqui de queixos caídos mas de sorriso nos lábios e de alma alegre.
Gostei bastante do retrato deste ser que deseja não-ser!
Obrigada pelo que me proporcionas!
Beijinho**
O que já me ri com os teus "queixos caídos"!
Só tu!
Muito muito obrigada, e ainda bem que gostaste, volta sempre.
Beijo grande***
De FatimaSoares a 27 de Junho de 2010 às 22:50
Olá desculpa entrar assim. Estive a ler e adorei todas as histórias e hei-de voltar até para ler algumas com mais cuidado porque simplesmente adorei. Um beijinho.
Olá Alice, ainda bem que entraste e te sentiste à vontade.
E obrigada por teres gostado.
Volta sempre.
Também já andei a espreitar os teus lugares, vou voltar em breve, com mais tempo.
beijo
De
Fia a 29 de Junho de 2010 às 11:16
Varriam tmb o corpo dele? :)
Muito bom
Olá Fia, chegaste bem perto.
Varriam toda a porcaria, todos os restos, por isso..ele, i think ;D
Beijos e obrigada
Mel este teu vazio enche-nos. Como sempre excelente. Beijinhos
Mary, que saudades ;D
Obrigada.
zumbir