Terça-feira, 31 de Agosto de 2010

Na lama

 

A trovoada estava já longe, mas o troar enchia ainda a tarde. Um rosnar cavo em direcção à noite. A terra toda exalava calor e humidade. Ali à beira rio derramava a angustia de um dia difícil. Sentia a camisa colada às costas numa mistura de água e suor. Estava sentado no lamaçal que a chuva grossa deixara pra trás. Enterrou os dedos na terra molhada e cerrou os olhos num gemido. Perdera a conta às horas. Há quanto tempo estarei aqui. Deixou os dedos semeados na lama. Como se estivesse entre as pernas de uma mulher. Sentiu-a trémula entre os dedos. Quente e saciada.

Pensou na mulher, e uma agulha afiada bordou-lhe no peito uma dor imensa. Pensou nela preparada para o receber, deitada na cama desalinhada, intensa e sem pudores, de olhos vermelhos e boca aguada. Doeu tanto que se abraçou pra segurar a vida nele.

Não podia voltar. Também não queria voltar. Mais um pouco e seria noite cerrada. Sem estrelas, sem luz que não fosse a trovoada a debandar em clarões fugazes, e o fogo que lhe consumia os dedos.

Não ia chorar. Isso nem pensar. Ainda tinha nos tímpanos o estrondear dos batentes da porta da rua, a madrugar o dia. Levantara-se de um salto. A mulher ficara na cama. Sentada, de olhos esbugalhados, pela expectativa de uma qualquer desgraça, o lençol puxado até ao queixo perfeito.

Correu até à porta abriu-a e lá fora só encontrou o vazio. Saiu, andou até ao meio da rua, olhou para cima, depois para baixo, esperou um pouco e voltou para dentro. Foi então que viu. Pendurado no postigo de ferro forjado, estava um valente par de chifres a rir-se dele. Um par de chifres ousados, em pontas, a desafiá-lo. Encurtou o passo, mirou os intrusos, sem lhe tocar nunca. Foi primeiro um formigueiro, subiu-lhe pelas pernas e em menos de um segundo já era uma fogueira ateada. Agora era só dor.

Ela tinha ficado à espera que ele voltasse. Ele não voltou. Os cornos engalanavam a porta da rua, e o sol já alto dava rastilho aos risos dos passantes. Ela tinha fechado a porta com raiva, e tinha vomitado o medo em tremores convulsivos. 

Ele deitou-se na lama e decidiu ficar. Os cornos pesam a um homem,  pensou. Depois começou a rir, de si, da lua acanhada, riu-se em gargalhadas fortes e sonoras, e só por uma noite espantou o bicho que lhe nascia dentro.

 

 

Pic in DeviantArt

sinto-me:
tags: , , ,
Original Zumbido por meldevespas às 16:00
link | zumbir | favorito
19 comentários:
De joão a 31 de Agosto de 2010 às 20:26
Muito, muito bom.
De meldevespas a 1 de Setembro de 2010 às 11:01
Obrigada.
(e espero que n me estejas a gozar com o "muito, muito" ....olha que eu não sou rapariga pra brincadeiras....bem!)
De blue258 a 31 de Agosto de 2010 às 23:30
Adorei. Não sei que mais possa dizer. Adorei.
De meldevespas a 1 de Setembro de 2010 às 11:02
Oh Blue muito obrigada.
Volta sempre, beijinho
De Gingerbread Girl a 2 de Setembro de 2010 às 11:13
E depois pegou numa caçadeira e...
De meldevespas a 3 de Setembro de 2010 às 14:55
ou não...
ou então deixou a noite passar e a raiva tal como a trovoada também acalmou e no outro dia de manhãzinha voltou pra casa e deu-lhe um beijo de bom dia...
De mz a 2 de Setembro de 2010 às 12:29
Que se levante o homem, mas antes, afogue o bicho de vez na lama.

Excelente!

bj
De meldevespas a 3 de Setembro de 2010 às 14:57
Nem mais!eheheh
Beijo e obrigada
De chica a 3 de Setembro de 2010 às 00:41
Linda tua perticipação,Texto forte!beijos,chica
De meldevespas a 3 de Setembro de 2010 às 14:57
Obrigada Chica, pela tua simpatia.
Beijinho
De Sandra a 3 de Setembro de 2010 às 02:11
Parabéns pelo tema livre. Escrever nos inspira a voar pela imagnação.
Amo escrever. Por isso meu tema é Vida de Poeta.
Interação de amigos também está participando. Vou te esperar por lá.
http://sandrarandrade7.blogspot.com
este é um momento onde todos trocam experiências.As coletivas aproximam as pessoas.
Carinhosamente,
Sandra
De El Matador a 3 de Setembro de 2010 às 08:47
"A dor de corno é como a dor de dentes, só doi quando nasce" - Muito bom texto Ó Mel.
De meldevespas a 3 de Setembro de 2010 às 14:59
Obrigada El Matador.
Livrai-nos Senhor de dor de corno...
Beijos
De Pinguim a 8 de Setembro de 2010 às 02:19
Acho que é unânime a opinião: absolutamente fabuloso.
Parabéns.
De meldevespas a 8 de Setembro de 2010 às 09:35
Obrigada João, és um querido!
Ouve lá? Então não era suposto estares a namorar e lá longe? :D
Beijinhos
De Mary Brown a 8 de Setembro de 2010 às 12:05
Mel excelente. Entre tudo que li, escrito por ti, este é o melhor. Curto e elucidativo . Beijinhos
De meldevespas a 8 de Setembro de 2010 às 12:29
Muito obrigada Mary. Fico sempre feliz que gostes.
Beijo grande
De isabelmbmoura@gmail.com a 11 de Setembro de 2010 às 17:44
Muito intenso.Adorei.
Gosto muito da sua escrita.
De meldevespas a 13 de Setembro de 2010 às 11:29
Muito obrigada Isabel, pela simpatia.
(gostava de retribuir a visita, mas o link não funciona.)
Beijo

zumbir

mais sobre mim

pesquisar

 

Abril 2011

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

posts recentes

Constelaçoes

O Sorriso do Parvo

Porque sim

O Cheiro da Chuva

Estória para adormecer .....

Na lama

Memórias de Vento

A solo

Sem fim

Estória para adormecer......

arquivos

Abril 2011

Janeiro 2011

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Janeiro 2007

Julho 2006

tags

todas as tags

links

blogs SAPO

subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub