A noite apanhou-a trancada num medo antigo.
O vento falava com as madeiras cansadas das janelas da casa, e as respostas eram lamentos sentidos.
O Outono andava a rondar-lhe a cama, e os clarões dos relâmpagos que fotografavam as sombras dentro do quarto, eram mais que um presságio.
Trovões inundaram-lhe os ouvidos e encheram-lhe as mãos de um suor inquieto.
Havia muito tempo que não se sentia tão sozinha. As noites assim, de fim de Verão, tinham tido nela sempre esse mesmo efeito, o sentimento de ausência...dos outros e dela mesma.
Permitia-se sempre ter medo nessas noites. Podia meter-se debaixo dos lençóis, rezar fervorosamente, fechar portas e janelas, trancar-se por fora, e ver-se assim, como todos os seres vivos à face da terra, com aquela ânsia que lhe acelerava o sangue, e, que por aqueles dias, era a única sensação que lhe dizia que ainda estava viva.
Vivia numa solidão de cinema mudo, tudo o que via, eram lembranças que desfilavam para ela, sempre que as evocava. Desfilavam acenos e sorrisos de despedida, sem palavras, só acenos e sorrisos.
Habituara-se a viver assim. Não poderia viver com outro alguém que não fosse o vazio das paredes da sua casa, e os figurantes que acenavam nas suas memórias.
Lembrava-se sempre da sua 1ª Comunhão...não sabia bem porquê, mas essa sequência passava vezes sem conta à sua frente. Via uma e outra vez, aquela menina pequena e séria demais para os 9 anos, o cabelo preso num rabo-de-cavalo sisudo; a fatiota branca até aos pés atada na cintura por um cordão de seda amarelada pelos dias; e as mãos postas em oração, com um rosário de prata pendurado...
Um enorme altar de crianças risonhas, acenava-lhe um até breve, mas aquela menina, nunca!
Ficava ali, quieta, a olhá-la, e olhava-a com a mesma impavidez e desinteresse de sempre.
Ás vezes reconhecia-se naquela criatura ridícula e infeliz, e chorava com pena dela.
Outras vezes, via-se ainda mais pequena, sentada ao colo da avó, apertada num ramo de cheiros de hortelã e erva Luísa, que vinha do cabelo cinzento entrançado num poupo.
A avó era sempre uma memória que a deixava feliz. Acenava-lhe e sorria-lhe, segurando nos braços aquela criança amedrontada. Nessas alturas, quase podia ainda sentir as mãos dela nos seus cabelos, e ouvir as suas palavras sábias, dizendo-lhe que "não era bom, falar no cheiro da terra depois de uma trovoada".
Porquê? Nunca tinha tido a resposta, mas apesar disso, e apesar de os pulmões se encheram daquele cheiro estonteante a terra molhada depois de uma trovoada, e apesar de o seu peito quase explodir de êxtase, ela nunca o disse, nunca falou desse cheiro. Com medo de quê, não sabia, nunca soube.
Os relâmpagos apagaram-se por fim, e a noite pode cair abraçada àquela chuva, até de manhã.
O vento agora só já sussurrava, e as janelas rendiam-se.
Havia já muito tempo que não se sentia tão sozinha.
Originalmente postado neste blog em 12/09/2007
De chica a 1 de Outubro de 2010 às 15:00
Puxa, ate´eu fiquei pensando qual o segredo de não poder falar do cheiro após uma trovoada.
Que lindo e emocionante!
ADOREI!
BEIJOS,TUDO DE BOM,CHICA
coisas das nossas avos. o certo ´´e que por aqui se diz que nao se deve usar essa expressao, de dizer que "cheira a terra", nao me perguntes porque, porque tb n sei eheheh
Beijo grande e obrigada
De
Pinguim a 1 de Outubro de 2010 às 15:03
Fizeste bem em ir buscar este belo texto para o tema deste mês da Fábrica de Letras.
É muito bom.
Obrigada Joao pela simpatia, es um querido.
Beijinho
De Poetic Girl a 1 de Outubro de 2010 às 15:06
Lindo lindo, adorei melzinha como sempre aliás... quantas vezes não me senti assim também eu? beijoca
Obrigada Bela ;DDD
Tu nao sei, mas eu sim, tenho pavor de trovoadas...
Beijinhos
Reminiscências numa tarde de chuva. Muito bonito.
Obrigada. :)
O encurtar dos dias por vezes trazem enxurradas de memorias.
Beijo
De
Sandra a 2 de Outubro de 2010 às 01:57
BELA PARTICIPAÇÃO. A MAGIA DAS LETRAS NOS ENVOLVE NESTE POEMA DE CHEIRO DE CHUVA MOLHADA.
NESTES MOMENTOS NOS INTERAGIMOS COM MUITO CARINHO.
QUE SEJA BEM VINDA A CHUVA..ESTE CHEIRO BOM E PERFUMADO CHEIRO DE TERRA MOLHADA.
VEM COMIGO
http://sandrarandrade7.blogspot.com/
CARINHOSAMENTE,
SANDRA
De
mz a 3 de Outubro de 2010 às 01:21
Os medos de infância tendem a acompanhar-nos durante a vida. O vento forte e as trovoadas ficam-nos gravadas para sempre. Crescemos e esse medo é atenuado por outros medos como a solidão.
Na minha aldeia, quando trovejava, queimava-se o alecrim benzido no domingo de ramos para afastar trovoada, imagina! Os mais antigos continuam a fazê-lo.
Bj
Muito verdade isso dos medos de infancia. A minha mae passou-me tantos que nem sei, e hoje faço um esforço tremendo para evitar deixar esta herança aos meus eheh.
Essa queima do alecrim, tb era feita ca na terra, provavelemnte ainda hoje o farao alguns mais velhos.
Beijinho e obrigada pela visita
De
blue258 a 3 de Outubro de 2010 às 01:53
Já te disse que adoro a tua escrita, e hoje, percebi porquê: dás voz às palavras.
"O vento falava com as madeiras cansadas das janelas da casa, e as respostas eram lamentos sentidos."
oh Blue que comentario tao bonito! Agora fiquei babada.
Beijinho e muito obrigada
Se tívessemos palavras para descrever em profundidade os cheiros, escreveríamos as melhores histórias do mundo...
No texto, só a menção de um cheiro 'inenarrável' já nos dá uma explícita noção disso.
Envolvente, enigmático.
Bjos
Ricardo
Muito obrigada pela generosidade do comentario Ricardo.
Beijinho e volta sempre
De
joão a 4 de Outubro de 2010 às 21:21
Mais um que texto que gosto muito. E porque será, afinal?
Quero hipóteses!
Hipóteses? Porque é que tu gostas dos meus textos? Bem....
a)porque és masoquista
b)porque és um rapaz inteligente (eheh gosto desta)
c)pra fazer o jeito
d)porque sim;
e)porque é simpático dizer isso...:(
serve?
Bêjos Jóni, és um querido
De
joão a 4 de Outubro de 2010 às 23:12
Se isto fosse no messenger, aparecia agora aquele boneco com a mão na testa. Hipóteses para não falar do cheiro da terra depois de uma trovoada, pá!
Mas, quanto às tuas hipótes, gosto por todas elas. Todas se adequam :)
E agora aparecia aquele agarrado à barriga à rir!!!
Tens que rever a pontuação e essas coisas pá jóni!
Mas prontos, tb n sei porque n se deve falar nisso, é daquelas coisas n se deve e pronto...
De
joão a 5 de Outubro de 2010 às 15:49
Já que não deste as hipóteses, elaborei eu uma que entronca na tua. A menina que aparece no final do meu texto é a avó do teu texto.
De Eduardina a 6 de Outubro de 2010 às 15:10
Como sempre, adoro os seus textos. E este ,tocado pelas memórias de infãncia, extasiou-me! Parabéns.
Obrigada Eduardina.
Beijo grande
De
Louise a 8 de Outubro de 2010 às 09:27
Como percebo a sensação do inicio das noites de Outono.
Existe um medo inexplicável que nos assoma sempre... e resta-nos agarrar às recordações mais quentes e calorosas.
tal e qual como dizes. por muito que se goste do Outono, eu gosto, mas este encurtar dos dias da um arrepio na espinha, um medo fininho que precisamos aquietar.
Beijinhos
zumbir