- Queres vir espreitar o mundo?...sobe aqui pra cima....chhhh não faças barulho....
Consegues ver daqui?....consegues ver a calma....sentir o silêncio?
...eu sei...também o sinto...é parte de mim! O vento...
...e a água...o sol está tão frio!
...não...não faças barulho, deixa as amendoeiras nevar, deixa os oregãos temperar o ar...
Vês? Não tarda a tarde despede-se, e depois...depois podemos descer...
Voltas?
Fotografias da Leonor, tiradas no Monte do Vale Vaqueiros
Hoje vou falar um bocadinho da minha terra.
Não propriamente para exaltar as suas conhecidas belezas, mas porque me lembrei de dias que ficaram pra trás, e que nestas datas nos trazem alguma saudável nostalgia.
Hoje é dia de S. Martinho, é dia de, conforme manda a proverbial tradição "ir à adega e provar o vinho". As uvas colhidas em Setembro, maceraram o suficiente para nesta altura se poder provar um ainda áspero mas já temperamental vinho, mais o branco, que matura mais rapidamente , mas para os corajosos, também o tinto.
No entanto, é razão para se dizer que também para o Santinho que elogia o Outono e a riqueza dos campos, a tradição já não é o que era. A minha antiga e vistosa vila cheia de pequenas adegas com vinificação própria, cheia de cantares ao fim da tarde, quando o vinho novo já gozava nas tascas, deu agora lugar a uma bonita mas envergonhada cidade, onde o esforço da modernidade tem aos poucos decepado anos e anos de estórias que já só podemos ver nas memórias faladas de alguns poucos.
Ainda me lembro bem, do cheiro das adegas...
Apesar do acesso a estes círculos não estar vedado às mulheres, não era hábito ver alguma por lá.
Mas no dia de provar o vinho, lá na escola, enchíamos o peito, grupos de rapazes e raparigas e aventurávamo-nos de taberna em taberna, às vezes, como era o meu caso, só pra entrar e molhar os lábios no azedo do liquido.
Havia cacholeira assada, e castanhas, e batata doce, e nacos de pão e queijo de ovelha curado e a saber a cardos. Havia tilintar de copos de vidro, e homens rudes de mãos grossas e voz moura e quente.
Cheirava ainda a mosto, e a humidade, um daqueles cheiros que chega pra dar vida a um morto. Os balcões eram negros, de madeiras puídas e velhas que estavam gastas de tanto beber. A música de odores, paladares e sons entrava-nos mal passávamos a porta da entrada e permanecia muito pra lá da despedida.
Havia o Julião, o Cagão , o Zé de Sousa, o Chico Brites, e tantas outras tabernas que se enchiam de cantares e rimas de improviso neste meado de Novembro.
Nas portas onde antes moravam os generosos jorros de vinho novo, estão agora lojas de artigos orientais, e outras quinquilharias que vão apagando do mapa de Reguengos todos os vestígios de antes.
Nem sei se alguma taberna digna desse nome existe ainda nas ruas da cidade. Existem Adegas /Restaurantes, aos montes, rústicos qb , decorados de artefactos alentejanos, com ementas cheias de porco preto e migas e açordas, porque é fino, mas não têm, não podem ter a aureola de autenticidade entranhada nelas.
Há poucos dias, o meu filho, veio perguntar-me se eu conhecia lendas Alentejanas. Eu lá lhe falei de umas quantas que ouvia contar desde sempre, umas que estão nos livros, outras que só estão nas velhas e nas ruas.
Hoje, neste S. Martinho, estou aqui sentada, a escrever sobre a vivência desta data aqui, e vieram-me à lembrança alguns bêbedos, que já não estão entre nós, e hoje até parecem lendas, o Papa Cachola, homem rude e grosseiro, que em novo manteve uma paixão assolapada por uma jovem, que a dias de consumar o casamento renunciou ao amor terreno e se entregou nos braços de Deus, entrando para um convento, o Papa Cachola, lá foi afogando as mágoas com muito vinho ao longo de toda a sua vida, até que um dia, decidiu fazer as pazes com O lá de Cima, e resolveu ir a pé a Fátima com um grupo de peregrinos cá da terra, por ocasião do 13 de Maio. Rezam os que assistiram, que o bom do homem, quase no termo da caminhada, quis pôr também termo à sua vida, saltando de uma ponte. Mas ao ver que o rio estava seco, e que lá abaixo o que havia era um monte de pedras e pedregulhos, resolveu que seria demasiado doloroso, e lá prosseguiu até ao fim da jornada, sempre acompanhado pelo seu fiel companheiro de todas as lutas: o tinto.
Outro era o Salinhas, se não me engano era pintor de profissão, e versejador de todos os dias e copos. Apesar das rimas pouco felizes, era um homem sempre bem disposto, fruto especialmente das suas "rezas" em todas as muitas "capelinhas" da vila.
Conta-se que uma noite em plena praça do Papança , gritava de peito aberto: "Esta noite, nã me dêto !!" no mesmo instante aparece uma patrulha da GNR local, ao que ele continua dizendo "mesm'agora me vô dêtari !"
Bem, agora pra afogar a nostalgia destas lembranças, vou comer castanhas assadas, e beber um copito de tinto.
Boas Noites
Imagem: Fotos Sapo
Os 9 km que me separam do "forte", são deveras inspiradores, ou será mais correcto dizer transpiradores ...... pois..na verdade não sei.....
Não sei explicar assim, por letras se é o caminho que me inspira, ou, pelo contrário se é a desolação do olhar que me impele a transpirar a saudade que todos os dias engulo em seco e me faz aqui um nó na garganta, mesmo aqui a meio, de tal modo que acho que se vê no espelho retrovisor. Vê-se mesmo sem eu olhar pra lá.
Até parece!!!!
O grande lago!!! As terras do grande lago!!!!
"vai mudar tudo!!!! A terra, a aragem, a vida da gente, até os olhos vão deixar de estar secos, vai tudo verdejar"
....não se trata exactamente da terra prometida, onde correria Leite e Mel, mas andava lá perto.
E a alma da gente? Alguém, em algum momento se lembrou que este mundo de água ia arrastar pró fundo um bocado da alma da gente?
Onde ficaram as searas queimadas pelos Verões impiedosos? Esses campos cobertos de sol e suor? Onde ficaram os olhos da gente? A paz da aragem das tardes de estio de Agosto? O mar áspero de espigas gordas de pão acabado de fazer?
Está tudo afogado, morto, asfixiado pela água presa que encheu a alma da gente e a levou até ao paredão...
O verde enche agora as mãos dos homens, enche-as de vinhas carregadas da cachos lustrosos que aquecem almas novas.
E as almas não mais cantam, não mais se entregam aos rituais lânguidos dos campos em brasa. Agora o verde é luxuriante, e semeou ganância no coração das gentes.
O verde que é vida, o verde que é ar, é também rios de vinho a correr em direcção aos olhos esbugalhados e insaciáveis dos homens.
Agora as uvas enchem os bolsos, e os corpos engordam de felicidade......mas sem alma...
a alma está lá no fundo do grande lago a desfiar raízes de árvores velhas decepadas ......