Sexta-feira, 16 de Outubro de 2009

A força de um hábito

 

Naquele momento, apenas a falta de um espelho, pequeno que fosse, a entristecia. Gostava de ver no espelho o poder daquilo que sentia. Era madrugada, o vento fininho dos primeiros dias de Novembro, aventurava-se por debaixo de portas e janelas, e enregelava o quarto atarracado.

Rodopiou, uma e outra vez, descalça. O frio das lajes do chão faziam com que se sentisse ainda mais viva ... Mal conseguira pregar olho. Fora duro chegar até ali. Anos a fio de penas e martírios. Noites desfiadas em rosários de lágrimas, tantas vezes de arrependimento. Dias calados em febres de saudade.

Sentou-se na cama estreita, tonta de tantas voltas. Se alguém a visse, antes do nascer do dia, a dançar daquele forma, na certa temeria pelo seu equilíbrio emocional. Abafou uma gargalhada com a mão em concha. Uii - doíam-lhe os dedos dos pés! Massajou-os devagar, tinha tempo ainda. Ninguém lhe mandara andar em pontas no chão de pedra! Deixou-se cair para trás, os pés ainda no chão, os braços debaixo da cabeça, o corpo todo ao abandono feliz daquele momento. A vida estava a ser boa pra ela...pensou.

Fechou os olhos por um momento, via a outra vida dela. Os cabelos cor de palha compridos, a franja sempre a cair para os olhos, a saída da escola às 5 da tarde, os lanches na pastelaria do Amadeu com os amigos. Acendia um cigarro assim que caía numa das cadeiras à roda da mesa - Ufa! Esta época de exames está a dar comigo em doida! Estou mais que morta!  - Puxava uma e outra baforada do cigarro e expelia o fumo com gosto. Depois chegava ele, vinha pelas costas dela e como sempre dava-lhe um beijo no pescoço - Olá linda! Então como foi o dia? - ficavam ali, no meio de toda a gente, apenas um com o outro, sem intromissões, falavam do dia, trocavam novidades e beijos, e depois do lanche saiam abraçados. Faziam amor no banco de trás do Renault 5, e despediam-se com a boca ainda cheia de promessas.

Ele entrou em Medicina, no Porto, ela adiou a Universidade. Era muito nova, sedenta de dar. Propôs-se para uma missão em África. Tomou-lhe o gosto e voltou. Não sabe bem como, mas as cartas começaram a rarear, telefone em muitos lugares era apenas uma miragem, e sem dar por isso a ânsia da paixão, deu lugar à saudade, que deu lugar à recordação doce de um lugar longe.

Não houve choros, nem culpas. Soube que ele casou. Mandou-lhe um cartão de felicitações, e recebeu outro a agradecer.

Numa das missões, conheceu o Toti, missionário como ela, enfermeiro de profissão. Casado. A distância de casa acabou por os juntar na cama. Espantaram o medo, as diferenças e diluíram a cor da pele de um e de outro num alambique de suor aquecido na sofreguidão das noites quentes.

Desta vez não foram feitas promessas, nem juras de amor para sempre. Ali naquele lugar o Sempre era o dia de hoje e cumpria-se em cada criança que faziam sorrir.

Suspirou fundo. Desde muito cedo na vida vivia as relações com fervor, entregava-se sem reservas quantas vezes não foi mal interpretada, incompreendida até, quantas vezes ainda o era. Este pensamento provocou-lhe nova risada.

Passou a mão pelo cabelo. As dificuldades logísticas durante os anos de missões, não lhe deixaram outra saída que não fosse cortá-lo, bem curto. Claro que tantos anos depois já estava habituada. Gostava de se ver. Dava-lhe em ar mais jovem, irreverente. Agora achava que já não conseguiria ver-se de outra maneira.

Os tempos em África tinham-lhe dado sabedoria. Não uma sabedoria aprendida nos livros, levada ao colo por bicas curtas e cigarros em fio, não, era antes uma sabedoria das coisas. De como o sol se põe todos os dias com tonalidades diferentes, de como a terra se agarra à pele e enche os pulmões de um querer cantado em dialectos à tardinha. De como se cai com os joelhos no chão com a certeza de uma mão firme para nos erguer.

Agarrou a mão, e esqueceu a dor. Edificou-se por sobre o pó que às vezes foi.

Olhou para a janela pequena. O sol estava a nascer. Tinha tanto que fazer. O coração batia cada vez mais depressa, tão descompassado que parecia ir saltar-lhe do peito. Podia viver com muito pouco, com quase nada, mas o coração tinha que estar cheio, cheio ao ponto de derramar para fora e sobrar para quem estivesse por perto. Já se tinha apaixonado antes. Mas assim...nunca.

Levantou-se da cama. Calçou as sapatilhas de lona, retirou o fio com o crucifixo de cima da mesinha de cabeceira e passou-o pela cabeça. Ajeitou a cruz por cima da veste branca, à altura do coração. Depois fixou a cadeira ao canto do quarto, deu um passo até lá e pegou no véu branco. Colocou-o num gesto repetido, o cabelo por dentro, imaculado. Era o último dia que o usaria. Nessa mesma tarde, na frente de todos, receberia outro, negro, definitivo. O enlace preparado nos últimos três anos ia ter lugar. Ia poder finalmente apenas amar. 

 

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Quinta-feira, 24 de Setembro de 2009

Os noivos ( relato de uma visita ao alfaiate )

 

 

 

Olhou para um lado, depois para o outro, certificou-se que a rua estava desimpedida, e preparou-se para atravessar pela passadeira de peões.

- Anda lá, quero ver se ainda lá o apanhamos antes da hora do almoço!

Ana Maria era uma rapariga possante, um metro e setenta de altura, ombros de estivador, e um tronco corpulento. Naquele exacto momento, vinha de braço dado com o noivo. O Bento não via mais nada à sua frente a não ser a sua querida e amada Ana Maria, era perdido por ela. A bem da verdade, ele pouco mais conseguia ver com um muro daqueles à sua frente, e o amor profundo, todos sabiam era um misto de temor mansinho e medo de morte, consoante a ocasião. O Bento era um rapaz bem posto, um rosto miúdo de gaiato, num corpo talhado pelo trabalho no campo, sarado e bem proporcionado. Era também um rapaz acanhado, com alma de pardal espantado, e um coração de manteiga sem sal e sem coragem.

Passaram a rua, ele a reboque dela.

- Falta menos de um mês, e se não sou eu a pensar em tudo, tu não te mexes! - Ana Maria conferia às palavras um certo tom de mágoa - tu não vês que eu não chego pra tudo!

- Tens razão amor, desculpa-me...sabes que eu sou um descuidado...

- ....mas não pode ser! - a conversa continuou no mesmo compasso de culpas e desculpas.

Ao fim da rua, mesmo na esquina que desembocava na praça principal da Vila, podia ler-se num placard em letras manuscritas: Casa Valverde - Alfaiate Masculino; por baixo, em letras mais pequenas mas ainda assim bem sublinhadas: a última moda à sua medida.

Ana Maria sorriu. - Chegámos!

Amândio Tito Valverde, mantinha o negócio da alfaiataria que herdara do avô paterno, com um regozijo extremo. Aquele era o prazer máximo da sua vidinha pequena. Era ali, dentro da lojinha humilde mas bem arranjada que vivia todas as suas fantasias goradas de grande desenhador de moda, estilista conceituado nas melhores capitais europeias, desfilies e brilho, e palmas e agradecimentos. Era ali no meio dos rolos de tecidos de cores espartanas, e um mobiliário sisudo que se imaginava envolto em sedas e veludos.

- Bons dias jovens, em que posso ser útil - perguntou Amândio Tito, esfregando as mãos uma na outra, o tronco ligeiramente inclinado na direcção dos entrantes.

- Sr. Valverde - adiantou-se Ana Maria - este é o meu noivo, Bento Joaquim. Ele precisa de um fato, uma coisa fina, está a ver? É que...vamos casar, daqui a um mês. Acha que pode atender-nos? Ainda haverá tempo? - pergunta ansiosa.

- Casar.....um mês.....hummm...bem, é um tudo nada apertado, já vê....tenho muito trabalho entre mãos, não tenho ajudantes especializados - um assomo de vaidade espreitou-lhe o olhar - mas a bem do amor, o que não faz um artista! - rodou os olhos para o céu e abriu os braços, todo ele drama.

O alfaiate, tinha umas mãos finas de dedos longos, e unhas bem tratadas. Umas mãos de fazer inveja a qualquer mulher. Era um homenzinho pequeno, magro, pensar-se-ia que teria padecido de raquitismo em criança, tal a fragilidade que aparentava. Era no entanto de personalidade vincada e forte, tantas vezes abafada em metros e metros de tecido.

Não era segredo para ninguém da Vila, Amândio Tito movia-se numa singular redoma. Era um homem peculiar. Afeminado, de voz excessivamente estridente e gestos delicados, fazia da custura uma arte, e acima de tudo um escape para os pensamentos que lhe atormentavam os dias longos. O pai, homem rude de má maneira e parca educação, sempre recusara o ofício paterno, mexer com fazendas finas era negócio de mulher, e a sua macheza mantivera-o afastado da alfaiataria durante toda a vida. Amândio Tito filho único de Avelino Valverde, touro cobridor e putanheiro inveterado, nasceu de sete meses, manso como um gato castrado, e melindroso como ponto de açucar.

Cedo sentiu as diferenças medrarem dentro de si, e cedo aprendeu, muitas vezes por acção da força bruta do seu progenitor, a calar anseios e suspiros. Cresceu debaixo das saias protectoras da mãe, e dos "piropos" do pai. - Paneleiro! Larga os panos e vai-te às raparigas. Larilas! Maricon de merda!

Aos 20 anos, com a tropa feita, depois de uma recruta bravia, que incluiu um passar de cama em cama no escuro da caserna, Amândio Tito, já com os desejos moldados, e as vontades domesticadas, cortejou uma rapariga de uma aldeia vizinha, e poucos meses depois uma boda cheia de pompa e circunstância engalanou a Vila.

Maria Rita, tinha 17 anos no dia do casamento. Gostava de Amândio Tito. ele compreendia-a, era vontadeiro, estava sempre a dizer-lhe como se devia ataviar, era um bom rapaz, de boas familias, os Valverde, toda a gente sabia nos arredores eram uma familia de recursos, o velho lidava a custura, e o filho labutava nas terras de sol a sol. Tinham amealhado uns tostões, e Maria Rita, ao casar com o neto Valverde, tinha a certeza de estar a trilhar um bom caminho. Claro que o casamento se revelara muito diferente de tudo o que sonhara, de tudo o que as amigas mais velhas lhe tinham segredado entre gemidos e respirações aceleradas. O marido não tinha o minimo interesse nela, pelo menos a esse nivel carnal, que tanto tinha imaginado. A principio ficou magoada, não negava, depois aos poucos já era um amargo de boca, um quase ódio que germinava devagarinho mas robusto. Gritou, rebelou-se, ofendeu-o, também ela lhe chamou paneleiro e todos os outros epitetos que ela já ouvira vezes sem conta; rasgou as roupas na frente dele, ordenou-lhe que pelo menos a livrasse da virgindade! -  Caramba homem! Será que hei-de morrer virgem e casada!?

Por fim, concedeu-se a si própria uma trégua, arranjou um amante, caixeiro viajante. Passava uma vez de quinze em quinze dias a vender botões e fechos de correr, e deixava-a exausta e viçosa despois de cada visita.

- Vamos então tirar as medidas, meu jovem. - revirou os olhos direito a Bento Joaquim, e segurando-lhe pelo braço encaminhou-o para a salinha de provas. - a menina, venha também - mediu-a de alto a baixo, sem esconder o espanto de ver aquele belo exemplar de homem com uma rapariga tão vulgar. - sempre ajuda a escolher o tecido, e o modelo.

Ana Maria seguiu os dois homens de perto.

- Estamos no Verão, o Sr. Valverde não acha que um linho claro era o ideal? O Bento é moreno, ficava-lhe bem um fato claro, não acha? O que diz Sr. Valverde?

- Oh minha menina, o linho é muito bom, sim senhora, mas para férias, ou até para o escritório, agora...para um noivo - e juntou as mãos junto ao peito - para um noivo é pouco elegante, entende, amarrota-se, enruga-se - franzia a boca e o nariz enquanto falava - para um noivo precisamos de um tecido mais nobre, uma boa lã de seda por exemplo, que cai completamente a direito - deslizou a mão pela perna de Bento num movimento descendente.

O rapaz retesou-se constrangido, mas continuou calado como era seu hábito. Ana Maria olhou para Amândio. Havia uma ponta de desconfiança naquele olhar. Aquele homem era mexido demais para homem. Falava demais.

O alfaiate puxou um rolo de fazenda azul marinho. - Está ver meu jovem? - dirigia-se a Bento, que não sabia o que fazer ou dizer: - errr...bem..... - balbuciou a medo, virando a cabeça para a namorada.  Ana Maria tocou o tecido, apalpou, torceu o nariz, passou o tecido pela face e depois de um silêncio de expectativa - parece-me bem Bentinho, é macio. Não quero saber do preço. Faça o melhor que sabe, Sr. Valverde!

- Ora essa menina! Amândio Tito Valverde faz sempre o melhor que pode! Em especial para um noivo tão jeitoso... - havia mel na voz.

Foram tiradas as medidas, o comprimento de pernas e braços, o peito, ombros, anca, cintura, nada foi deixado ao acaso. A cada numero lido na fita métrica, Amândio Tito elogiava as proporções perfeitas do noivo.

Um cheiro forte a cozinhados intrometeu-se no cenário.  - Ana Maria sentiu uma tontura, procurou o apoio da mesa e fechou os olhos um momento. O cheiro a refogado puxado, estava a deixá-la enjoada. Desde que descobrira a gravidez, há mais de um mês, que se lhe águava a boca de repugnância e vómito, na presença de odores fortes. Só ela e Bento sabiam. Ele de olhos baixos e voz sumida, concordou de imediato com a antecipação da data do casamento. Diriam que era a urgência do amor, que não podiam estar um sem o outro.

- Por hoje estamos terminados! - sorriu Amândio Tito de mãos postas e olhos cravados na camisa de Bento Joaquim, aberta no peito...

Combinaram voltar daí a três dias, para a primeira prova - é coisa rápida, a menina se preferir, nem precisa vir!

Sairam porta fora às pressas, Ana Maria precisava de ar desesperadamente.

Amândio Valverde fechou a porta à sua saída. Encostou-se na ombreira e suspirou fundo.

Por detrás das cortinas da porta que dava para a casa de habitação, Maria Rita assistia, mais uma vez vencida. Aquela guerra sabia-o bem, já não era sua.

Rua abaixo, a reboque de Ana Maria, Bento Joaquim não conseguia parar de pensar no fato novo, na lã de seda azul marinho, nas mãos do alfaiate.

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Quinta-feira, 10 de Setembro de 2009

Encurtar distâncias

 

Ajeitou o colarinho da camisa, pela segunda vez em menos de dois minutos. Dois toques à campainha da porta. Dois toques breves. Tirou o lenço de cambraia da algibeira das calças, e limpou a testa, estava um calor dos diabos. O Outono não tardava, o sol de Verão, implacável, mas já doente, teimava em não se dar por vencido. Duas horas da tarde. Em ponto. Soavam agora no relógio da torre da Igreja Matriz. Ninguém de bons miolos saía à rua àquelas horas. O som dos tacões no chão de mosaicos, anunciou a presença de alguém. Suspirou de alívio. A porta, pesada e alta abriu-se sem ruído. Um rosto esculpido em indiferença, avançou : - Entre. A senhora espera-o. Aguardou que a mulher de mármore lhe desse passagem e entrou, pedindo licença Sentia os dedos dormentes da força com que apertava o lenço nas mãos. Não se tinha dado conta. O lenço parecia agora um pedaço do jornal de ontem amachucado. Às pressas, voltou a meter o lenço na algibeira, alisou as calças, assim, ao mesmo tempo que ajeitava a sua aparência, enxugava o suor frio que lhe alagava as palmas das mãos.

Caminhou alguns passos atrás do ser granítico à sua frente. O passo dela era decidido, intimidador. Ele balbuciava um andar constrangido. Todo o hall de entrada estava envolto por uma luz que tinha alguma coisa de sagrado. Os vitrais das janelas altas, conferiam à divisão ampla uma atmosfera de oração e retiro. Acalmou. Sentiu o bater do coração ceder, no seio da calma daquele lugar. De novo respirou fundo. Fechou os olhos só por um segundo, e depois ergueu o olhar e a coragem. Saíram para um corredor estreito, e pouco iluminado, ladeado de portas de ambos os lados. Era bastante audível o zumbido de ventoinhas, vozes, e segredos. Algumas das portas entreabriam-se à sua passagem, e quase se podiam sentir as carícias daqueles olhos sôfregos, por detrás da vida da casa grande.

O corredor desaguava numa sala pouco mobilada para o espaço disponível, impessoal, triste. - Aguarde aqui.

Era uma ordem, tinha a certeza. Num dos cantos da sala havia uma salamandra de ferro, grande, a acautelar os longos invernos, ali bem maiores que lá fora. Em frente uns sofás de napa bordeaux. Na parede contígua, um quadro de gosto duvidoso, com cores garridas, uma queda de água, e uma rapariga de outros tempos acocorada a apanhar flores.

Em frente à porta, para o jardim, umas janelas enormes que deixavam entrar sem pudores o calor e a luz do exterior. Quiçá o elo de ligação a um mundo que não deixara de existir apesar de tudo.

No centro 4 mesinhas de madeira de pinho, com quatro cadeiras cada uma. Alguns jogos de tabuleiro, revistas de bordados, livros fechados.

Não havia ninguém ali, além dele. Ouviu um estalido e virou-se. O aparelho de ar condicionado, fazia os possíveis por refrescar a sala.

Puxou uma cadeira para perto das vidraças, e deixou-se ficar ali, a olhar para o imenso jardim. O pavimento todo cimentado, as escadas de granito davam agora lugar a rampas, e todo o verde deslumbrante de antes, tinha sido substituído por canteiros de flores de outras paragens geometricamente pousados no cimento. O pombal, o galinheiro, o forno, a horta. Tudo traduzido de forma grosseira em cubículos de argamassa e reboco. Lavandaria, casa de máquinas, tudo imaculadamente branco e asséptico.

- Passa aí! Não queiras fumar tudo tu!

- Mas é só uma ponta! Não dá mais que duas passas a cada um.

- Então está na minha vez, certo? Esta gente com a mania das doenças...o avô deixou de fumar, o pai - a voz esganiçada, os gestos exagerados - reduziu para metade! - caíram no meio das ervas numa gargalhada franca e despreocupada.

Eram assim aqueles dias. Francos e despreocupados.

- Agora só mesmo a mãe, que a gaja não vai em conversas, ela fuma-os às escondidas dele, às vezes até fuma daqueles que fazem rir! Fica um pivete no terraço, que nem te digo!

É vê-la com olhos de peixe - dramatizava a conversa da mãe - "Queridoooo, o que queres para o jantarrrrr , diz lá que eu peço à Mariiaaaaa pra fazerrrrr"

Outra vez o riso livre, abafou a terra e o cimento frio.

- Xiça!!!! Já queimei a ponta dos dedos!! Vamos ficar com os dedos todos amarelos como eles, e ter cancro nos pulmões, e as doenças cardíacas todas, e um hálto mal cheiroso, e catarro matinal, e escarros verdes e nojentos, e dentes enferrujados.

- Não digas tantos disparates....- nunca gostou de falar no fim, podia até rir por fora, mas dentro de si, borboletas assustadas, batiam asas ao som de profecias - dá isso! Apagou a beata com força na terra húmida

Lá ao fundo, foram em tempos as cavalariças. Agora, no seu lugar estava uma pequena capela, de traço limpo e minimalista, reservada para a extrema função de velar as almas que partiam.

- Queres.....vamos até ao pombal?.... - perguntou num misto de vergonha e ansiedade. 

- Se o pai soubesse o uso que temos dado ao pombal, depois que ele se desfez dos bichos - tapou a boca com a mão para abafar o riso nervoso e corado. - Vamos - levantou-se de um pulo e puxou-o.

- Não brinques com coisas sérias! - um calafrio subiu-lhe pelas costas - punha-nos a todos no olho da rua, a mim a minha mãe, ao meu pai....há coisas que apenas se pensam, não se dizem nem a nós mesmos - depois tocou-lhe no queixo, já mais morno - sabes porque tens dois ouvidos e uma boca? Para ouvires o dobro do que falas! - apertou-lhe o nariz e fugiu.

- Não fujas! - Empurrou-o de novo para o chão - És mesmo velho tu! Isso são mesmo ditados de velhos....Eu vou à frente.

Deixou-o sentado nas ervas, os cotovelos apoiados, a olhá-la....o andar lascivo e inocente a um tempo, os pés descalços, os calções curtinhos a desafiar a vertigem do desejo dele.

Esperou. O coração aos saltos, quase a rebentar-lhe as têmporas, a boca seca, e as palmas das mãos, ontem como hoje, alagadas em suores frios.

Olhou em volta. A lida da casa grande soava distante, na cadência monótona de todos os dias. Limpo. De um pulo alcançou a porta do pombal, entrou, subiu o lance de escadas para o piso superior, e encontrou-a à sua espera. Nua. Não havia sombra de culpa naquele rosto perfeito, antes uma atitude provocadora de quem não sabe ainda o que é o medo. Os braços abertos - Anda, vem cá! - os seios pequenos iluminavam a tarde que caía em paz, e encandeavam-lhe a vontade. Como um animal, cego, ele entregava-se inteiro.

 Olhou o relógio. Duas e meia. Tardava. Dava-lhe tempo para pensar, e ele havia tempo que tinha deixado de pensar, pelo menos pensar nesses dias distantes.

Arrependia-se de não ter sido mais, de não ter sido maior. Mas, afinal, ele era era apenas do tamanho dos homens.

Se calhar não devia ter vindo. Não era bom falar dos mortos. Aquilo fora a vida de outro. Ele podia ver agora claramente todos os pontos da história, classificados, legendados, editados, como numa tela de cinema. Nada era seu, nem as memórias. Era mais que certo. Era uma redonda estupidez ter vindo. Ainda funcionava a voz do dono, pensou desconsolado.

Levantou-se devagar. Levantou a cadeira e voltou a pô-la no lugar. Não esperava mais, nem mais um minuto. Pousou a cadeira, olhou mais uma vez lá para fora, só mais esta última vez.

- Quem pensas tu que és, um bocado de merda! Desaparece daqui e assegura-te de que nunca mais apareces a mijar aqui à porta.

Foi pacífico. Foi-se dali. Ela ficou. Despediu-se num aceno camuflado pelas cortinas pesadas do quarto dos pais. Um aceno dissimulado e um sorriso. Uma promessa.

As promessas, soube-o sempre não foram feitas pra se cumprir, são feitas de esperas e perseguições quiméricas. Tinha as mãos trémulas, apertou-as uma na outra - acorda! - pensou alto. Arrumou a cadeira e dirigiu-se para a porta. A meio do caminho, a porta abriu-se, a mulher sem expressão apareceu, abriu as duas portadas, voltou um pouco atrás e entrou empurrando uma cadeira de rodas. - Está mesmo à sua frente Senhora.

A mulher sentada na cadeira, devia rondar os setenta anos, tinha um ar distinto e altivo, uma figura magra, e uma postura que mesmo naquela condição era firme e vincada. Tinha o cabelo prateado apanhado numa banana. Perfeito.

- Jorge...és tu? - Perguntou enquanto descerrava um sorriso ainda provocador. Ficou imóvel, perante a força daquela presença. A frescura daquela voz. - "és mesmo um velho tonto!"- Ainda ouvia o eco desses dias felizes.

- Sim - foi tudo o que conseguiu dizer.

- Ainda bem que vieste. Pena que não te posso ver. Chega-te aqui. Dá-me as tuas mãos.

Estendeu-lhe as mãos. Tocaram-se. Dois pares de mãos cheias da vida de outrora. Juntas, a encurtar distâncias.

- És mesmo tu Jorge...puxa uma cadeira, queres um cigarro?

 

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Sexta-feira, 28 de Agosto de 2009

Texturas

 

  

O dia chegou destemido. Entrou em jorros de luz pelos vidros da janela sem se fazer anunciar, como uma visita inesperada.

Os meus olhos cegaram de tanto sol. Senti a noite escorregar pelos lençóis de linho até se diluir no rasto de pó dourado.

 

 

 

Uma profusão de claridade, encheu o ar de partículas brilhantes que te tocavam a pele, e te lambiam as costas nuas.

Foi nesse instante, nesse momento em que o toque se sublima, que duvidei da tua presença.

Serias tu corpo, e carne e sangue? Ou apenas restos de um qualquer cometa espalhados em mim...

 

 

Acho que sorri. Eras tu. Corpo, carne, sangue. Meu.

Cheia de certezas, e ainda ébria de tanta luz, levantei-me.

Senti os pés queimarem. O amor usado na noite, fervia em borbotões derramado pelo soalho.

Apanhei-o com cuidado, e antes que o dia o invejasse, guardei-o a sete chaves, num sítio que só eu sei.

 

 

 

 

Com as mãos em labaredas, enxotei a luz com as cortinas, e deitei-me outra vez.

A penumbra embalou a manhã, e eu abracei-te iluminada.

 

 

 

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Quarta-feira, 18 de Março de 2009

Espera-me, que eu não volto

 

 

 

O motor do tractor emoldurava-lhe a indiferença. Aquele rosnar cavo e profundo, ressoava no vazio do campo pontilhando a monotonia das horas.

Joaquim António, manobrava a máquina apenas com uma mão, recostado no banco plástico e rijo, forrado com um pano de cotim coçado.

A outra mão estava esquecida nas costas do banco. O braço pendurado com a mesma displicência com que conduzia sete dias na semana aquela máquina pachorrenta e estúpida.

Sentia-se estúpido ele também, naquele vaivém, arrastado pela grade de ferro pesada, que arava a terra seca e a sua culpa ainda em carne viva, com igual intensidade.

Desde que aquilo se dera, não mais tinha encontrado paz. O cheiro forte da terra, costumava ser um bálsamo para todas as dores ou maleitas. A ressaca das segundas-feiras de manhã, o sol vigoroso e cruel dos verões varonis, as chuvas agoniantes e potenciadoras de ansiedades e apertos no peito... tudo, o cheiro visceral da terra tinha sido sempre fonte de paz e acalmia. Por isso não se via a fazer outra coisa que não fosse aquilo. A escola aborrecia-o de morte, quatro paredes a cingir-lhe o corpo, quatro corpos hirtos a encolhrem-lhe a vida, que corria lá do lado de fora, livre, sem grilhões, sem algozes.

Ele não era diferente agora do que era antes. Era o mesmo rapaz, respondiam as pessoas à pergunta - "Achas que mudei? Responde com a verdade! - repetida vezes demais nestes últimos dois anos.

Mas ele sentia-se diferente. Claro que era o mesmo Joaquim António que estava todas as manhãs reflectido no espelho da casa de banho. Mas ainda assim, a imagem devolvida pelo espelho provocaca-lhe um calafrio suado que o invadia sem misericóridia.

Já não havia mistérios naquele sentimento...não agora. Chamava-se culpa, e doía como um corte infecto infestado de bichos, uma dor lancinante, sem reservas, sem perdão, sem apelo.

Caíra de amores por ela, toda a gente sabia ali pelos arredores, que ele arrastava o mundo por ela, e ela um dia viu-o.

Amaram-se em segredo pelos recantos, desafiaram regras, atreveram-se por caminhos ainda por descobrir, juntos apagaram estrelas e acenderam constelações inteiras.

Mas Laura tomava conta da vida de Joaquim com a voracidade de uma erva daninha, e ele sentiu-se outra vez na escola, sentado direito numa cadeira de pau, com a cartilha aberta na letra errada, e a visão do vento a soprar segredos às árvores do recreio. Sentia outra vez os braços atados, a letargia imposta pela porta fechada, a inquietação a germinar em rebentos primaveris no seu peito em pousio.

A rebelião pressentia-se a cada dia de amores jurados e gemidos entornados no leito apertado do abraço dela.

- Vou pra França... o meu primo Germano, tem lá um serviço bom à minha espera. É na terra, nas vinhas, tu sabes que é só o que eu sei fazer... Queres vir também!? Não! Isso é impossível! Aquilo é só homens, é lá sitio pra uma rapariga como tu! Tira isso da ideia! Agora vou eu, e depois, conforme as coisas correrem, mando-te buscar.... ouve, não chores, eu volto, claro que volto... ela não acreditou. Ele também não.

Fez a mala. Dois pares de calças de algodão, a camisa dos dias de festa, a outra toda passajada pelas mãos deformadas da avó Miquelina, e os botins de pele curtida que o pai encomendara ao Chico das Botas há anos atrás.

A culpa era assim como uma doença, um mal daqueles sem cura, que se pegam à pele da gente, e em menos de nada já nos correm no sangue num galope certo.

Desligou a chave da ignição, o ronco do tractor cessou finalmente, e devolveu o silêncio àquelas paragens. Joaquim António, saltou para o chão, limpou a testa com a boina de gabardina axadrezada, e caminhou sem pressas os dois quilómetros que o separavam de casa.

Nunca mais pegara na bicicleta a pedais. Agora seguia a pé. Chegava sempre mais cansado. O cansaço era redentor.

No dia seguinte, o dia amanheceu antes da hora, havia um alarido no ar que puxava quem passava num remoinho crescente, e as vozes em surdina subiram o tom, e os gritos perfuraram tímpanos e sonhos, e uma multidão de gestos urgentes e olhares esbugalhados precipitava-se para o termo da vila.

Ali, debaixo da nogueira antiga, ao lado do Poço das Virtudes, jaziam lado a lado as sapatilhas de lona vermelha de Laura.

 

 

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Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009

Sem Formolidades

 

 

 

 

Jogou-lhe as mãos à volta do pescoço. Num suspiro gemido disse-lhe ao ouvido:

- o nosso amor é eterno!

ele deixou-se rir:

- não, o nosso amor é etéreo... deixemo-nos de eternidades que só a palavra me devolve um cheiro velho, a velhos e compressas de formol, o som cruel dos carrinhos de soro lavado a morfina a dedilhar corredores de mármore num passo arrastado sem fim......

o nosso amor está acima de tudo isso, está longe do envelhecimento da espécie, e próximo da permutação do ser, que se lixe a eternidade!

- ...m ..mas eu só queria dizer, que o nosso amor é para sempre....

- esquece o para sempre! esquece! - exasperou-se - para sempre são bocas cheias de terra, entendes? para sempre são corpos cheios de algodão...se te amar para sempre... acabamos mortos. Já pensaste nisso?

Agora o queixo tremia-lhe. As lágrimas ameaçavam transbordar, e transformar aquele fim de tarde, num dilúvio:

- Só pensei... que me amavas...

- E amo! Amo-te agora, hoje, aqui.

 

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Quarta-feira, 17 de Dezembro de 2008

Estória para adormecer... (IV)

 

 

 

Era uma vez um medo, que vivia num fundão

acordava apavorado p´lo bater dum coração

Feio como são os medos, soturno como um caixão

assustava pirilampos com arrotos de trovão

Era uma coisa disforme, assim sem forma ou feitio

com um olho no umbigo e baba a correr em fio

Dava-se a ares arrogantes por um certo pedigree

rosnava num tom arrastado:

- Tenham medo! Eu estou aquiiiiiiiii

Nas entranhas de nenhures levitava aquele espectro

suspirando de quando em vez, pelo zumbir de um insecto

Consumia-se em sobressaltos, tamanha era a solidão

uivava de Lua a Lua e extenuado, morria no chão

Esquecido naquela jaula, aquecido em suspiros fundos

sucumbia desastrado a sons diáfanos e rotundos

ás vezes sentia medo, o medo ali encarcerado

- Quão profundo é este leito? - andava o medo intrigado....

Cego desde o primeiro dia, assustador aclamado

o medo de amar assombrava.... um rapaz apaixonado.

 

I,II,III

 

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Quarta-feira, 5 de Novembro de 2008

Prece

 

Quando voltares, no regresso do vento, não deixes de me abraçar.

Peço-te agora, na ausência, porque à luz dos teus olhos sei que por certo vou calar a prece.

Ampara-me dos rigores de Novembro, faz das tuas mãos....dos teus braços, um manto vermelho de folhas quentes que amornem a inquietação da espera.

Ensina-me a ir e vir como o vento....como tu...

Contraria o meu espírito de árvore, espicaça estas raizes pré-históricas que alastram na minha negligência.

Poda as incertezas que me castram a vontade.

Que o teu corpo se apodere do meu, e o vento nos encontre por fim, fundidos numa partícula irremediavelmente una... indivisível...

 

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Domingo, 5 de Outubro de 2008

A um Deus diferente

 

 

 

 

Matias perdeu-se no mundo ainda verde.

Da noite para o dia, a doce certeza familiar fundiu-se no leito de uma cama de hospital. As lágrimas confundidas com éter.

Durante anos a fio, um sonho tornou-se recorrente. A mãe.

Todas as noites vivia os últimos dias dela, com ela, com o sorriso dela .... e todas as manhãs, fazia a um Deus diferente, a mesma pergunta:

- Quantas vezes vou ter que a perder?

A resposta não veio....nunca....e Matias desistiu de questionar as sombras das árvores.

 Era pouco maior que um cão rafeiro, e sozinho perdeu-se nos arredores da vida.

Fugiu do ruído insuportável do eco da casa vazia.

Correu o mais que pode para longe da ausência do toque apaziguador nas noites de tempestade.

E sem saber como, caiu nas graças de outros tantos foragidos, que habitavam nas franjas das serranias, nos subúrbios das vidas impressas em papel...nos espaços adjacentes expressos em extractos bancários.

O Joel da oficina mecânica, foi seu mentor naqueles tenros anos.

Protegeu-lhe os primeiros Invernos de criança sem rumo, partilhando a pouca comida ao som de grandes feitos do passado. O Joel tinha um dom....abria qualquer fechadura que se lhe deparasse, de caixa de música a cofre comercial, nenhum segredo estava ao abrigo de tão hábeis mãos.

O "dom" já lhe valera estadias dentro de muros de betão, mais afastado ainda do centro vital do mundo.O Joel era um homem duro, todo esculpido em granito, e Matias, perdido, achou-lhe um coração dentro do peito.

A Rosa era puta de carreira. Caçava na beira da noite, fregueses sem norte, que como ela se aventuravam no escuro com ares de predador, e no fim, mais não eram que presas fáceis.

A Rosa foi madrinha de guerra de todas as lutas travadas por Matias. As primeiras carteiras palmadas à socapa nos transportes públicos, os primeiros cigarros fumados em tosses vulcânicas, e, a seu tempo, foi também ela que lhe ensinou tudo o que um homem feito tem que saber na cama. Em lições privadas, sob a luz mortiça de uma velinha de igreja.

As mãos de Rosa conduziam Matias a latitudes superiores, onde havia mais sol e coragem. E depois do espanto do corpo, enroscava-se como um gato a brincar nas tetas da mãe, e adormecia a tremer de medo, pela premonição de mais uma despedida.

Mesmo neste mundo onde a claridade era só uma miragem, e a penumbra era companheira de luta e suor, Matias cresceu como uma trepadeira, forte e espigado.

Andava pelas ruas ao sabor da vontade. O buço sombreado pela puberdade, os joelhos ossudos e encardidos, e um assobio desentoado de quem se julga dono do mundo.

Matias viu Bia a primeira vez, na paragem do autocarro. Ela viu-o a roubar a carteira a um finório com ar superior...e calou-se. Baixou os olhos e quase sorriu. Matias ficou aflito quando deu por ela. O coração ameaçou sair pela boca. Olhou-a num tom de súplica, e saiu dali disparado. Só parou na oficina sebeirente do Joel.

Sentou-se num pneu, tirou a boina e limpou o suor da testa com ela. Fechou os olhos com medo....e lá estava aquele quase sorriso, debaixo de uns olhos castanhos suaves.

Bia estudava num colégio de freiras. Era aplicada e boa aluna. Os pais estavam noutro país, e tinham deixado a pequena à guarda de uma tia-avó muito chegada, que a tratava com capricho e amor. Bia tinha o  coração aberto, e sonhos de muitas cores, que acabavam invariavelmente com o beijo de um príncipe dourado e juras de eternidade.

No outro dia, com os joelhos a bater um no outro, e as forças a escapulirem-se, Matias atreveu-se a ir espreitar a paragem do autocarro. Estava tudo calmo. Respirou fundo com alívio. Mas um formigueiro tomou conta dele. Lá estava a rapariga outra vez. O cabelo claro, atado num rabo-de-cavalo austero demais para a idade, e os olhos mansos. Aqueles olhos que eram da exacta cor das avelãs...

O olhar de Matias teve em Bia o efeito de um espelho reflector, e ela virou-se na sua direcção.

Esboçou um sorriso, e num gesto pensado, deixou cair todos os livros que carregava nas mãos

Matias saltou como um galgo, e de pronto apanhou do chão a amalgama de livros e papeis espalhados.

- Toma ...uhhhh desculpa, tenho as mãos todas sujas... - disse o rapaz tomate, envergonhado, pela primeira vez na vida, do mau trato dado às suas mãos.

- Ahhh obrigado..nnnão faz mal- a rapariga escarlate mal o olhou. Agradeceu com decoro e regozijou-se do sucesso do plano.

O autocarro chegou, apanhou o grupo de pessoas, Matias acenou um breve adeus, e num suspiro profundo, voltou para casa.

 Contou a Joel o que se tinha passado, na esperança de ouvir dele uma pista sobre aquele calor que agora sentia dentro do peito. Joel não se interessou. Joel não perdia tempo com essas dores que não se vêem.

Estava na hora do almoço, e Matias, um esfomeado por natureza, tinha perdido o apetite por completo.

Procurou a Rosa, que o acolheu de braços abertos como sempre:

- Então rapazinho, já vens à procura da sobremesa? Ahahaha! - gracejou a mulher alto e bom som.

- Não. - respondeu o rapaz, lacónico, por entre um sorriso amarelo.

Contou-lhe. Rosa ouviu calada, e assim permaneceu por alguns minutos, depois de Matias se calar.

- Então? Não dizes nada!? - disse o rapaz inquieto.

- Espera...deixaste-me um bocadinho assim....como se....olha miúdo, isso deve ser amor...digo eu que já me esqueci o que isso é. - respondeu a mulher de olhos húmidos, e a voz embargada por memórias de outro mundo, de outro corpo, de outra Rosa.

No dia seguinte, Matias acordou antes do relógio velho do Joel. Foi ao quintal, abriu a torneira e meteu a cabeça debaixo da água fria. Esfregou bem o cabelo com sabão azul e branco, lavou a cara, uma e outra vez, até ficar vermelha, e depois demorou-se nas mãos. Ensaboou-as, passou-as por água, e repetiu o processo umas duas ou três vezes.

Entrou outra vez em casa, e procurou ver a sua imagem no pedaço de espelho partido pendurado ao lado da porta. Não estava mal. Nem se reconhecia de tão desencasqueado. Vestiu uma roupa limpa que as senhoras da igreja lhe tinham dado há tempos. O traje era tão "pipi" que nunca tivera coragem de o envergar...e agora as calças mais pareciam uns calções. Mirou-se desconsolado. Que figurinha! Ao menos estava limpo, pensou.

Estava quase na hora. Penteou-se com os dedos como era habitual, e saiu em passo de corrida. A ansiedade transbordava, e isso notava-se nas mãos suadas que pelo caminho ia limpando nas calças.

Quando chegou à paragem, Bia já lá estava. Matias caminhou direito a ela:

- Bom dia, posso ajudar-te a segurar os livros enquanto o transporte não vem? - perguntou de uma vez, até quase perder o fôlego, e continuou - hoje tenho as mãos limpas, vês? - disse ao mesmo tempo que exibia as mãos abertas de um lado e depois do outro.

- Está bem. Podes. - respondeu vitoriosa e sorridente.

Ficaram ali os dois, no meio da pequena multidão a caminho do trabalho, mas apenas com olhos um para o outro.

- Chamo-me Matias...

- Eu sou a Belisanda, mas todos me chamam Bia.

Quando o autocarro chegou, despediram-se com um "até amanhã" que selava a efemeridade dos sonhos juvenis, e um aceno em tom de carícia.

No regresso a casa, o assobio harmonioso e as mãos nos bolsos, acentuavam a leveza da alma.

Ao sabor da vontade, Matias ia-se encontrando por caminhos perdidos.

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Terça-feira, 9 de Setembro de 2008

Manhãs Eternas

 

 

 

 

As manhãs de Sábado eram as preferidas pelos amantes. Perfeitas para encontros fortuitos na frente do mundo e nas costas de Deus.

A casa da Santinha estava incrustada na Rua do Comércio, o centro nevrálgico da pequena vila, e as manhãs de Sábado enchiam a calçada de passos e vozes. Correrias de crianças, chamamentos de mães, cumprimentos de ocasião.

Os homens discutiam as últimas notícias do desporto, encostados na ombreira da porta da Tabacaria Moderna e havia magotes de mulheres amontoadas nas mesas da Pastelaria Docemel, a beberricar cafés ao ritmo do último mexerico.

O Dr. Nataniel, o advogado mais proeminente da praça, folheava o Semanário Económico sentado num dos bancos de ferro pintados de verde abeto, que ladeavam a rua  para descanso dos passantes. Olhava as notícias sem as ler...As manhãs de Sábado eram as melhores para apreciar o mulherio, pelo rabo do olho. Fixava-se na dança das saias embaladas pelas ancas, fitava os saltos altos qual altar de corpos que imaginava nus e de braços abertos para si. O Dr. Nataniel gostava de sentir o desejo que lhe corroía o corpo todo, a dor aguda que lhe tomava conta das partes intimas e lhe devolvia esperanças vãs de adolescências infames.

A Santinha, entreabria a janela da frente e deixava entrar o buliço da rua. O peito ardia-lhe na antecipação da chegada dele.

Vestiu o robe de chambre de organza rosa velho por cima da pele leitosa, e bebeu o chá, já quase frio, em goles nervosos. Ele raramente se atrasava. Quase 10 horas da manhã,  os sons vindos da rua emolduravam a ansiedade da sala. Dois toques. Um, depois o outro, na porta das traseiras da casa. Era ele!

Abriu uma nesga da porta. Apenas o suficiente para o intruso passar. Deixou-se ficar ali atrás da porta, como uma gata no cio, a retorcer-se da ausência dele.

A porta fechou-se. Ele olhou-a, sorriu, e ela entregou-se ali mesmo, sem bons dias, sem mais nada que não fosse a pressa de apagar o incêndio que ameaçava a sua integridade física e que ceifava vidas no interior das pernas.

Na rua do Comércio, a manhã decorria na costumeira cadência de vai vem, e os gemidos que escorriam da janela entreaberta, imiscuíam-se com as vozes dos transeuntes, e coloriam aquela manhã de Setembro de prazenteiros tons solarengos.

O sino na torre da igreja, chamava para a missa das 11, e uma debandada de pardais assustados precipitava-se sobre as acácias da praça.

A Santinha rezava mistérios a duas vozes. Cumpria promessas feitas ao ouvido, pelo chão frio e rijo da casa. Dava graças pelo caudal de vida que lhe varria os sentidos.

 Aos poucos, o dia foi escoando sons e passos, deixando no ar apenas a urgência do almoço anunciado em cheiros a comida quente.

O sol de Outono, implacável fazia o casario cair em sombras densas sobre a rua do Comércio, agora abandonada à sua sorte de fim de semana, a solidão.

A sombra silenciou também a casa da Santinha. Lá dentro um manto de suor cobria os dois corpos fartos e quietos.

- Sábado de manhã voltas?

- Sempre minha Santinha.

Na rua ouvia-se agora um passo arrastado, e melancólico. Era o João Francisco, o deficiente que vivia na esquina de baixo com a mãe. Vinha da igreja, onde pedia esmola na saída da missa, e varria com a perna morta os últimos vestígios de gente do meio da rua.

Depois ficou o nada. As casas deitaram-se à sesta, e a Santinha fez juras de manhãs eternas enquanto acenava um adeus saciado.

 

 

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