Faltavam-lhe as palavras. Em tantos anos nunca tal lhe acontecera. Eras de palavras em catadupa, despejadas em páginas e páginas ordeiramente arrumadas nos escaparates. Romances frustrados, desventuras e mágoas, lágrimas e traições, paixões fervorosas e abraços arrebatados, fins trágicos e corações destroçados.
E agora? Agora chegada a hora da verdade, o momento supremo do discurso inflamado, a chuva de meteoros brilhantes, a ovação pungente repetida em encores a uma só voz....Agora...agora....nada!
A Meisterstück monogramada na mão, a folha verde clara, perfumada de colónia Vétiver, em frente...vazia...flores pastel, esbatidas em jeito de moldura escarneciam diluídas em sorrisos verde água.
Costumava sentir-se impelida a escrever pelo desejo secreto de semear penas e escombros nos corações frágeis que devoravam os seus contos. Aquelas pessoas reviam toda uma existência de promessas vãs e sentimentos violentados nas páginas de um daqueles folhetins debitados por ela. Alimentara-se séculos a fio daquela pontada doce de sadismo. A dor provocada nos peitos maltratados pelo desamor. As palavras aventadas sem pudor, frases inteiras de solidão, parágrafos de abandono e despedidas prematuras.
Ah! - pensava ainda agora, vazia - como tinha sido feliz enquanto paria livros como coelhos, uns atrás dos outros! E agora nada. Lembrava-se, já de uma forma desfocada, é certo, de como o coração batia mais apressado a cada nova capa, homens fortes e másculos, tomavam nos braços donzelas indefesas que os olhavam em prece, caladas. Títulos sugestivos " O amor de toda uma vida", " Adeus meu amor!", "Não me esqueças!", " A mulher misteriosa", um rol de banalidades, uma receita certificada e eficaz de gestos teatrais e desfechos melodramáticos...
Rodou a caneta por entre os dedos. Sentiu o peso frio do aço. O peso pluma do vazio de palavras que a tomava de assalto.
Fechou os olhos rendida num suspiro fundo.
A Meisterstück deslizou até ao chão alcatifado a Arraiolos. Em cima dos joelhos, o genérico final, uma folha verde água, perfumada de Vétiver, marginada de flores pastel, nua de palavras.
Para Vou de Colectivo - "Hábitos de leitura" - Outubro/09
"These are a few of your favorite things.."
É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.
Eugénio de Andrade