Terça-feira, 28 de Julho de 2009

(in)quietação

 

 

Deixava-se encantar pela fragilidade das coisas. Prendia-se no mimo do pormenor.

Cantarolava uma canção de roda, envolta em atenções e vapores etéreos.

A colher de pau, deixava rastos em espiral no fundo da panela de cobre, rendida ao aroma forte do xarope de laranja alindado com um canudo de canela.

O ponto pretendido estava no exacto e irrepetível momento, uma calda fina e delicada, pronta para embeber o bolo fofo que arrefecia ali mesmo ao lado, e espalhava no ar um aroma a regresso. "é assim que deve cheirar o céu..." pensou semicerrando os olhos com deleite.

Desligou o bico do fogão, e a chama anilada extinguiu-se deixando uma pontada de vazio a pairar no colo de açúcar pilé.

Tirou um palito da caixinha de papel, e furou o bolo, meticulosamente e sem pressas. Como se daquela tarefa dependesse o caminho nocturno da sua vida. Quando terminou, pegou num pano de cozinha, tomou a panela de cobre bem polida, e verteu o xarope sobre toda a superfície do bolo. Espalhou o líquido brilhante, ainda morno com a ajuda da colher, e deixou-se ficar, ali encostada, os cotovelos a servir de apoio, o néctar a ser absorvido pela esponja doce do bolo.

A boca aguou-se-lhe de desejo...  Cobriu o doce com a rede protectora, correu as cortinas floridas, e com um sorriso satisfeito, saiu fechando a porta da cozinha atrás de si.

A salinha de estar, muda, amadurecia a tarde, envolta numa gaze fosca. Lá fora o dia exalava um semblante carregado..." Santa Bárbara, bendita, hoje não passa sem cair uma trovoada!"  ladainhou enquanto afastava as cortinas de organdi, para espreitar o astro.

Era cedo ainda... Sentou-se no sofá, ajeitou a saia, alisou o tecido, arreliavam-na os vincos.

Pegou no talego de linho ajurado, abriu os cordões de seda entrançados, e tirou lá de dentro o naperão de renda que tardava em terminar...as mãos pequenas e redondas pegaram na agulha de metal fino, afagou o trabalho executado, com o mesmo cuidado que punha em tudo o que fazia. Os dedos curtos e roliços, eram de veludo fino, sem a mais pequena mácula. Demorou-se naquela carícia impassível

Não tinha vontade. Guardou tudo de novo, no talego, com ordem e método. Inquietava-se. Às vezes nem se reconhecia, Tinha repentes que a assustavam. Sentia uma uma tontura que a deixava mole como pasta de açúcar.

Três batidas na porta interromperam a placidez da tarde.

 

... 

 

Caminhava num passo pastoso e arrastado, o ombro sempre a roçar a parede das casas da rua. Não procurava a sombra, apenas o contacto. A tarde estava macilenta como um velho doente, tomado por uma maleita mortal. Sentia o calor crescer-lhe no cocuruto destapado, e o suor a ensopar-lhe a roupa escura e pesada.

Caminhava sem pressas, o caminho sabia-o de cor, e a meta era certa como a morte. Ia sussurrando frases soltas, naquela mesma calma que punha no passo.

O fim da rua era já ali à frente, depois era só atravessar para o outro lado e fazer o caminho inverso, uma vez e outra, e outra... Desde há uns tempos, sempre a meio da tarde, àquela hora, nem mais um minuto, nem menos, fazia uma pausa. Descansava a inquietação e aplacava a imaginação prodigiosa que todos diziam ter.

O Profeta. Era assim que o conheciam nas redondezas, por culpa das suas palestras improvisadas sobre inflamadas previsões apocalipticas.

Nascera a melhor maçã do pomar, crescera forte e feliz, mas  as águas revoltas da adolescência assolaram as suas margens e deixaram à deriva o frágil equilíbrio próprio da idade. "Passou-se de todo! A pouca sorte dele foi a tropa, ai foi, parece que quando tirou as sortes conheceu pessoas estranhas, dizem que lá na recruta se entupia com cigarros daqueles..." diagnosticavam uns e outros, na senda do insondável. "Foram os livros, ah não tenham dúvidas, leu tanto que queimou o cérebro todo" atiravam certezas de barro.

Um relâmpago alumiou a tarde fechada. Acelerou o passo, chegou à frente da porta já curvado sobre si, as mãos a tapar os ouvidos. Com o pânico a comê-lo, desfechou três batidas urgentes, com o trinco de ferro forjado.

 

 

...

 

Vivia há dois anos na companhia opaca da solidão. A avó amanhecera pendurada numa corda grossa na viga de ferro da chaminé. Dois anos... numa manhã de um dia quente como o de hoje. A mesma viga onde noutros tempos os enchidos curavam ao sabor do fumo e do tempo. Não se despedira sequer. Fora no mesmo silêncio com que pontilhava os dias em companhia da neta. Não havia nada para dizer... Os pais deixaram-na aos cuidados da avó num sopro de alívio. Mal sabiam o que fazer com aquele ser estranho que Deus lhes dera " a criança tem um Deficit Cognitivo severo", informou o Dr. Marat, com a solenidade que a ocasião exigia. Tinham ficado ali, pasmados, de boca aberta, na posse daquelas palavras de malabarista " o que o Senhor Doutor quer dizer, é que a rapariga é atrasada, não é?"

Aprendeu a falar quando os outros aprendiam a escrever, e até hoje não sabe mais que meia dúzia de letras do alfabeto, e contar pelos dedos até dez.

Saía pouco da casa, era o seu reduto. Dentro daquelas quatro paredes, não havia risos de escárnio por causa da sua forma atabalhoada de falar. Aqui dentro desta caixa, o mundo é simpático, e só entra quem ela quer, como ele...

 

...

 

Levantou-se de um pulo, correu para a porta e abriu-a para deixar passar uma criatura ofegante. No mesmo instante o som gutural do primeiro trovão fez estremecer as vidas e os vidros das janelas. Ele afundou-se no sofá de napa enroscado como um animal acossado. As mãos a tremer abraçavam a cabeça, os olhos escancarados estampavam um terror genuíno e antigo e o corpo todo naquele mesmo frémito expelia gemidos aflitos.

Enquanto rezava Magnificas e invocava as graças de Stª Bárbara; corria estores, fechava portadas, corria cortinas, até que por fim um manto de negrume cobriu toda a sala, corrompido apenas pelos flashes eléctricos que entravam pelas frestas da porta da rua.

Ajoelhou ao lado do sofá "shh shh já vai passar, não te preocupes " alinhavou de forma confusa.


Ele latia de medo. Ela ardia em segredo.


Por fim o céu abriu-se em fitas grossas de chuva, e ruas e passeios deixaram-se galgar por correntezas fartas. O dia cedeu, e a noite cálida serenou os elementos e reconciliou o estio.

Acariciou-lhe a mão ainda encrespada, e sentiu aliviar-se a pressão. Ergueu-se devagar, ainda em guarda, olhou-a, tirou as mãos da cabeça, e depois sorriu-lhe. Ela acendeu-se " sabes o que fiz? Bolo. Bolo de laranja como tu gostas!" O sorriso abriu mostrando uma fileira de dentes mal tratados. "Então venha de lá o bolinho, venha de lá o bolinho, venha de lá...." e continuava até outra qualquer frase a destronar.

 

A ele não importava que ela mal soubesse falar. A ela não importava a alienação dele.

 

Lá fora a noite enchia-se de frescor e estrelas, dentro da casinha do meio da rua, a rapariga enchia-se de vida e o rapaz de razão.

Em êxtase, ela ouvia-o profetizar as maravilhas do fim do mundo, e o coração crescia ao sabor do bolo de laranja...

 

Imagem by DeviantArt

 

 

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Segunda-feira, 17 de Julho de 2006

a minha filha pré-adolescente

A minha filha adolescente está apaixonada, ou melhor, a minha filha pré-adolescente está apaixonada!

Tenho a cabeça cheia de suspiros, a paciência inundada de profundos ais, e as minhas tentativas de parecer uma mãe moderna estão presas por teias de aranha...

Uff!!! Miguel, Miguel, Miguel!!!

Não estou preparada para isto, não estou e ponto final!!!

Onde estão os tempos de recato, em que as prendadas meninas de 11 anos brincavam tardes inteiras com as suas bonecas, tachinhos e panelas, serviços de chá de porcelana chinesa comprados na Feira de Maio.

A verdade é que essas tardes já tem 30 anos, e tantas rugas como a minha cara pintada de base auto bronzeadora, que disfarça tudo menos....as rugas.

As Barbies estão todas dobradas, dores de costas, pernas partidas, cabelos baços de nós, no fundo de caixas de arrumação, e longe dos olhos castanhos que em tempos as penteavam, nas estantes onde moravam, passam  agora colares de missangas, cintos plásticos de todas as cores, brincos de fazer cair as orelhas mais pequenas, angustias de criança a mudar de pele, vernizes, batons de morango, perfumes de mulher que largou a pele velha debaixo da cama, e posters de sonhos com acne e sorriso de metal.

Ele é tão lindo, Mãe, ai, se tu visses, ai, o cabelo, ai, os olhos, ai é tão querido, ai!!!!

Ai, ai digo eu!

O que é que está a acontecer aqui!!!! Quem sou eu, porque é que eu sou a minha mãe e eu verdadeiramente DESAPARECI dilui-me em tudo o que combati, quando eu própria cresci. Mas será que eu alguma vez tive 11 anos e me apaixonei. Soa-me a histórias distantes impressas em livros velhos com aquele cheiro de biblioteca, que nos enche os pulmões e depois se liberta em devaneios. Se eu alguma vez nesta vida tive 11 anos não andei aí pelos cantos casa a largar suspiros a cada passada, de certeza que não, de certeza que se, na eventualidade de alguma vez ter tido 11 anos, estaria na soleira da porta de Julho à tardinha a cortar meias do meu pai para fazer vestidos às bonecas, e com toda a certeza, que nessa remota hipótese, faria buracos de lama e pó nas tardes curtas de Novembro e nas tardes de Agosto ardente, para jogar ao berlinde até me doerem os joelhos (se lá estive, nesse tempo não me doiam os joelhos, nem as costas, nem a alma).

Ainda assim, pergunto-se vezes demais, se aquela criatura á minha frente é fruto da minha barriga, se aqueles olhos não fossem os meus olhos, ninguém diria, anda na vida como se do Sol se tratasse, tudo o que vem de fora gira em seu redor e depende em primeiríssima instância de um piscar dos seus olhos ou de um daqueles sorrisos mal esboçados e debochados.

O eclipse acontece no entanto, ao menor contratempo, uma borbulha, um kilo, um Miguel, um pacote de bolachas de chocolate feito em migalhas, alguém, quem quer que seja um dia que seja mais velho e tchan! O sol transforma-se em Lua á espera de uma fase melhor.

 

 

 

 

Original Zumbido por meldevespas às 15:39
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