- Há quanto tempo não moras aqui?
-...não me lembro...mas volto sempre depois da chuva...
- Como uma formiga de asa?
- Sim!!! Isso mesmo, como uma formiga de asa, atrás de nesgas de sol.
- Antes eras diferente.
- Quando?
- Sei lá! Antes. Trazias as mãos e a boca carregadas de pólen, e por onde passavas nasciam flores amarelas, daquelas pequeninas que há no campo.
- Malmequeres do campo.
- Talvez.
- Não sei... só guardo o sabor do vento a uivar nas canas da ribeira. Trazia um torpor tão leve, que adormecia a sonhar com libelinhas de cores garridas em dias de sol.
- Ainda falas como quem diz poesia...pelo menos isso não perdeste.
- Nunca me compreendeste... são só palavras, percebes?
- Cortaram-nas.
- Desculpa!?
- As canas. As canas que ladeavam a ribeira. Vi lá os homens. Ceifaram todo o canavial.
- Que pena...o vento vai estranhar tanto!
- Disparate! O vento é um sopro, não é gente! Quem te ouve falar....
- É um sopro, eu sei. Mas se não é gente, porque é que vive comigo na mesma casa, debaixo do mesmo tecto?
- Lá vens tu com as tuas coisas....
- Não sabes a resposta, não é? ... Eu também não sei. Às vezes enxoto-o com o silêncio, mas ele não se rende, volta com mais força ainda, e esconde-se dentro do meu peito.
- Desconcertas-me...
- Não sei porquê? Basta olhar para ti! Vê-se a léguas!
- Ora....o quê? Diz lá...
- O inverno.
- ....
- Sim. Está nos teus olhos. Olhas para mim com tal frieza, que me faz arrepender...
- Mentes! Não há frio, nem chuva, nem neve no meu olhar!, mas...arrepender de quê?
- De voltar depois da chuva...
-...como as formigas... para te encostares ao sol e aquecer as asas.
- Não ... Vinha para me aquecer em ti, e enxotar o vento.
- Não percas tempo. Também eu já não moro aqui. Tu sabes...
- Sim, eu sei. A força nunca foi o teu forte.
- E agora o que queres dizer com isso!!!
- Deixa lá...agora já não vale a pena...
- Sabes que detesto meias palavras! Explica-te!
- Está a arrefecer. Deve ser de ti. Vou-me embora. Adeus.
- Não! Espera! Fica mais um bocadinho...tens razão, tens sempre razão...mas o que queres, sou fraco.
- E eu sou leve. Por isso vivo com o vento. Tenho dias de ser brisa, tenho dias de ser ventania.
- Mas fomos felizes, não fomos?
- Fomos?
- Acho que sim...eu era feliz..
- Vivias a fazer bonecos de neve com algodão doce...por isso eras feliz. Mas sabes? Para fazer bonecos de neve, é preciso neve...
- Isso nem parece teu! Tanta seriedade! Tu que dormias de olhos abertos numa cama de flores amarelas, que cresciam só para ti! Tu que derramavas pólen, por onde passavas...
- Se dormia de olhos abertos, era só para não te perder de vista...e não eram flores, eram os teus olhos, e não era pólen, era amor...
- Não sei que te diga.
- Não digas nada...vou agora.
- Voltas?
- Não sei...
- Talvez depois da chuva?
-...como a formiga de asa.
Fotografia de João Palmela
Texto originalmente postado neste blog em 20 de Outubro de 2007
Gabriel queria voar.
Era mais que um sonho. Era uma vontade que o perseguia e lhe norteava os dias.
Não sabia bem como, nem quando tinha começado aquela fixação , a que os outros chamavam mania. Para ele era quase uma marca genética . Ele era um pássaro sem asas.
Quando era criança pequena, ainda lá na terra, a mãe costumava vesti-lo de anjinho, por altura da procissão da Sra. da Boanova . Era logo depois da Páscoa, quando as estações do ano se debatem, e os céus incham de água e electricidade. Sorria sempre que recordava aquelas caminhadas, tantas vezes debaixo do ribombar dos trovões, e por cima de um chão de terra lamacenta, que ensopava as bainhas das imaculadas túnicas brancas da legião de pequenos anjinhos.
A mãe, vestia-lhe aquela opa branca pela cabeça. Leve e a cheirar a bolas de naftalina, dava-lhe uma dobra nas mangas compridas, para estas não chegarem à chama da vela, e com aquelas mãos sábias, atava-lhe à cinta um cordão grosso de cetim cor de pérola, e tufava bem o tecido, de molde a evitar tropeções e quedas.
Por fim, lá vinha a melhor parte, a mais aguardada por ele. A mãe colocava-lhe às costas, presas por grossas tiras de tecido de sarja forradas a tafetá brilhante, umas asas....
umas asas de finas penas brancas como a neve nos postais de Natal, que a Tia Ludovina mandava da Suíça !
As asas de penas brancas, eram pesadas e pouco confortáveis, mas para Gabriel, eram o ponto forte de todo aquele aparato. Ele tinha umas asas! Não atingia, como podiam os pássaros voar com umas asas assim, tão pesadas! Mas um dia ele também seria capaz!
Quando o S. Pedro se zangava, dizia a mãe, vinham a chuva e a trovoada, estragar a festa. A procissão desenrolava-se em passo apressado, os fieis corriam atrás dos andores, e as imagens dos santos chegavam ao santuário, cambaleantes , desalinhadas, e encharcadas.
As crianças logo atrás do andor da Santa e do Pároco da Freguesia, inundavam as alas da pequena igreja, afogueadas pela correria, e pela adrenalina da salva de foguetes que media forças com os trovões do S. Pedro.
Gabriel era o oposto da figura de um anjo. Cabelos negros, escorridos para a cara pela força água, a tez morena, habituada à liberdade dos campos abertos, a opa branca enlameada até à altura dos joelhos, e as asas....as asas pingando em fio, deixando poças de água no chão de xisto cinzento escuro da igrejinha.
Ainda assim, ele sentia-se grande, as costas doridas do peso, as fontes a latejar de dor, a garganta cheia de espinhos, os pés a chapinhar dentro das botas de lama...e ele sentia-se grande!
Nunca como naqueles tempos felizes e distantes ele estivera tão perto do seu querer. Nunca estivera tão certo de poder voar, como quando a mãe lhe colocava, com um sorriso seguro, e as mãos macias, as asas de penas brancas.
Agora, hoje, sentia a realidade apertar-lhe a garganta, ao ponto de ser doloroso até o acto de respirar.
Sabia-se de mãos atadas atrás das costas. Aquele apartamento para onde voltava todas as tardes depois do trabalho na repartição, estava a ficar cada vez mais tacanho, e mal podia mexer-se ali.
Há anos que se mudara para a cidade. Só com o pai. Fora pouco tempo depois da mãe ter morrido às mãos de uma doença má.
Para Gabriel a cidade era um nó que se cingia mais e mais a cada passo dado. Muito diferente da largueza do campo, da liberdade das corridas nas ruas da sua aldeia.
Mas tudo isso ficara longe. Lá atrás, há muitos anos.
O pai era homem de poucas palavras. Fora sempre assim. Era um homem fechado, não o conhecia de todo.
Gabriel só queria voar dali para fora.
Por muito que a cidade o limitasse, não tinha conseguido tirar-lhe a capacidade congénita de querer voar. Passava horas à janela. Aquela janela de sacada era a parte mais entusiasmante de toda a sua existência presente. Passava lá horas, sentado, ou de pé, a observar os pássaros. sabia de cor os fluxos migratórios, as espécies, as cores, as características de voo...tudo!
Agora, hoje, ali naquele 4º andar, à janela, na janela, tinha o mundo a seus pés, e sabia exactamente o que fazer. Tinha toda a sabedoria de anos e anos de estudo atento. Tinha a conjugação perfeita de saber e querer. A direcção do vento era a que esperava.
- Abre a porta! Agora! - a ordem soava num tom aflito, e a porta quase cedia aos murros e safanões. As paredes finas estremeciam, e a voz era agora rouca e de súplica - Por favor Gabriel, abre a merda da porta!
A porta cedeu no momento exacto em que Gabriel abriu os braços.
- Nããooooo !!!!!!! - o pai correu desvairado para a janela aberta na noite, agarrou-se às barras de ferro, onde um segundo antes Gabriel tinha apoiado os pés, e debruçou-se à procura do filho.
Lá em baixo a vida corria como sempre. Pessoas iam e vinham. As vésperas de Natal eram denunciadas aqui e ali pela quantidade de sacos, e pelos risos de excitação das crianças pequenas. A noite descia calmamente, e o burburinho de formigueiro do dia a dia, começava a sossegar aos poucos. Lá em baixo na rua o buliço evaporava-se.
O pai, de olhos esbugalhados de tanto procurar em vão, lentamente, endireitou-se, e sempre com as mãos nas barras de ferro frias, olhou o céu.
Nas antenas de televisão dos prédios em frente, alguns pássaros de passagem por estas paragens frias, preparavam-se para passar a noite.
Acordei cedo.
Ainda antes de o dia acordar.
Não havia sombra de sol ou claridade lá fora. Só um rasto de noite e uns laivos roxos na linha do olhar.
Sentei-me na cama à espera de ver o dia voltar a si. Mas estava demorado. As gostas de água nos vidros denunciavam um amanhecer difícil .
Bocejei. Acendi a luz do candeeiro, vi as horas e deixei-me ficar ali sentada na ponta da cama, os pés no soalho frio, os olhos na madrugada baça, e a cabeça no sono, ainda no sono.
Ouvi um ruído . Era sinal, que aos poucos todo o meu corpo ia despertando da letargia da noite.
Era o vento nas laranjeiras do quintal. As laranjas já estão maduras, se insistir, vai acabar por derrubá-las, e depois vão saber a chão, e já ninguém as vai querer comer....
Esfreguei os olhos com força.
Lá fora a noite não se resignava, e trocava humores com um sol sem vontade para disputas.
Enfiei uns chinelos de lã e aventurei-me até à ombreira da janela de sacada... Olhei o exterior em tom de desafio, e o vento lembrou-me as laranjas a cair da árvore e a rebentar em estrondos de sumo no chão de lajes do quintal.
Chovia menos agora, e a madrugada, envergonhada cedia finalmente às suplicas de cama que o sol lhe lançava.
Apanhei o cabelo sem pressas. Na cozinha, os motores cansados dos electrodomésticos debatiam-se na monotonia dos sons. A chuva parecia ter parado de vez, e era agora só um pingar das beiras dos telhados.
O café acabado de fazer encheu o ar de uma fragrância de especiarias quentes. Inspirei aquele odor até mais não poder e bebi com demora o liquido que me embaciava o olhar e me aclarava o dia.
Lá fora, como num jogo de crianças, estava tudo montado para mais um acto. Tudo no mais perfeito balanço, um jogo de compatibilidades e cedências que desde o berço do mundo regia os vazios dos homens.
Liguei a televisão. as notícias eram como sempre deprimentes, ou não seriam notícias, mas sim eventos. Desliguei, e deixei-me ficar ali, enterrada no sofá, longe da perfeição do mecanismo de bons dias e amanheceres risonhos que vinham pela janela da salinha.
Nunca tinha sentido vontade de fazer parte da engrenagem. Via-me, como sempre me via, uma peça solta que sobrara na hora da montagem.
Apetecia-me voltar para a cama.
Olhei outra vez de soslaio. Vi duas vizinhas a falar na esquina da frente, sorriam em gestos largos, e havia crianças a comer bolos agarradas às suas pernas.
Respirei fundo e fechei os olhos. Só por uns breves segundos pude pensar em sair, levantar-me dali, romper o casulo e atrever-me a bater as asas, a não ter medo de mostrar as cores de mim.
Foi só um instante, um abrir e fechar de olhos, uma amarra cortada.
Ao fim do cais, apenas um grito breve e...voltar atrás, pousar ao de leve, como se nunca tivesse sequer voado.
Levantei-me do sofá. Deixei os chinelos de lã esquecidos no chão, e pé ante pé, tomando consciência do frio que me subia pela planta do corpo, voltei à cama.
Desliguei a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira, deitei-me no mesmo compasso com que pautava as minhas horas, e, cansada de voar, adormeci sentada no cais.
Fotografia de João Palmela
- Há quanto tempo não moras aqui?
-...não me lembro...mas volto sempre depois da chuva...
- Como uma formiga de asa?
- Sim!!! Isso mesmo, como uma formiga de asa, atrás de nesgas de sol.
- Antes eras diferente.
- Quando?
- Sei lá! Antes. Trazias as mãos e a boca carregadas de pólen , e por onde passavas nasciam flores amarelas, daquelas pequeninas que há no campo.
- Malmequeres do campo.
- Talvez.
- Não sei... só guardo o sabor do vento a uivar nas canas da ribeira. Trazia um torpor tão leve, que adormecia a sonhar com libelinhas de cores garridas em dias de sol.
- Ainda falas como quem diz poesia...pelo menos isso não perdeste.
- Nunca me compreendeste... são só palavras, percebes?
- Cortaram-nas.
- Desculpa!?
- As canas. As canas que ladeavam a ribeira. Vi lá os homens. Ceifaram todo o canavial.
- Que pena...o vento vai estranhar tanto!
- Disparate! O vento é um sopro, não é gente! quem te ouve falar....
- É um sopro, eu sei. Mas se não é gente, porque é que vive comigo na mesma casa, debaixo do mesmo tecto?
- Lá vens tu com as tuas coisas....
- Não sabes a resposta, não é? ... eu também não sei. às vezes enxoto-o com o silêncio, mas ele não se rende, volta com mais força ainda, e esconde-se dentro do meu peito.
- Desconcertas-me...
- Não sei porquê? Basta olhar para ti! Vê-se a léguas!
- Ora....o quê? Diz lá...
- O inverno.
- ....
- Sim. Está nos teus olhos. Olhas para mim com tal frieza, que me faz arrepender...
- Mentes! Não há frio, nem chuva, nem neve no meu olhar! , mas...arrepender de quê?
- De voltar depois da chuva...
-...como as formigas... para te encostares ao sol e aquecer as asas.
- Não ... vinha para me aquecer em ti, e enxotar o vento.
- Não percas tempo. Também eu já não moro aqui. Tu sabes...
- Sim, eu sei. A força nunca foi o teu forte.
- E agora o que queres dizer com isso!!!
- Deixa lá...agora já não vale a pena...
- Sabes que detesto meias palavras! Explica-te!
- Está a arrefecer. Deve ser de ti. Vou-me embora. Adeus.
- Não! Espera! Fica mais um bocadinho...tens razão, tens sempre razão...mas o que queres, sou fraco.
- E eu sou leve. Por isso vivo com o vento. Tenho dias de ser brisa, tenho dias de ser ventania.
- Mas fomos felizes, não fomos?
- Fomos?
- Acho que sim...eu era feliz..
- Vivias a fazer bonecos de neve com algodão doce...por isso eras feliz. Mas sabes? Para fazer bonecos de neve, é preciso neve...
- Isso nem parece teu! Tanta seriedade! Tu que dormias de olhos abertos numa cama de flores amarelas, que cresciam só para ti! Tu que derramavas pólen, por onde passavas...
- Se dormia de olhos abertos, era só para não te perder de vista...e não eram flores, eram os teus olhos, e não era pólen, era amor...
- Não sei que te diga.
- Não digas nada...vou agora.
- Voltas?
- Não sei...
- Talvez depois da chuva?
-...como a formiga de asa.
Fotografia de João Palmela