Andava um cão lá fora a ladrar na noite, que eu bem ouvi!
Não, não era ladrar. Era uivar, o cão uivava e corria ao mesmo tempo. Era um canzarrão preto de pelo espesso e espetado, negro. Mesmo da cor da noite que fazia lá fora.
As velhas que antigamente tricotavam vidas nas soleiras das portas, curvadas sobre as mágoas dos outros, diziam que era de mau agoiro, um cão a uivar...
Era quase um grito, o uivo do cão.
Estava a chover uma água miudinha, consistente e muito fria. Uma daquelas águas que molha primeiro o corpo e depois não perdoa o espírito , e acaba por ensopar todas as criaturas à sua mercê.
E estava muito escuro. Escuro e frio. Tão escuro que nem sei se era um cão que uivava lá fora, tão frio que o grito se partiu em cacos afiados. O grito! Não era um grito!!! Era um uivo, um cão a uivar lá fora..na noite!
A chuva enchia os ouvidos de palavras ditas em surdina, e eu deixei-me ali ficar com o nariz colado ao vidro de gelo, a deslindar segredos.
A chuva fez-me lembrar uma boneca de cartão que tive, um dia, uma vez. Era tão bonita!!!
Caiu no chão, arranhou o queixo redondo e sujou as mãos quando tentou equilibrar-se....
Ficou com as mãos todas sujas...peguei nela, engoli em seco, e num gesto rápido enfiei-a no tanque raso de água...
Hummm ... ainda me lembro do tanque. Tinha sempre um cheiro a sabão amarelo, que ficava entranhado em tudo...cheirava a mãe...mãos de mãe...
A boneca! Oh meu Deus tinha-me esquecido da boneca!! Era uma boneca tão linda, com os lábios de tinta guache e olhos de vidro!!
A água, lavou a minha boneca, lavou-a e levou-a...no tanque jazia agora, uma pasta cinzenta, baça, e os olhos azuis. Dois olhos azuis a boiar um pra cada lado.
Fiquei ali, a ver na noite a chuva. A chuva e o cão negro a uivar.
O cão toda a noite uivou. E correu.
Baixei a cabeça, fechei os olhos e tapei os ouvidos com força...se ao menos a chuva parasse de falar baixinho.