Vinham de mãos dadas.
Subiam pelo caminho ladeado de água.
Tinham os dedos enlaçados e as mãos suadas.
Traziam sorrisos francos, abertos nos lábios.
Caminhavam lado a lado, os joelhos trémulos do amor acabado de fazer às claras, debaixo da figueira, só os frutos leitosos, ainda verdes, como testemunha.
Guardavam na pele o suor do outro, como uma relíquia, e deixavam atrás o chão marcado de pegadas molhadas.
Sorriam, motivados pelo vazio imenso ao seu redor, e pelos caudais de saliva derramados sem pressas.
Transportavam nos olhos apenas a leveza do dia de hoje, e partiam sem mais rumo que não a presença do outro, pelo caminho adiante.
Passaram por mim.
Fiz de conta que não os vi.
Era a última hora de sol daquela tarde de Abril.
...e ainda caminhava, numa matriz copiada até à exaustão. Um pé depois do outro, sempre no ritmo marcado pelo calor do macadame.
O passo era certo e firme...o destino...era a vontade de chegar.
Onde?
...
Caminhava ainda, o sol desistia devagarinho, o homem não. Ainda não. Mais um pouco de estrada, não faltava muito para chegar.
Onde?
...
Sabia-o. Sempre o soubera. Caminhava porque sim.
Era peregrino do caminho por fazer.
I
Os campos estão cheios de cor
A Primavera chegou feliz
Cheira a mel e alecrim
O céu está de azul e giz
II
O coelhinho que é pintor
Na toca, no meio das flores
Pinta a tinta de arco-íris
Os ovos de mil sabores!
III
A cantar pelo caminho
Vem a menina a saltar
Tem um colar de margaridas
Deixa o perfume no ar!
IV
- Pim Pam Pum! - chama a avó,
- Já são horas de almoçar!
- Deixa as abelhas zumbir
- Vem comer o teu folar!
Ilustrado by Pim Pam Pum
Quando finalmente o sol despejou um jorro de claridade na escuridão da noite, já a rapariga percorria há muito, os caminhos. Calcorreava veredas, investia matagais, cumpria pedaços de chão, como quem morde côdeas de pão duro. Como quem morde a vida por vingança.
- Estava ao alcance da mão...mesmo, mesmo aqui... e agora tenho que acelerar o passo..não posso fraquejar!. Não agora!
Pedras pequenas e finas como dentes de leite, vermelhavam à sua passagem, e o que estava morto e seco, levantava-se de jubilo pelas suas feridas.
- Parava só um bocadinho...se pudesse.....mas não posso...se parar agora..é o fim..e eu não quero que o fim seja isto, assim, no meio do nada, só embalada pelo resfolegar das cobras nestas pedras tristes....
O fim de um caminho, era sempre o começo de outro, e, depois de uma vereda estreita, vinha sempre outra ainda mais estreita, e os espinhos do mato, feriam cada vez mais fundo, as suas pernas, e os dentes de leite no chão, erguiam-se a cada sopro de vento, mais alto, e eram já presas de um qualquer carnívoro no recobro de um parto...e o caminho só cumpria o dia a seguir à noite, e a noite a seguir ao dia, numa sucessão desoladora de sol e de lua.
- Ardem-me já os olhos, e o peito...arde-me tanto o peito...é o desejo que arde que eu sei que é...mas já falta pouco...
Mil noites e mil dias depois, os caminhos acalmaram, as veredas amansaram, o mato descansou, e a rapariga podia até respirar fundo e deixar cair o cansaço de promessas cumpridas....mas o peito ardia ainda e cada vez mais fundo.
É um fogo posto pelo andar desvairado de mil dias e mil noites.
- Podes parar de queimar? Só um bocadinho, pra eu respirar fundo. Agora que cheguei à vida, queres matar-me na fogueira? Fogo cego! Na fogueira já tu me mataste antes, nesses caminhos sem fim!
O rapaz estava lá sentado.
Sentado, como quem espera a paz no mundo.
O rapaz era todo de água, e sorria com um sorriso antigo tingido de azul.
A rapariga correu para ele e o rapaz abriu os braços, os dois aplacaram fogos, e juntos desaguaram no mar.