Sexta-feira, 1 de Outubro de 2010

O Cheiro da Chuva

                                                                                                                             

                                                                                                                

A noite apanhou-a trancada num medo antigo.

O vento falava com as madeiras cansadas das janelas da casa, e as respostas  eram lamentos sentidos.

O Outono andava a rondar-lhe a cama, e os clarões dos relâmpagos que fotografavam as sombras dentro do quarto, eram mais que um presságio.

Trovões inundaram-lhe os ouvidos e encheram-lhe as mãos de um suor inquieto.

Havia muito tempo que não se sentia tão sozinha. As noites assim, de fim de Verão, tinham tido nela sempre esse mesmo efeito, o sentimento de ausência...dos outros e dela mesma.

Permitia-se sempre ter medo nessas noites. Podia meter-se debaixo dos lençóis, rezar fervorosamente, fechar portas e janelas, trancar-se por fora, e ver-se assim, como todos os seres vivos à face da terra, com aquela  ânsia que lhe acelerava o sangue, e,  que por aqueles dias, era a única sensação que lhe dizia que ainda estava viva.

Vivia numa solidão de cinema mudo, tudo o que via, eram lembranças que desfilavam para ela, sempre que as evocava. Desfilavam acenos e sorrisos de despedida, sem palavras, só acenos e sorrisos.

Habituara-se a viver assim. Não poderia viver com outro alguém que não fosse o vazio das paredes da sua casa, e os figurantes que acenavam nas suas memórias.

Lembrava-se sempre da sua 1ª Comunhão...não sabia bem porquê, mas essa sequência passava vezes sem conta à sua frente. Via uma e outra vez, aquela menina pequena e séria demais para os 9 anos, o cabelo preso num rabo-de-cavalo sisudo; a fatiota branca até aos pés atada na cintura por um cordão de seda amarelada pelos dias; e as mãos postas em oração, com um rosário de prata pendurado...

Um enorme altar de crianças risonhas, acenava-lhe um até breve, mas aquela menina, nunca!

Ficava ali, quieta, a olhá-la, e olhava-a com a mesma impavidez e desinteresse de sempre.

Ás vezes reconhecia-se naquela criatura ridícula e infeliz, e chorava com pena dela.

Outras vezes, via-se ainda mais pequena, sentada ao colo da avó, apertada num ramo de cheiros de hortelã e erva Luísa, que vinha do cabelo cinzento entrançado num poupo.

A avó era sempre uma memória que a deixava feliz. Acenava-lhe e sorria-lhe, segurando nos braços aquela criança amedrontada.  Nessas alturas, quase podia ainda sentir as mãos dela nos seus cabelos, e ouvir as suas palavras sábias, dizendo-lhe que "não era bom, falar no cheiro da terra depois de uma trovoada".

Porquê? Nunca tinha tido a resposta, mas apesar disso, e apesar de os pulmões se encheram daquele cheiro estonteante a terra molhada depois de uma trovoada, e apesar de o seu peito quase explodir de êxtase, ela nunca o disse, nunca falou desse cheiro. Com medo de quê, não sabia, nunca soube.

Os relâmpagos apagaram-se por fim,  e a noite pode cair abraçada àquela chuva, até de manhã.

O vento agora só já sussurrava, e as janelas rendiam-se.

 

Havia já muito tempo que não se sentia tão sozinha.

 

Originalmente postado neste blog em 12/09/2007             

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Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 2010

Um presságio de chuva

Os Domingos eram sempre mais calados que os outros dias da semana. Maria Eva sentia-se incapaz de se levantar do sofá. Prostrada, num torpor letárgico que lhe esvaziava os sentidos. Deitou a mão ao maço de cigarros que jazia expectante na mesinha de serviço, ali ao lado. Tirou um, acendeu-o e deixou-se ficar ali a expelir argolas de fumo, e a desfazê-las com o dedo indicador.

É melhor levantar-me, tomar um banho quentinho e ir à minha vida. Pensou.

A sala, estava ainda na penumbra da manhã cinzenta, e a televisão ligada, passava um filme qualquer a preto e branco, num desses canais de cabo sem legendas. A heroína estava a fugir da casa, despedia-se com um último olhar, e fechava a porta atrás de si. Era o que parecia, mas também podia estar apenas a sair para ir visitar uma amiga. De qualquer maneira, não estava a prestar atenção ao filme. Desde que tinha ficado sozinha por morte dos pais, habituara-se a ligar a televisão mal acordava, e nem sequer a desligava quando saia para o trabalho. Assim, no regresso, tinha sempre a sensação de ter alguém à sua espera. A verdade é que nunca ninguém esperara por si. Os pais apenas suportavam a sua presença. Uma filha solteira, e ainda por cima falada, não era o mais desejável naquela aldeola de interior. Nem dada te querem! - dizia o velho Matias, já na cama feita pelos últimos dias de um coração fraco como o carácter que Deus lhe dera e a mesquinhice cimentara.

Cala-te homem! Não digas heresias! Se alguém te ouve falar assim, da tua própria e única filha! Matias calava-se, cerrava os dentes e em silêncio, alimentava com vontade uma raiva surda.

Maria Eva aprendeu a viver com os humores do pai. Desde cedo. Desde aquele dia, perdido nas lembranças de um fim de Verão distante.

Tantas vezes já se não lembrava quantos anos tinha. Tinha-se ficado na contagem pelos quinze anos, e depois deixara as contas esquecidas nos calendários da oficina do Zacarias pendurados a cada Janeiro na parede da cozinha, mesmo ao lado do frigorifico. Se fechasse os olhos por um bocadinho só, podia sentir o suor das noites quentes. Era melhor estar de olhos abertos, pensou ao mesmo tempo que enxotava o passado da sala como uma mosca peganhenta.

A avó Manuela, tomou-a no seu colo, aconchegou-a como um animal que cuida da cria depois de uma tempestade. Afagou-lhe os cabelos, secou-lhe todas as lágrimas, calou-lhe as mágoas e humilhações da rejeição, tapou-a com as suas mãos enormes de mãe duas vezes. Não poucas vezes, a avó repetia-lhe baixinho, quase num sussurro, não te esqueças que carregas a força do teu nome, Maria de mãe do Céu, e Eva a primogénita do mundo dos homens. Acreditou.

O calor do dia, acalmava a sede nas noites calmas. As mãos dadas às escondidas debaixo das cameleiras do Jardim Municipal. Acreditou.

Que o amor era eterno, que o amor vencia tudo, que o amor era inocente. Não tinha duvidas.

Em Agosto, as flores exalam cheiros fortes, e abrem de noite a pensar que é dia, e fazem-se bonitas, e acham-se bonitas.

Maria Eva fez-se flor, e o Verão adoçou-lhe os aromas.

Não devia ter acreditado. Era Verão e as palavras não pesam nada e os sentimentos são leves e fátuos.

A flor é arrancada da terra, sem pudores, e tudo o que poderia ter sido esvai-se com as primeiras águas de Setembro. E as raízes apodrecem na terra num estertor de vergonha.

Matias nunca foi capaz de perdoar à filha o escárnio dos homens nos cafés da avenida. Foi impotente para calar as bocas lascivas que machos como ele debitavam em gestos e sons.

Trinta anos. Se não os tinha, haviam de estar perto. Trinta Invernos.

A mãe Luzia, era uma formiguinha atarefada, cozinhava e limpava e lavava e aspirava, noite e dia e dia e noite, sem metas, sem propósitos, sem força nem querer. Fechava os olhos e cantava uma moda em surdina. Espantava o mau tempo, e nela era sempre Primavera. Maria Eva invejava-a. Na vida, jamais tinha invejado nada. Não depois do Verão mais quente que havia memória. Mas a placidez aparvalhada da mãe, isso sim, invejava.

Apagou o cigarro no cinzeiro de vidro fosco e levantou-se devagar.

Voltou ao quarto, acendeu a luz do candeeiro do toucador, e sentou-se na cadeira em frente. Aquilo era o que restava dela. Um tocador pintado de cor-de-rosa, a fotografia desbotada de um cantor colada com fita adesiva amarelada, no canto superior direito do espelho. Uma caixinha de musica, com uma bailarina em pontas que rodava ao som do Lago dos Cisnes.

Era melhor ir tomar um bom banho. Ontem à noite no caminho de casa, quase pisara um sapo. Havia um sapo no passeio. Um animal nojento, inflado, ponteado de manchas escuras. Desviou o passo mesmo a tempo. A avó Manuela dizia sempre que os sapos eram presságio de chuva.

Não se enganava. A manhã soletrava pés de vento, e Maria Eva sentia-se menos só por causa disso. Era mesmo melhor ir tomar um bom banho.

Passo a passo, memorizava o solfejo gotejado dos beirais, e adivinhava nele uma canção fora de moda.

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Segunda-feira, 28 de Dezembro de 2009

Aprendiz de pássaro

 

Caminhava num passo lento por cima da muralha. Um passo lento e descuidado.

O vento assobiava pelos torreões em ruínas Era um vento insistente, teimoso. Não era um daqueles espojinhos de Verão, quietos, cheios de pó e restos de papéis e paus de gelados. Era um vento de fio afiado em pedra de amolar e chuva antiga.

Chovia há mais de três dias, sem parar. Lourenço repetia o caminho, uma e outra vez, para a frente, para trás....a decorar as pedras velhas, cansadas de chuva, cansadas de vento, cansadas do caminhar fastidioso do rapaz. A cada saraivada de chuva arrojada pelo vento,  cerrava os olhos e os dentes e oferecia-se de braços abertos aos ímpetos do dia que amanhecia em espasmos.

Os cabelos ruivos caiam-lhe sobre a fronte, escorriam como rios em dias de enchentes, pelo colarinho da camisa e desapreciam peito adentro.
A cada trégua do vento, abria um pouco os olhos. A manhã estava  coberta por uma névoa de água, que tornava as árvores sombras, e os rios e os homens e os bichos, tudo era agora uma amálgama de ténues linhas de bruma. Antes de subir, tinha visto de perto o desgosto das terras. Choravam em rios de sangue pela estrada fora. Transbordavam caudais de lágrimas de ocre que deixavam livres pelas bermas. Sem acanhamentos, ou medo de desonra.

Invejava os campos, o seu despudor. Ele estava ali em cima, prestes a acabar com tudo, e ainda assim não conseguia verter uma lágrima que fosse. Sentia na boca o sabor doce da chuva, nada mais.

Outra vez abriu os braços, cerrou os olhos e ensaiou o voo. Um cascalho pequeno, escapou-se da muralha, mesmo por debaixo do seu pé direito. Por um momento perdeu o equilíbrio, sentiu um formigueiro nas pontas dos dedos, um calor brusco na face molhada, e o coração acelerado na garganta. Caiu para trás e ficou ali, a ver o calhau rolar pela encosta, até se perder na película de bruma. Era quase poético chamar encosta àquela escarpa de xisto escorregadio e bruto.

Do que estava à espera afinal? Que ela viesse, desfeita em culpas e carregada de súplicas? Ela não viria. Disso estava bem certo. Se queria voar, teria que o fazer sozinho.

Um voo solitário.

Acariciou o granito, lavado de lamas e ervas e bichos-de-conta.  Alisou a pedra fria. Outra vez aquele formigueiro. Era medo. Tinha a certeza que era medo. As fontes tinham começado a latejar, sentia-se zonzo. A chuva sedava-o. De alguma forma esbatia nele as convicções, as vontades, os rancores.

Ela não viria. Sempre o soubera.

A roupa ensopada pesou-lhe pela primeira vez. Tinha perdido o tino ao tempo que estava ali em cima. Ouvia com clareza os próprios ossos ranger demolhados na humidade lá de fora.

Esquecido da coragem que o içara até ao cimo do castelo decadente, agarrado às pedras ásperas com os dedos em garra, arrastou-se na descida.

Firmou os pés na terra ensopada, e em cambaleios correu na direcção de casa.

Por hoje, pelo menos por hoje,  deixava o voo para os pássaros.

 

 

 Pic aqui

 

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Quinta-feira, 26 de Novembro de 2009

Estilhaços

 

Eusébio subia a rua sem pressas de chegar. O empedrado da calçada estava molhado, resignado a um dia inteiro de uma chuvinha delicada. Subia a rua de mãos nos bolsos, olhos no chão enquanto ia pontapeando uma pedra que fugia à sua frente.

As calças de cotim remendadas nos joelhos com uma rodela de napa alaranjada, estavam encharcadas até quase aos joelhos, e os sapatos de atacadores pareciam montes de terra andantes. O campo pelado onde se juntavam para jogar à bola depois da escola, estava cheio de atoleiros e lamaçais. Chovera a semana toda, sem tréguas. Subia a rua de olhos no chão, pontapeando o cascalho. Pensava na melhor maneira de abordar o sucedido. "Mãe, desculpa, aconteceu um acidente...", "Mãe...foi sem querer, juro pela minha saúde!". A mãe estava farta de juras, acidentes e sem quereres. O melhor era um directo "mãe, parti o vidro da janela da Irmã Margarida". Já sabia que a seguir era o habitual chorrilho de bofetadas, depois seria arrojado até ao quarto pelas orelhas e por fim a mãe exausta diria mal à vida dela como sempre num pranto rezado vezes e vezes sem conta. Custava-lhe vê-la assim, mas sentia-se preso a uma linha que não se via, apesar de ter a certeza que ali estava. Uma linha que lha atava os pés, as mãos e todo o seu ser a uma espécie de fado, ou sina ou o que quer que lhe chamassem, e que o puxava sempre para o abismo, para aquela parte do mundo em que a luz está sempre apagada e só há tropeções, cacos e feridas abertas.

A Irmã Margarida, de todas as formas, amanhã, logo cedo, havia de estar a bater-lhes à porta a cobrar o vidro e a alma fugaz do gaiato. "Eu bem a aviso D. Deolinda, o rapaz sem Deus não resiste! Nem que seja levado pelos cabelos, mas tem que ir à catequese!".

Pronto, "estava o baile armado", pensava num pontapé forte que fez o cascalho bater no contentor do lixo, com estrondo. A hora de catequese com a Irmã Margarida era uma tortura. O bê à bá do pecado era o "pão pingado", ao ponto de se poder dizer sem sombra de dúvida que mesmo o respirar era um pecado mortal, portanto merecedor da  maior das penitências. Mal sabia ela que o cumulo da penitência era ficar ali uma hora, contada minuto a minuto pelo relógio de parede, a ouvir o tom pernicioso da sua voz.

O melhor era mesmo desembuchar! Acelerou o passo, deixando para trás a pedra aliviada.

- Mãe! Cheguei... - entrou na cozinha. A mesa estava já posta, os três pratos nos lugares marcados. O pai à cabeceira, no comando, a mãe à direita dele, (na verdade a mãe, mais parecia uma formiga, quase não se sentava, atendendo às palavras de ordem do homem da casa: "Um copo de água!", "é só este o pão que há cá em casa!?", "Dá cá o vinho!"), à esquerda ele. O lugar vago, na outra ponta da mesa rectangular, era ocupado de tempos a tempos por uma dor estreita nos olhos da mãe.

- Andei a jogar à bola, no campo da Igreja...com o Basílio e o Cajó...ehp....mmm...parti um vidro da janela da casa da Irmã Margarida, ela diz que vem cá dizer-te, são vinte e cinco tostões. - estancou, sem fôlego, os olhos na nuca da mãe, que continuava de costas para ele, de frente para o fogão a vigiar as batatas que fritavam na frigideira cheia de azeite borbulhante.

- O teu pai, está a chegar, é melhor estares bem caladinho. resolvemos isso amanhã. Hoje joga o Benfica. - a voz da mãe, tremia, num tom esbatido. Era a voz do medo, Eusébio, conhecia-a bem. O desfecho da noite dependia do silêncio dela e do resultado do jogo de futebol, que ia começar na televisão daqui a pouco.

O Cabo Zacarias Resende era benfiquista ferrenho. Cada partida era uma luta renhida, uma disputa taco a taco, no terreno de jogo e na vida dele. Militar desde o berço, Zacarias, desde muito cedo aprendeu na pele o frio do aço, e na vontade a força férrea da obediência. Deixado à mercê da inveja e outros tombos, a violência ganhou raízes no seu peito, criou corpo nas suas mãos, e desabrochou nos seus olhos a cada caminho mais apertado. E para Zacarias todos os caminhos eram apertados. Uma mulher incompetente e amorfa, filhos desmiolados e sem perspectivas de espécie alguma.

O mais velho herdara o nome do avô paterno, nem sequer fora uma opção. Cosme Resende. O mais novo, já com o avô morto e enterrado,  recebera a bênção de Eusébio, o virtuoso jogador que encantava Zacarias e o deixava embasbacado.

A porta da rua bateu seca. Na cozinha, mãe e filho de imediato adoptaram uma posição de sentido. Eusébio podia jurar que ouvira a mãe engolir em seco. Teve pena dela. Tinha sempre. O jogo era difícil, as competições europeias, um clube de topo. Era bom que a sopa estivesse ao gosto do Cabo, caso contrário alguém iria pagar a factura.

Sabia bem como a mãe escondia por baixo da roupa as nódoas negras dos dedos de ferro do pai, os vergões nas pernas desenhados a rajadas de cassetete. Conhecia o olhar caído, o cabelo nos olhos a guardar segredo de carícias pesadas que brotavam no alvo da pele em pontos roxos. Sabia de cor todos os artifícios usados para proteger a reputação do seu homem. Sabia porque também ele estava farto de os usar.

Zacarias era um homem robusto, largo de ombros e de baixa estatura. Do Ultramar trouxera uma perna aleijada, que arrojava pela calçada e anunciava a sua chegada a casa ao fim da tarde. Era o sinal.

Eusébio fugiu para o quintal, tinha que limpar os sapatos antes de tudo, sacudir as calças, ajeitar a camisa, alisar o cabelo. Um pelo fora do lugar, qualquer coisa era o mote para mais uma discussão sobre a inutilidade dele e o desmazelo da mãe.

O jantar decorreu na mesma paz gorada de sempre. O jogo desenrolava-se à frente deles. Zacarias nem olhava o prato, empurrava garfadas de comida para a boca, umas a seguir às outras. O intervalo chegou. O nulo continuava, e o guisado já frio começava a ferver dentro do homem.

- Cabrão do gaiato! Deixa-te estar sentado! O jogo ainda não acabou!, e tu minha cabra, vê se limpas esta merda toda!

Deolinda sentiu o chão fugir. Quando ele ficava assim, agora tantos anos volvidos, mais que o medo era a afronta de ter chegado àquele ponto. O ressentimento com ela própria. Não conseguia deixar de se culpar. O medo dela tinha provocado mais abalos, mais tragédia do que a força bruta dele.

Eusébio encolheu a vontade de ir à casa de banho. Sentou-se direito a olhar para o aparelho de televisão sem no entanto o ver. Nem sequer era do Benfica. O seu coração batia a verde e branco. Mas se o pai desconfiasse, ele estaria morto. Se calhar era até melhor.

A jarra de loiça em cima da televisão foi a primeira a sofrer a derrocada do  único golo da partida. Os estrangeiros marcaram a um minuto do fim, e a cozinha dos Resende vivia a calma que antecipa a tempestade. O silêncio do golo.

O dia amanheceu cinzento, outra vez. Deolinda cirandava pela cozinha. Falava baixinho.

- Cosme, anda prá mesa filho. As torradas já estão prontas, e o leite está quentinho como gostas, anda Cosme, vais ver que ficas bom num instante.

Eusébio olhava-a encostado na ombreira da porta. Era invisível para os olhos perdidos do cirandar da mãe. A irmã Margarida parecia agora outra vida, outro Eusébio. O vidro partido em estilhaços, era uma brincadeira de criança que ria de gosto longe dali.

Cosme o mais velho dos dois irmãos, sempre fora de saúde frágil, um rapaz de alma melindrosa e corpo etéreo desde o nascimento. Tinha mais quatro anos que Eusébio. No dia que completara quinze anos, na calada da noite, tirara o cinto preto de pele da farda do pai e com ele pendurou-se pelo pescoço na porta do quarto. Zacarias, sempre o mais madrugador encontrou pela manhã os despojos daquele filho, a pele transparente, os olhos abertos no vazio, a fivela apertada a arroxear o pescoço fino.

Acordou Deolinda com um abanão - "o paneleiro do teu filho matou-se" - e saiu porta fora. Voltou mais tarde com o cangalheiro, o médico e o padre, e tratou de todos os tramites legais e espirituais como um pai deve fazer.

Eusébio olhava a mãe, o dó que sentia dela dilacerava-lhe o peito. O corpo espigado de rapazola condoía-se da culpa mastigada daquela mulher que era sua mãe, mas que  tinha desaprendido de ser pessoa há muito tempo.

Era Domingo. Zacarias dormia ainda. A farda descansava numa cadeira da sala. Eusébio olhou-a, caminhou até lá, tirou o cinto preto de pele das calças e entrou no quarto do pai.

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Terça-feira, 12 de Maio de 2009

A Confissão

 

Tomou-lhe as mãos, com as suas. Pressionou-as ao de leve.

Olhou, sôfrego, aqueles membros macios, e quentes, depois mergulhou o rosto exausto no vale húmido do seu colo. Sentiu o cheiro adocicado a cravo-da-índia e açúcar mascavado que o faziam sempre ter vontade de a abraçar.

Não era altura para isso.

Pedira-lhe que ficasse mais um pouco, que deixasse todos os afazeres, só para o ouvir....no entanto agora hesitava. Enquanto descansava a culpa no leito morno, embalado pelas dúvidas que lhe assaltavam a razão, ponderava na melhor forma de evitar o Inverno nos olhos dela. Respirava fundo, imerso na brandura da sua pele, tentando guardar todos os cheiros e toques e climas daquele solo sagrado.

Pressentia-lhe uma ansiedade em crescendo. Ela estava muda, é certo. Mas havia um odor forte a pimenta do reino, que lhe crescia nas palmas das mãos e antecipava a estação das chuvas.

Ela sentada, rígida, expectante e ainda assim, calorosa e doce.

Ele de joelhos, entregue, fundido nela...

Tinha começado a chover lá fora.

Uma bátega de água, rija e consistente.

Das encostas uma enxurrada exangue escorria até à foz do peito dos dois amantes.

Então ele disse: - Não há nada mais triste do que ler o segredo escondido de outro alguém...deixa-nos num limbo entre culpa de o ter feito e a dor de o saber....

O silêncio, quebrado por breves instantes pela voz dele, voltou a falar mais alto. Sobejaram as palavras ditas num sussurro. Permaneceram no ar, caladas, a perpetuar distancias.

Doíam-lhe os joelhos dobrados no chão de cimento mal afagado - ainda bem - pensou com uma pontada de exaltado prazer. O gozo antecipado da expiação.

- Devias saber que o conhecimento é o berço da dor.

Ele levantou o rosto incrédulo. Ela falara...

Ergueu-se devagar, lambeu as feridas e os restos de silêncio agarrados às suas mãos, e olhou-a acanhado.

Ela esboçou um sorriso maternal, breve e fugaz.

- Agora vai. A chuva lavou a culpa, a tua e a minha...

 

Image by Pablo Picasso "Portrait of A Woman" 

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Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2009

Sabes?

O homem olhou-a, sério, compenetrado, seguro, como se estivesse à beira de anunciar a cura para a tristeza.

 

- O que sei da vida? É isso que te interessa? É só isso que te interessa!?

...sei que baste... e tu....?

já abriste o vidro do carro, quando a velocidade te acossa, e a chuva te aperta num cerco que quase te sufoca?

Porventura podes descrever o peso das gotas grossas a cair impiedosamente sobre as plantas mais frágeis, até elas esmagadas gritarem em desepero por um sopro seco?

Nesses dias em que a humidade é uma epidemia, e as árvores entornam na terra cheiros e rios de seiva....sentiste-te bêbeda desse excesso de odores?

Nesses mesmos dias, conseguiste soltar no vazio que trazes,  as gargalhadas de crianças a pular descalças nas poças de água?

Fizeste estalar a lingua de prazer a morder raizes molhadas da brandura das manhãs de Inverno?

.....não....

....sei que não.....

 

 

Então o homem, compadecido pela ausência de calor naquele ser,  tomou-lhe o rosto com as suas mãos, roçou-lhe a boca num beijo volátil e saiu porta fora sem olhar para trás.

 

Image by Deviantart

 

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Segunda-feira, 21 de Abril de 2008

Subir ao céu

 

A chuva surpreendera-a a apanhar agriões nas margens do ribeiro.

Abrigava-se debaixo de gotas grossas e pesadas, de mãos dadas com a seara de trigo, que lhe segredava:

- Corre Rosa, foge que o céu vai desabar...

Rosa estava pasmada, e receosa. Num repente a flor do dia tingia-se de metal escuro, e o sorriso dela escorregara para o chão, agora de lama.

O coração batia alto, tanto que os ouvidos lhe doíam com o barulho.

Ou então era o troar dos trovões. A electricidade no ar, eriçava-lhe os sentidos, e o horizonte tinha-se dissipado em cortinas  de água cerradas como muros de betão.

Um dente de leão, despido pelo vento, assobiou-lhe em surdina à sua passagem:

- Corre Rosa, corre que o mundo se acaba, ou te acabas tu...

Rosa, acenou-lhe e continuou. As fontes latejavam de pressa fundida no medo, e acima de tudo, a prudência dizia-lhe que não era bom estar a céu aberto num dia marcado como aquele.

Arengava uma Magnifica enquanto tropeçava nas ervas...ou chamava Sta . Bábara ... - alguém por favor.

Avistou a cameleira antiga, que assinalava a fronteira entre as terras de S. Justa e as terras de ninguém, onde agora se perdia.

Um coelho bravo, a espreitar da sua toca, gritou-lhe numa voz fina e estridente:

- Rosa corre, deixa a cameleira florir em paz! As camélias gostam de luz...foge, que te encandeias!

Deixou o coelho pra trás. Só tinha olhos para a grande árvore, tão antiga como a terra que a acolhia,...era a única árvore num raio de muitos metros...além dela só as estevas do caminho das cabras, ou as ervas daninhas e as flores do campo, que vergavam rendidas com a força dos elementos.

Sentou-se encostada ao tronco seguro da cameleira, tentou lembrar-se de uma oração, uma que afastasse as trovoadas, ou ainda melhor, uma que a levasse a casa...

Uma poupa, voou por cima dos seus cabelos encharcados, guinchando:

- Corre Rosa, as camélias gostam de luz.....

A cameleira iluminou-se com um estrondo que vinha das entranhas antigas da terra, e choveram camélias na erva molhada.

No silêncio da terra queimada, nasceram rosas, e nelas pousaram pássaros de todas as cores.

Imagem by João Palmela

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Quinta-feira, 13 de Março de 2008

Amazing....

 

- Foram três dias de assombro...

Falava...as palavras espalhavam-se como água e havia bocas que se abriam de espanto, e olhos paralisados colados na sua voz.

- O vento rugia com tal força, que os alicerces das casas descolavam da terra como dentes podres, e os homens trabalhavam amarrados a estacas de ferro de dez polegadas, e os tímpanos rebentavam e tudo quanto era ser vivente ensurdecia....

As mães ajoelhavam aos pés das camas onde as suas crianças dormiam. Ajoelhavam e velavam o sono inquieto, atemorizadas por alguma rajada insolente que entrasse por baixo da porta e lhes levasse os inocentes.

.....

-Eu vi! Ninguém me contou! Eu vi bem, três crianças pequenas, todas de mãos dadas, que se ergueram no ar como balões e voaram pelos céus , até desaparecerem por detrás de uma nuvem cheia de vento...não mais voltaram...eu bem vi...

......

- Depois foi a chuva, começou de madrugada e alagou tudo o que estava seco, só sobreviveram os que sabiam nadar....ou voar...

Começou de madrugada. Quando o vento de calou. Começou com tiros de canhão, que ecoavam nas casas como se estas estivessem vazias de coisas e de almas.

Fui à janela. Eram ovos do tamanho de punhos de homens grandes. Ovos de gelo que caiam com estrondo, e quando caiam saiam deles uns pintos encharcados  que se derretiam e deixavam no ar um cheiro a gemada com aguardente.

E aqueles pintos derretidos, alagaram tudo o que estava seco...depois abriram-se bicas lá no céu, e fontes derramaram toda a água sobre nós. Safou-se quem nadava.....ou voava....

.....

-No último dia  trovejou. E não houve noite, só dia claro, e um qualquer cegava com os clarões dos relâmpagos. E as árvores do campo tornaram carvão, queimadas da raiz às folhas, e a paisagem ficou pintada em tons de preto e branco... cinzento....e luz.

.....

-Por fim o silêncio...os que ficaram, apanharam os cacos, varreram as casas, escoaram as ruas, fizeram leitos de rio todos de novo, arrumaram as vidas....

Foram três dias de assombro. Eu vi......

.....

Depois calou-se, saiu para a rua, cortou a corda que o prendia à porta, com uma navalha de bolso, e tirou os pés do chão, devagar....deixou no ar um cheiro forte a gemada quente com aguardente.

 

Imagem by Weee (Amazing)

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Sábado, 23 de Fevereiro de 2008

Pé de Vento

Está a escurecer...vou sair.

Eu sei que está a chover, a chover muito...não fiques em cuidados comigo!

Achas que me vou afogar?!

Se me quisesse afogar, deitava-me na fonte e ficava lá...a criar raízes ...

tu sabes que eu não sou raiz, eu sou pé de vento.

Ah....e antes que me esqueça.....sei que arrancaste todas as flores que eu plantei.

Na verdade nem sequer eram flores...ainda....eram apenas rebentos...mas ainda assim...

E agora tens medo? De quê?

A morte tem muitas formas, sabias?

Agora vou.

 

sinto-me:
música: It's raining again - Supertramp
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Original Zumbido por meldevespas às 21:23
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Segunda-feira, 14 de Janeiro de 2008

Pertencer

Sentia cada músculo das suas pernas. A subida era íngreme, e pedalar debaixo daquela chuva miudinha e pesada era ainda mais difícil .

Tinha enfiado o impermeável azul escuro, com  riscas amarelo fluorescente, e saíra para a rua sem se preocupar nem um segundo, com o facto das calças do fato de treino irem ficar ensopadas nos primeiros 50 metros da etapa.

Saía sempre à mesma hora, um pouco antes das 7 da manhã.

Ver o sol nascer à sua frente, era um espectáculo que se recusava perder.

Hoje a manhã estava arisca para andar de bicicleta. Soprava um vento forte, e a chuva parecia milhares de agulhas a baterem-lhe na cara. Mal conseguia manter os olhos abertos, mas ao mesmo tempo sentia-se mais viva que nunca.

Àquela hora havia ainda pouco movimento neste tipo de estradas, secundárias. Um tractor aqui e ali, a assinalar a sua marcha lenta com a luz do pirilampo, a carrinha do padeiro, que já ia na segunda volta a distribuir pelas aldeias da vizinhança, o autocarro que levava as crianças das redondezas até às escolas da vila, e pouco mais.

Tinha escolhido, uma aldeia perdida no sul do país, para fugir a uma vida de correrias, de metas por objectivos, de solidão consentida pela religião do dinheiro e da carreira.

Pareciam palavras vãs, mas pelo menos para ela tinham sido motivos mais que válidos para a fuga.

Fuga. Podia chamar-lhe assim. Aliás não podia ser de outra forma.

O apartamento mobilado, a quota no escritório, o companheiro de cama. Partira sem aviso.

O que era ontem, hoje deixara de ser.

Tinha finalmente apanhado a curva da encosta. Agora  tinha uns bons 2 km de recta, poderia dar descanso à pernas. O dia estava a clarear, e a chuva a enfraquecer. O vento porém soprava cada vez mais impiedoso.

A temperatura descera bastante durante a noite, apesar da chuva. Tinha as pontas dos dedos geladas, e por momentos odiou-se por ser tão distraída e não ter levado umas luvas.

Tirou as mãos do guiador, esfregou-as uma na outra e colocou-as em concha junto à boca, de modo a soprar-lhe uma baforada de ar quente.

Caramba! Estava mesmo um gelo. Sentia os pulmões picarem, e o coração bater a um ritmo acelerado. Tudo aquilo era a vida dela, a vida nela, a vida que ela na cidade grande não tinha conseguido descobrir dentro do seu ser.

Começavam a ver-se pequenas abertas no céu. Aqui e ali, rasgos de um azul eléctrico apareciam do nada e prateavam os riscos deixados pelos aviões.

Junto aos troncos das árvores permanecia ainda uma névoa ténue e húmida , que mesmo à luz do dia desenhava contornos esquivos e indecifráveis por entre os ramos.

Pedalava com quanta força tinha, para afastar da cabeça as contas que de vez em quando ainda deitava à vida. Sentia a pele da cara a arder. Os lábios, era certo , iriam estalar, ao mínimo gesto.

Nunca se lembrava de passar o creme. Era um creme caro. Tinha-o trazido da outra vida. Sabia que era por isso que relutava em usa-lo.

Levantou a mão para acenar a um pastor que conhecia dos seus passeios matinais, e abriu um sorriso e um amistoso bom dia. Sentiu de imediato o sabor quente e doce do seu próprio sangue. Já sabia! Devia ter posto o batom do cieiro, ou a porcaria do creme. O lábio estalou, e agora ardia mais ainda.

Era sempre efusiva e simpática para os habitantes dali. Já todos a conheciam,  e não se podia queixar de ser mal aceite, nem nada parecido.

Mas também não a olhavam como um dos seus pares . Era uma forasteira. Com usos e costumes muito diferentes das gentes dali.

Aquilo da bicicleta....Os calções curtos pra correr... Os olhos pintados...

Por vezes mais que uma forasteira, olhavam-na como uma alienígena . Isso divertia-a, mas também a incomodava. Sentia-se num limbo. Não era da cidade. Mas também não era dali. Não se encaixava em lugar nenhum. Questionava-se se não seria um pouco assim, com toda a gente?

Sabia bem que não.

 Aquelas pessoas eram daquele lugar. Tinham raízes ali, e olhavam de viés e com estranheza as suas atitudes.

O vento estava incansável, mas o sol aparecia a tempos, a descoberto das nuvens de um cinza chumbo carregado, que ameaçavam o dilúvio ainda antes da hora de almoço. Estava um daqueles dias de muitas caras, como algumas pessoas, chorava e sorria, conforme a vontade do vento, e lá ia consumindo as horas e as forças dela na pedaleira.

Tinha chegado à estrada nacional. Agora era fazer o caminho de regresso, mais 8 kms , e com sorte antes da chuva estava abrigada em casa.

Pelo menos hoje não tinha nada que fazer. Não havia compromissos, horas marcadas, pessoas à espera, decisões pendentes. Nada. Só a casa vazia à sua espera.

O dinheiro estava a dar as últimas, e tinha que ser célere em arranjar uma ocupação rentável naquele fim de mundo. Engraçado como sempre que falava de trabalho, não conseguia evitar referir-se ao seu refugio no campo, como "o fim do mundo"...

Se tinha saudades do que tinha ficado lá atrás? Soltou um suspiro e empenhou-se em pedalar, como se o tempo se estivesse a extinguir agora, neste mesmo instante.

Na berma da estrada, as vinhas, com as suas hastes  vermelhas, ainda despidas de parra, despertavam para a vida, para um novo ano de caudais abundantes. As amoreiras, na curva do monte, essas estavam tal como ela... sorriu, e num gemido sentiu o lábio estalar de novo. Estavam nuas. Vivas, é certo , mas num abandono e solidão de fazer doer o coração. Até os ninhos, lá no alto, no meio dos ramos estavam vazios. Ela também estava vazia.

Uma pega fez um voo rasante mesmo à sua frente. Um rato, ou outro bicharoco qualquer, de certeza !

O sol já mal se via, e as nuvens tinham tomado conta dos céus. Um autentico motim. Ainda faltavam mais de 2km , e já estava arrependida da extravagância deste passeio. Sentiu falta do escritório, com aquecimento central, e colaboradores à sua disposição o dia todo. O cheiro do café quente, a chuva a bater nos vidros duplos das janelas, as árvores lá fora a vergarem-se à força do vento!

Pedalou sem descansar. Não se permitiu olhar nada que não fosse o fim da estrada. Ainda não tinha tido o desprazer de apanhar com uma tempestade daquele calibre em cima de si! E não ia ser hoje!

Tinha recomeçado a chover. Mas não era aquela chuva miudinha da madrugada. Eram gotas grossas e cheias, vindas propositadamente para a castigar. Que raio lhe tinha passado pela cabeça para sair num dia assim! O vento era de tal ordem, que tinha agora dificuldade em equilibrar-se em cima da bicicleta.

Na boca misturava-se o sabor da chuva insonsa com o doce do sangue húmido nos lábios gretados.

Gotas de suor escorriam-lhe nas fontes, ou seria só chuva?

E o que era aquele sabor salgado?

Não! Não podia estar a chorar agora! Ela raramente chorava.

Pedalou, enraivada com o momento de fraqueza. Não tardou a ver o telhado avermelhado da casinha que tinha alugado. Era ainda fora da aldeia, tinha preferido assim. Prezava muito a sua privacidade. Tinha tido casos, paixões, desvarios, mas jamais tinha baixado a guarda.

Ela era una. Um circulo. Um forte.

Jogou a bicicleta contra a parede debaixo do alpendre e largou o impermeável, no chão.

Meteu a chave na porta, e entrou, deixando poças de água à sua entrada.

Descalçou os ténis e mandou-os porta fora.

Despiu-se pela sala, a caminho da casa de banho. Tomou um banho quente e rápido, vestiu um pijama, e foi para a cozinha.

Preparou um chá, e enquanto esperava a água ferver, perdeu-se na chuva que continuava a fustigar o dia.

Estava sozinha . O silêncio dentro de casa era tão grande, que teve vontade de tapar os ouvidos. Mas não o fez, claro! Era uma estupidez, pensou, abanando a cabeça.

Sentou-se, sem nunca tirar os olhos lá de fora.

Talvez fosse a chuva, ou o frio, ou o chá quente, mas deu consigo a pensar como seria ser de alguém? 

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Original Zumbido por meldevespas às 20:58
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