- Queres dançar comigo?
Repetia a frase dentro de si, enquanto cravava a sala de passos pesados, e certeiros, avançando decidido para a sua meta.
Já tinha estado lá fora muito tempo. Tinha mentalmente feito este percurso mais de uma dezena de vezes. Costas direitas, queixo empinado, olhar destemido, e : - Queres dançar comigo?
Não tinha a certeza de conseguir falar, quando a hora chegasse. Sentia o céu da boca numa textura de papel mata-borrão, e a cerveja que tinha literalmente engolido, só tinha piorado o suor que lhe colava nas mãos, e começava agora a repassar-lhe a testa.
Tinha pedido à mãe para lhe engomar a camisa branca, o branco sempre lhe deu um ar asseado, e isso era muito importante, segundo a mãe.
Vestira umas calças de fazenda riscada cinza trovão, impecavelmente vincadas, e apesar das dores quase o matarem, tinha enfiado os pés nuns sapatos castanhos, engraxados pelo Martinho da Praça, mas que tinham sido do Tio Joel, que calçava pelo menos dois números menos que ele.
-Queres dançar comigo?....ou será melhor: - Queres dançar?? Se sou eu a pedir, ela já sabe que é pra dançar comigo, ou não?!......Mas...não sei... gosto mais de :- Queres dançar comigo?, fica mais composto, é assim, e não há mais conversa!
Ajeitou pela última vez as calças, e rezou aos Santinhos todos para que os seus "haveres" de homem, desta vez se portassem à altura do acontecimento.
Corou...corava sempre que revivia aquele bofetão desconcertante. Apertou tanto a Luisinha , que começou a sentir o seu entusiasmo crescer ao ritmo da música. Ela também sentiu....chamou-lhe ordinário e tarado na frente do povo todo, e espetou-lhe um tal estaladão , que ainda hoje, três anos depois, a orelha onde assentaram os dedos da ofendida, lhe arde em lume brando.
Era uma cena para esquecer, mas o cabo dos trabalhos é que ele se lembrava sempre dela, e o medo, encostava-o às paredes das salas de baile, ou aos balcões dos bares, a dançar com raparigas nos braços de outros, colado ao chão, impotente naquele medo de rapaz a fazer-se homem.
Mas desta vez ia ser diferente! As pessoas já quase tinha apagado da memória aquele episódio sórdido e ridículo , e além disso não queria mais saber disso! - Hoje vou dançar, e vou dançar com aquela rapariga do vestido amarelo, ou eu não me chame Zé Augusto!
Umas meninas a brincar de roda no meio do salão, travaram-lhe o passo,...e a coragem também.
Olhou para a roda, as meninas dançavam, cantavam, riam às gargalhadas, metidas nos seus vestidos de chita, feitos a primor para a ocasião. Laços de seda nos cabelos, pontas desfeitas, caras rosadas..ficou ali a olhá-las, parado num lugar onde não está ninguém, onde não se pensa, não se existe, não se está.
A voz estridente da menina a puxar-lhe o vinco das calças, acordou-o daquele torpor.
- Olhá lá! Estás a olhar prá onde?? Queres outro chapadão ?
A musica do acordeão era agora um coro de gargalhadas. Das meninas da roda, e de todos os pares dançantes. Raparigas olhavam-no com desmedido desdém, rapazes luziam irónicos sorrisos, e mães pulavam prá frente das filhas protegendo-lhes virgindades de areia.
Mas ele, já lá não estava, não podia estar, tapou a cara com as duas mão em concha, e saiu a correr, como um cão vadio com a cauda entre as pernas depois de ser apedrejado.
Nunca mais ouviu o silêncio. A sua vida desde esse dia foi sempre acompanhada por uma banda sonora de gargalhadas, que até ao fim dos seus dias fizeram dueto com o chorar das cordas de um violino, que tocava nos seus ouvidos a pena que tinha de si mesmo.
Não chegou jamais a saber, com que ânsias a rapariga do vestido amarelo esperou ser para ela que ele dirigia os seus passos pesados mas certeiros, naquele baile.
Não chegou jamais a saber com que força batia o coração dela, por ele. O violino tocou sempre mais alto.