A trovoada estava já longe, mas o troar enchia ainda a tarde. Um rosnar cavo em direcção à noite. A terra toda exalava calor e humidade. Ali à beira rio derramava a angustia de um dia difícil. Sentia a camisa colada às costas numa mistura de água e suor. Estava sentado no lamaçal que a chuva grossa deixara pra trás. Enterrou os dedos na terra molhada e cerrou os olhos num gemido. Perdera a conta às horas. Há quanto tempo estarei aqui. Deixou os dedos semeados na lama. Como se estivesse entre as pernas de uma mulher. Sentiu-a trémula entre os dedos. Quente e saciada.
Pensou na mulher, e uma agulha afiada bordou-lhe no peito uma dor imensa. Pensou nela preparada para o receber, deitada na cama desalinhada, intensa e sem pudores, de olhos vermelhos e boca aguada. Doeu tanto que se abraçou pra segurar a vida nele.
Não podia voltar. Também não queria voltar. Mais um pouco e seria noite cerrada. Sem estrelas, sem luz que não fosse a trovoada a debandar em clarões fugazes, e o fogo que lhe consumia os dedos.
Não ia chorar. Isso nem pensar. Ainda tinha nos tímpanos o estrondear dos batentes da porta da rua, a madrugar o dia. Levantara-se de um salto. A mulher ficara na cama. Sentada, de olhos esbugalhados, pela expectativa de uma qualquer desgraça, o lençol puxado até ao queixo perfeito.
Correu até à porta abriu-a e lá fora só encontrou o vazio. Saiu, andou até ao meio da rua, olhou para cima, depois para baixo, esperou um pouco e voltou para dentro. Foi então que viu. Pendurado no postigo de ferro forjado, estava um valente par de chifres a rir-se dele. Um par de chifres ousados, em pontas, a desafiá-lo. Encurtou o passo, mirou os intrusos, sem lhe tocar nunca. Foi primeiro um formigueiro, subiu-lhe pelas pernas e em menos de um segundo já era uma fogueira ateada. Agora era só dor.
Ela tinha ficado à espera que ele voltasse. Ele não voltou. Os cornos engalanavam a porta da rua, e o sol já alto dava rastilho aos risos dos passantes. Ela tinha fechado a porta com raiva, e tinha vomitado o medo em tremores convulsivos.
Ele deitou-se na lama e decidiu ficar. Os cornos pesam a um homem, pensou. Depois começou a rir, de si, da lua acanhada, riu-se em gargalhadas fortes e sonoras, e só por uma noite espantou o bicho que lhe nascia dentro.
O Luís e a Tininha eram namorados vai pra mais de três anos.
Amavam-se e faziam planos, como todos os namorados.
"Um dia vamos ter uma casa do tamanho de um castelo, e um carro descapotável, para viajarmos com o vento na cara!" dizia o Luís com aquele ar sonhador que a Tininha conhecia tão bem.
Tinham dezasseis anos e andavam de mão dadas. Caminhavam lado a lado, com o coração no bolso do outro e os olhos postos nos sonhos de ambos.
Partilhavam chupa-chupas de morango e pastilhas elásticas de mentol, comiam sorvetes de limão a meias, e riam de tudo e de nada quando estavam um com o outro.
O Luís tremia de cima abaixo quando avistava o sorriso da Tininha , sentia as mãos a suar e a garganta a ficar seca. O Luís era quase um homem, e queria a Tininha com a força de um homem. Vivia num misto de paraíso e inferno, tal era o desejo que tinha dela.
Sabia que aquele fogo que lhe crescia nas pernas e se lhe espalhava pelo corpo todo mal a tocava, não podia estar muito mais tempo ocultado no seu peito. Temia até pela sua saúde mental. Pensava amiúde que por este andar ia acabar louco varrido.
A Tininha fazia pouco caso dos acessos de loucura e carne com que ele a assediava.
Ria-se e ateava um pouco mais as brasas já incandescentes nas veias do Luís , esquivava-se em gestos ambíguos , e alimentava de palavras o sentimento que os aproximava.
- Já te disse que não! Às vezes és um chato do pior...devias ouvir-me! Até parece que estou a falar pró boneco!
- Mas tu sabes que eu gosto de ti! É só por causa disso...
- Mesmo assim! Se eu já disse que não, é não!
- Tininha ...isso é uma parvoíce , és minha namorada, e eu gosto tanto de ti!
- Não insistas! Vou acabar por me aborrecer a sério!
- Se ao menos me desses uma boa razão....
- Queres melhor razão que o meu querer!?
- Mas....
- Não há mas nem meio mas Luís !
-....eu sei que tu também queres...queres tanto como eu quero....mais parece que estás a judiar de mim...
- Sabes bem que não é nada disso amor. É que....há querer e há poder, e eu não posso...tu sabes. Somos tão novos...
- Agora é a idade...
- É a idade sim! E então? Tu pensas que não te conheço? Depois fazes-me o mesmo que fizeste às outras! E eu não sou elas!
- Lá vem a mesma conversa.....é de ti que eu gosto! Por isso estou contigo!
- ...aposto que repetiste isso a todas elas....
- Tininha , agora quem está a ficar chateado sou eu! O que é que eu preciso fazer para acreditares em mim?
- Jura que me amas mais que tudo no mundo! Jura que morres por mim se eu te pedir!
Tininha não levava a sério os anseios de Luis , mas sentia a urgência nos olhos dele.
Sabia da angustia que os dedos das mãos dele passavam nas mãos dela, nos braços dela.
De uma maneira serena e pensada, Tininha , gostava de o saber assim, sofrido, doído de desejo. Às vezes quando fechava os olhos, também pensava nas mãos do Luís pousadas nas suas ancas, pensava na boca do Luís a amassar a sua própria boca entreaberta. às vezes o cheiro a pinho silvestre do cabelo do Luís imiscuía-se pelas narinas e a sua respiração ficava mais pesada e mais premente.
Mas quando abria os olhos, o mundo à sua volta ficava outra vez cor-de-rosa como um algodão doce nas feiras de verão, e o ar ficava de novo povoado de sonhos de castelos e príncipes .
- Vamos comer um gelado?
- Agora? Estamos aqui tão bem.....vem cá...dá-me só mais um beijo...
- Chega de beijos! Queres de chocolate ou baunilha?
- Não me apetece...queria estar aqui contigo....
- És um pegajoso!!! Anda lá comer um gelado, não sejas chato!
- Está bem. Pode ser chocolate...
Luis , outra vez, guardava o fogo no peito, e em gritos mudos de dor, afogava o desejo num gelado de chocolate.
A minha filha adolescente está apaixonada, ou melhor, a minha filha pré-adolescente está apaixonada!
Tenho a cabeça cheia de suspiros, a paciência inundada de profundos ais, e as minhas tentativas de parecer uma mãe moderna estão presas por teias de aranha...
Uff!!! Miguel, Miguel, Miguel!!!
Não estou preparada para isto, não estou e ponto final!!!
Onde estão os tempos de recato, em que as prendadas meninas de 11 anos brincavam tardes inteiras com as suas bonecas, tachinhos e panelas, serviços de chá de porcelana chinesa comprados na Feira de Maio.
A verdade é que essas tardes já tem 30 anos, e tantas rugas como a minha cara pintada de base auto bronzeadora, que disfarça tudo menos....as rugas.
As Barbies estão todas dobradas, dores de costas, pernas partidas, cabelos baços de nós, no fundo de caixas de arrumação, e longe dos olhos castanhos que em tempos as penteavam, nas estantes onde moravam, passam agora colares de missangas, cintos plásticos de todas as cores, brincos de fazer cair as orelhas mais pequenas, angustias de criança a mudar de pele, vernizes, batons de morango, perfumes de mulher que largou a pele velha debaixo da cama, e posters de sonhos com acne e sorriso de metal.
Ele é tão lindo, Mãe, ai, se tu visses, ai, o cabelo, ai, os olhos, ai é tão querido, ai!!!!
Ai, ai digo eu!
O que é que está a acontecer aqui!!!! Quem sou eu, porque é que eu sou a minha mãe e eu verdadeiramente DESAPARECI dilui-me em tudo o que combati, quando eu própria cresci. Mas será que eu alguma vez tive 11 anos e me apaixonei. Soa-me a histórias distantes impressas em livros velhos com aquele cheiro de biblioteca, que nos enche os pulmões e depois se liberta
Ainda assim, pergunto-se vezes demais, se aquela criatura á minha frente é fruto da minha barriga, se aqueles olhos não fossem os meus olhos, ninguém diria, anda na vida como se do Sol se tratasse, tudo o que vem de fora gira em seu redor e depende em primeiríssima instância de um piscar dos seus olhos ou de um daqueles sorrisos mal esboçados e debochados.
O eclipse acontece no entanto, ao menor contratempo, uma borbulha, um kilo, um Miguel, um pacote de bolachas de chocolate feito em migalhas, alguém, quem quer que seja um dia que seja mais velho e tchan! O sol transforma-se em Lua á espera de uma fase melhor.