- Sabes desenhar uma flor ?
-..N..não, só sei fazer uma fisga.....
A pergunta tinha sido feita sem levantar os olhos do bloco de folhas brancas.
A resposta tinha sido dada num reflexo de estupefacção : ela tinha falado com ele!!!
Desde essa tarde de principio de Maio, muitos dias de Inverno tinham passado por ele.
Tinha feito fisgas, tinha espigado com força, tinha caçado pardais, tinha guardado porcos,... tinha guardado sonhos.
Abriu as mãos e olhou-as. O arado tinha-as lavrado fundo, havia sulcos de rega e crostas de seca por toda a superfície . Os dedos terminavam abruptamente, grossos como tocos de madeira, as unhas curtas e roídas estavam pespontadas a terra e suor. Abriu as mãos e olhou-as...os seus caminhos eram diferentes como a noite e o dia são.
Nunca se cruzavam...nem passavam perto.
Ela estava sentada num banquinho daqueles dos pic-nic , a desenhar um campo de margaridas. Um bloco de folhas brancas no colo, e uma caixa de lápis de cor pousada no chão mesmo ali ao lado.
- Sabes desenhar uma flor?.....
Até demais ela sabia.....
Ele não sabia desenhar uma flor . Ele nem sabia pegar no lápis.
- Não. só sei fazer uma fisga...
Deitou-lhe um olhar de soslaio. Uma fisga. Um objecto bárbaro e insignificante, perto do desenho sublime de uma flor .
Um dia tinha avistado o brilho dos cabelos dela. Passou num automóvel. Era Verão e traziam os vidros abertos. Era sempre Verão para ela.
Ele ficou semeado na terra a ver o carro desaparecer na curva lá adiante. E o brilho dos cabelos dela.
Eram da cor das searas em Junho. Os cabelos dela.
Estava sentado, encostado ao tronco antigo do sobreiro. Pousado ali mesmo ao lado, um caderno de folhas brancas. No seu colo, um lápis de carvão. E os olhos nas mão abertas.
Sorriu. Sorriu da sua teimosia. Passaram tantas sementeiras.
Puxou o caderno, e pegou no lápis.
I
Já estão dois a abanar
outros mais lhes seguirão
parece que estão a dançar
ao som da mesma canção
II
-Mãe, olha! estou a crescer
o meu dente vai cair!
Vou ficar envergonhada
quando o sol me vir sorrir!
III
-Vai valer o teu sorriso
Isto que te vou contar:
Também o sol, já teve
um dentinho a abanar!
IV
Era ainda pequenino
Cabia na tua mão
Mais parecia um pirilampo
Mal aquecia no Verão!
V
Agora que já cresceu
Tem um sorriso brilhante
A lavar bem os dentinhos
Ficas como ele num instante!
Ilustrado por Pim Pam Pum
Cantarolava baixinho enquanto as suas mãos dobravam com astúcia os lençóis de linho bordados à mão.
- Estes têm que ser tratados com se fossem gente! Levaram-me anos de vida a bordá-los, custaram-me dores nas costas, horas de sono, dedos picados....mas valeu a pena! Oh meu Deus, é um enlevo só olhar pra eles! Tão delicados! Tenho tanto orgulho de os ter bordado, que é até pecado!
A cançoneta de amor, continuava a soar, em solavancos, entrecortada pelos trejeitos de admiração, de cada vez que descobria uma nova peça.
Uma camisa de dormir em tons de pérola com ajurs de rendas aplicados à altura do peito, era agora o objecto da sua atenção.
- Esta camisola!!! Que perfeição! É de organdi tão fino, que parece que não existe, e estas rendas....a linha é de uma tal finura que os olhos queimavam e esgotavam-se em lágrimas de esforço! - via-se ao espelho de corpo inteiro do guarda-fatos de madeira envernizado. A camisa de dormir em frente dela, colada ao corpo como uma outra pele, uma mão aberta à altura do ventre, a outra segurava o cabide pelos ombros. Movia-se numa cadência de matiné domingueira, ainda debitando o bolero de amores cruéis . Sorria, os olhos semicerrados numa indolência permitida pela música.
Ajoelhou-se aos pés da cama, estendeu a camisa de dormir, alisou-a com a mão, ao de leve, quase sem lhe tocar, e com uma precisão geométrica, dobrou-a com cautela e depositou-a na caixa de cartão. Os anjinhos alados, roliços e rosados na tampa da caixa, dedilhavam pequenas harpas, que acompanhavam a voz dela. Deu um laço com as fitas de seda largas cor de uva, meticulosamente e sentiu-se deveras feliz com o resultado.
Todo o enxoval era primoroso, por cima da cama digladiavam-se toalhas de rosto, e panos de chá, robbes de chambre e lençóis monogramados . Bordados delicados, panos de uma leveza que não podia ser deste mundo, cores etéreas , texturas adamascadas, todo um rol de toques de uma sensualidade tantas vezes ensaiada ali naquela cama.
Quando se levantou, pegando na caixa dos anjinhos, como quem pega num bebé recem nascido, sentiu cair alguma coisa aos seus pés. Pousou de novo a caixa, e apanhou um envelope amarelecido do chão, havia ali muitos mais, tombados às dúzias no chão de tacos impecavelmente encerados. O cordel de sisal , antes louro, agora sépia pela acção dos anos, desatara-se e libertara dezenas de cartões pelo soalho.
Apanhou a medo o pequeno envelope manchado aqui e ali por nódoas de humidade do fundo do baú.
Abriu-o e retirou devagar o cartão em papel de boa qualidade. As letras conservavam a cor, um dourado velho ainda brilhante e chamativo. Uma primeira lágrima caiu em cima daquelas letras, daqueles nomes fechados a sete chaves na arca de papelão vermelho e ouro. O liquido salgado caiu e alastrou como uma erva ruim. Em pouco tempo, o papel estava ensopado, e os nomes impressos nele brilhavam com redobrada força.
Era o nome dela, e o nome dele. Quando ainda havia ela e ele...
Era o nome dela, e o nome dele. Um convite. O anunciar ao mundo de um amor finalmente consumado.
Empurrou o cartão molhado para dentro do envelope, e, ainda de joelhos apanhou um a um todos os envelopes caídos. Refez o molho, voltou a cingir o sisal com firmeza e devolveu o embrulho agora recomposto, ao baú.
Os lençóis de linho.
Agora depois dos olhos lavados pelo sal das lágrimas, podiam ver-se pequenas pintas ocre de ferrugem. Talvez das dobradiças da tampa da arca.
As toalhas de rosto, as cobertas, os atoalhados, tudo tinha escurecido um tom acima do original.
Como ela.
Arrastou-se sempre com os joelhos no chão, até ao espelho. Tocou a sua própria cara. A sua boca. Estava seca e descaída. Os seus olhos. Aqueles eram os seus olhos? Ela não se lembrava de ter uns olhos assim...
O seu cabelo. O seu cabelo comprido, lindo, inveja de tantas outras raparigas, cobiça de tantos outros homens...
Mais parecia uma manhã de nevoeiro cerrado. Quando seria que o seu cabelo tinha ficado assim?
Quando teria ela ficado presa dentro daquele corpo que não reconhecia como seu?
Porque é que ele não apareceu à hora marcada?
Sequer se importou que os cartões ficassem todos amarelos.
Deixou o cheiro a mofo apoderar-se do enxoval.
Limpou os olhos com as costas da mão. Levantou-se devagar. A caixa dos anjinhos estava ainda em cima da colcha de renda da cama. Com a mesma cautela de antes, apanhou-a, depositou-a dentro do baú de papelão encarnado e ouro, e fechou a tampa com cuidado.
Baixou os fechos metálicos, verificou, se nada ficara de fora.
Ajeitou a colcha. Aprumou-se frente ao espelho, e saiu do quarto.
Era Sábado, quase hora de jantar.
Não tinha nada preparado. Era melhor apressar-se não fosse ele aparecer.
6
A luz da vingança espalhou-se longe, alto, e dentro, até os olhos de Catarina não verem nada mais que o cumprimento urgente daquela promessa pagã.
Alindou o luto com um xaile puído de lã grossa, e passeou-se pelas ruas da vila arrastando os passos descalços e arrastando olhos e línguas no seu caminhar.
Chamaram-lhe louca, tresloucada, demente...mas no fundo de cada ser, bem nos alicerces das certezas, o medo corrompia como uma térmita, e a sombra ia-se derramando sobre as casas.
A caminhada diária enegrecia os dias, o xaile arrefecia os corações, e as portas fechavam-se com um bater aflito à sua passagem.
Catarina sorria por dentro, ela era tão grande quanto o medo que insuflava nos outros. Não! Ela era maior!
Trincos e ferrolhos não lhe chegavam, ela sonhava atear aquele medo com arrependimentos antigos, ela ansiava por joelhos no chão implorando perdões que jamais daria.
Durante semanas a fio, recolheu-se no campo aberto que era a sua casa, como um gato que finge dormir, quando se prepara para atacar a presa.
Suspiros de alivio, varreram da vila restos de sombras nas ombreiras das portas, e as janelas acolheram de novo os raios de sol.
7
No campo colado à seara de trigo, nas margens da ribeira do Lucefecit , não havia mais luz que a que a sombra dá.
Catarina rangia os dentes enquanto tingia de encarnado a correnteza fraca que fugia assustada.
A navalha ferrugenta, que encontrara debaixo do colchão de palha, no cabanejo onde o pai um dia dormira, aliava-se a ela. Fria e de fio arrancado às pedras, rasgava a pele áspera do animal e embaciava-se dos hálitos quentes de dentro deles.
Esperou o sol desaparecer. Entulhou uma saca de estopa rija com o ganho da sua labuta, e sem descuidar o xaile negro como ela, rumou à vila.
As casas estavam apaziguadas pelo fim de mais um dia de trabalho, quando o ruído cavado, dos passos arrojados, repassou paredes e entupiu de temor as almas desprevenidas.
Lembrou-se das caras dos homens que a tinham desfeiteado no meio de estevas e alecrim, como se estivesse a folhear um álbum de fotografias de família . Sabia-lhes os números das portas, melhor do que lhes sabia as feições, e, num porta a porta sem pressas, foi depositando em cada soleira bocados de vingança ainda servida quente.
O amanhecer na vila, foi de trevas e por todo o lado os olhos estalavam de indignação, e as gargantas latejavam de orações.
Os homens que caçavam Catarina, espreitando-a no meio das moitas, calavam a sua culpa. Aquilo era como um sinal de nascença, daqueles que não se podem ocultar do asco dos outros.
Coelhas prenhas esventradas, tingiam de tintas berrantes, os mármores dos portados. Amontoados de peles baças da cor da morte atestavam um a um os artífices do vazio de Catarina.
8
Nunca ninguém a viu. Não havia vivalma que pudesse afirmar que os feitos tinham sido arte sua.
Os homens não mais voltaram aos campos. Catarina não mais voltou à vila.
Diluiu-se nas águas da ribeira, na lama das chuvas, no canto dos pássaros.
O mundo aos poucos convalesceu e as imagens daquela manhã vermelha de Janeiro, foram caindo no regaço das avós que contavam estórias antigas nas noites de Inverno passadas em frente do lume de chão.
Ás vezes uma brisa gélida encana pelas ruelas, e não há quem não procure à sua passagem a presença antiga de um xaile negro a arrastar-se nas calçadas.
Catarina paira no ar, como o cheiro a café acabado de moer na mercearia do largo. Gosta de ouvir sussurrar o seu nome, baixinho, não vá acordar ventanias.
A casa das velhas, onde viveu algemada por regras durante alguns dos seus verdes anos, continua lá, inteira, naquela mesma esquina de sempre, em frente à igreja.
Tem as paredes cheias de musgos e fungos da humidade que emana, o sol, não a aquece, e à sua volta há noite e sombras em pleno Agosto.
" Nas manhãs depois da chuva, há peixes a sair por debaixo da porta da frente, e nas tardes de verão, durante a hora da sesta, diz quem já viu, há dezenas de coelhas paridas a escavar tocas no quintal dos fundos." - conta a avó Morgada de olhos esbugalhados.
Imagem DevianTart
I
Vestidinho de organdi
Sapatilhas de verniz
Laçarotes no cabelo
Uma pinta no nariz
II
Dois brinquinhos de cerejas
Um saiote de veludo
Rodopia com leveza
E ar de quem sabe tudo
III
Chupa chupa colorido
É varinha de condão
Faz magia Pim Pam Pum
Põe os sonhos num balão
IV
Dança, gira, roda, pula
Bailarina de papel
Já cansada vai dormir
Sonhar com bolos de mel
A pedido da verdadeira Pim Pam Pum, com ilustração e fotografia da mesma!
Nela toda a natureza se manifesta de forma exponencial, tudo é grande, poderoso e implacável como uma tempestade de Maio, tudo estremece à sua passagem, a sua presença é irresistível como o sol de Março.
Ela é o sol de Março quando me olha nos olhos e sorri despegada de mágoas, um sol que encandeia todos os sentidos e afaga o coração... e dois passos depois já é nuvem carregada de cinzento prata velha, tão velha como os dias, tão velha como o meu amor por ela, um amor que existia já antes do mundo existir como agora o mundo é...
e a nuvem cinzento prata velha com a rapidez de uma gota de água furtiva, inunda o pátio soalheiro e calmo dos meus dias e reduz a lama o meu sossego..."agora vou ter que limpar, varrer, arrumar e amar de novo"...e não contente com o lamaçal, ela agora semeia remoinhos de vento em cada canto onde se senta a amuar, e depois já não são remoinhos, mas sim um vendaval que faz tombar todas as telhas da minha paciência...e de repente, assim, da tormenta, desponta, assim do meio do caos, outra vez o sorriso quente que ela tem quando sorri!!
Ela voltou para mim, mesmo depois de virar do avesso o meu ser, ela está de volta ao sol....espero que seja o de Março, que é brando e meigo, e não o de Agosto, que queima demais para aquecer.
Espero sempre qualquer coisa, é certo...mas ela, ela só dá se quer e quando quer...
E se ela chora (ainda não foi inventada nenhuma metáfora que possa ser utilizada para explicar como é triste quando ela chora), se ela chora, o meu corpo perde a força, e eu já não sou eu, eu sou ela...
Ela tem os olhos cheios de amor, daquele amor que só se sente quando se tem a idade que ela tem, e esse amor transborda por todos os recantos do seu corpo e torna-se aço quando embate em mim.
Deve ser por tudo isso que eu a amo tanto, deve ser por toda a dor que ela me transmite, que o amor que sinto por ela é tão incondicional, tenho a certeza que é por tudo isto que a amo.