Segunda-feira, 26 de Maio de 2008

Cegueira

 

 

Os olhos cegos de Jacinta moviam-se numa velocidade inquieta.

Buscavam terra firme. Há quanto tempo nadava, naquelas águas fora de pé. Já mal se lembrava de como era sentir a terra macia a ceder ao seu passo.

Uma maleita estranha ainda nos seus verdes anos tinha-a atirado para o nada em que vivia agora.

A principio a dor de perder o mundo, era aplacada pelos cheiros ou pelos toques.

O seu corpo era ainda um pomar de frutas maduras na ânsia da colheita.

Quando ele chegou, com voz mansa e mãos quentes, ela cedeu na árvore.

Depois ele partiu.

Deixou-a despida e fria.

Ele cheirava a tabaco barato, e tinha um hálito que ateava fogueiras  por onde passava.

Jacinta lembrava-se de sentir crescer um rubor dentro de si, que se espalhava como uma peste, quando  o cheiro dele invadia os seus pensamentos.

Aos poucos tudo à sua volta perdeu o aroma. Permanecia apenas um travo a mofo, que era pouco mais que uma corrente de ar.

Era quase como quando chove uma semana de seguida, e se fecham portas e janelas...

Só que ela estava à chuva. E aquele bafio subtil era ela a envelhecer numa inusitada e húmida escuridão.

Partira sem um adeus.

Deixou-a despida, com um buraco cavado fundo no peito, onde ela enterrou os cheiros das coisas.

Estava exausta de nadar fora de pé.

Sentia falta de sonhar.

Pés descalços, correrias, risos, gargalhadas, beijos, mãos, terra molhada, fogueiras...ele.

Já não conseguia ver os sonhos. Era cega, afinal... Ele deixara-a fria e cega.

Encostou a cabeça no espaldar da cadeira de braços, precisava tanto de descansar...ou então de voltar.

A essência de mulher pomar, tinha-se esvaído com o correr dos dias. E os dias tinham deixado de contar desde que a porta se fechara nas costas dele.

Ali, agora, neste instante, só pernoitava uma alma vazia de sonhos, e cega de vida.

O gato pardo, regressado da caçada nocturna, saltou-lhe para o colo.

Jacinta afagou-lhe o pelo farto, num gesto cúmplice, e o bicho retribuiu com um ronronar satisfeito.

Por breves instantes, na sala abafada, um cheiro a tabaco barato adoçou o ar. 

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Segunda-feira, 4 de Fevereiro de 2008

O Eleito II

Ás vezes é difícil , resistir à tentação de usar este espaço como diário.

Já aqui falei, noutras ocasiões, da propensão do meu filho para o desastre, mas certo é que o rapaz não para de me surpreender com a capacidade imaginativa e industriosa que demonstra de cima dos seus 12 anos feitos há tão só um mês e pouco!!!

Na noite de Sábado, estava a a família reunida em casa, cada um ajeitando-se no sofá como podia e conseguia, para ver o Sweeney Todd , o último filme de Tim Burton .

A pequena já dormitava, também no sofá, ao meu lado, e os mais velhos estavam numa excitação para ver o aclamado banho de sangue que o filme prometia.

Eis senão que, passado uma meia hora do inicio do filme, o Exmo Z , anuncia (talvez farto de tanta cantoria e legendas a passarem depressa demais) que se vai deitar, que está com sono, que se levantou muito cedo, que no outro dia tem que ir à missa, que precisa de descansar.

Eu lá lhe disse, então vai meu amor, já passa das 11, e é mesmo o melhor que fazes, deita-te e dorme.

Não tinha passado um minuto desta cena de bocejos e remelas quando, se ouve, como que vindo dos confins da terra (que afinal era da cozinha, logo ali ao lado ) um grito de terror, acompanhado das palavras, ai caraças, agora cortei-me a sério!

Por esta altura, no écran da televisão, o barbeiro enlouquecido já tinha começado a cortar goelas, e havia salpicos de sangue por todo o lado .

Levantei-me de um pulo e pus-me na cozinha em menos de um esfregar de olhos.

O Caríssimo Z , para abrir um papo-seco, ou aquilo que vulgarmente se chama uma carcaça, utilizou a maior faca que havia na cozinha. Não é possível exemplificar, mas imaginem que vão ao talho e pedem 1 kg de bifes. É uma faca dessas que os senhores usam pra cortar os bifes.

Claro que, muito antes de encontrar o pão, o facalhão encontrou o dedo do Dr. Z . Mais precisamente a cabeça do dedo do Eng Z .

Voltemos um pouco atrás. Chego à cozinha e...deparo-me com um cenário, que não vou dizer que fosse Dantesco, que seria um exagero, mas com laivos de filme de terror de quinta categoria.

Salvo as devidas proporçoes, parecia que o Barbeiro tinha saltado da tela e aterrado na minha cozinha!!!

O Mr . Z . tinha sacudido a mão como se fosse um gato morto,  e havia pingas de sangue em toda a cena do crime, paredes, chão, caminho para a casa de banho, sanita, lavatório, etc , etc .

Lá lhe desinfectei o golpe, com muito Betadine , pus um penso e mandei-o para as mantas sem comer!

Voltei à sala, onde a irmã mais pequena continuava entregue ao sono, e a mais velha esperava impávida e serena, que pudesse tirar o filme da pausa.

Cortar cabeças de dedos afinal de contas é coisa pouca.

A propósito, se alguém souber como tirar manchas de sangue da parede, a casa agradece.

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Segunda-feira, 17 de Dezembro de 2007

O Príncipe da Colmeia

Parabéns Zequinha!!!!!

12 Anos!!!

 

Todos por aqui, já conhecem o meu Zeca, e esta é a minha homenagem ao meu rapazinho, que me enche a cabeça de problemas, que me moi o santo dia, que me chateia até aos limites da insanidade e que apesar de tudo.....eu AMO tanto tanto ( e sim! sou uma mãe babada

"Não quero, não quero, não,

ser soldado nem capitão.

Quero um cavalo só meu,

seja baio ou alazão,

sentir o vento na cara,

sentir a rédea na mão.

Não quero, não quero, não

 ser soldado nem capitão.

Não quero muito do mundo:

quero saber-lhe a razão,

sentir-me dono de mim,

ao resto dizer que não.

Não quero, não quero, não,

ser soldado nem capitão."

Eugénio de Andrade

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Quarta-feira, 17 de Outubro de 2007

Acto de Fé

I

Álvaro Guedes era um homem como há poucos. Para ele, a vida era uma coisa séria, que devia ser encarada sem descontracção e com formalidade.

E era tal e qual assim que Álvaro a levava. Todos os dias, se levantava da cama às 6 da manhã em ponto. Saltava ao primeiro toque do relógio despertador, herdado do avô, e ao qual todas as noites, impreterivelmente às 22,30, dava corda religiosamente.

Calçava os chinelos de lã, aos quadrados castanhos e cinzentos, que exactamente às 10,45 da noite anterior como de todas as que a precederam, colocava em posição, no sitio justo por onde sairia da cama pela manhã.

Tomava um duche. Rápido e frio. Sim frio, porque, dizia, a água fria, afasta porcarias e pensamentos pecaminosos das nossas cabeças!

Dizia-o todos os dias, a quem o quisesse ouvir!

A sua devoção à candura da alma, era tão profunda como a sua inflexibilidade sobre o dever de virgindade do corpo.

- O nosso corpo é um templo! - dizia extasiado pelas suas próprias palavras -  um templo do Senhor!!!! E quem somos nós para o profanar?  Somos humildes servos!!! Temos que limpar e alimentar o nosso corpo! Respeitá-lo! E isso basta ao Senhor!!! - uma veia arroxeada crescia no pescoço e alongava-se até à testa, denotando a excitação crescente com que acentuava a sua voz. Podia-se até dizer, que se algum prazer retirava da vida, era sem dúvida a fogosidade quase carnal com que defendia a pureza da dualidade corpo/alma.

Álvaro Guedes tinha 45 anos. Era empregado numa repartição estatal,  conhecido pela sua perseverança, pela sua rectidão, pela sua fé, pela sua vida espartana.

II

Saia do banho e vestia o fato cinzento. Tinha dois. Ambos cinzentos. Completos, e de boa qualidade - Se forem de um bom tyrilene  duram uma vida! E os luxos sobram-nos todos!

Camisa branca, tinha três camisas brancas, impecavelmente engomada. Meias cinzentas de algodão egípcio, e uns sapatos castanhos, de atacadores,  que tinha estreado há já 15 anos, numa excursão a Santiago de Compostela . Aliás a única  extravagância da sua vida, que ainda hoje, apelidava de esbanjamento sujo - Se ao menos tivessem ido em profissão de fé! , mas não!!!! Já não há crentes neste mundo! Todo o caminho cantaram brejeirices, e quando chegaram perderam-se nas lojas a comprar caramelos!!!

 A mesa do pequeno almoço, estava posta como sempre, uma toalha de linho, ainda do enxoval da mãe, duas chávenas de louça antiga, um bule cheio de água quente com cascas de limão, e duas fatias de pão de ontem.

Sentou-se, e olhou para o relógio na parede da cozinha, por cima do velho frigorifico. Marcava as 6:30.  Amália, a irmã de Álvaro, aquecera a água para o chá, acordada pelo barulho estridente do despertador, e voltara logo depois para os lençóis ainda quentes.

Tomava o pequeno almoço sozinho . Como quase todos os dias. Álvaro não era homem de se importar com coisas tão terrenas como ausências ou solidão.

Com a mesma cerimónia de quem se benze na missa de Sexta-Feira Santa, sentou-se à mesa, abençoou a parca refeição, e demorando-se nos gestos, encheu a chávena e barrou com pouca manteiga o pão endurecido. Comeu em silêncio, acompanhado pelo vazio da casa e pelo frio das suas mãos.

III

Amália tinha 50 anos, e vivia naquela casa desde o dia em que a mãe aos gritos a derramara no mundo. Fora um parto difícil , e logo  nas primeiras horas, a recém nascida mostrara ao mundo as suas diferenças .

Como se quisesse prolongar as dores da mãe, Amália, gritou duas semanas seguidas, sem parar. A mãe julgou de enlouquecer, e o pai deitou-se numa cama de aguardente, que lhe queimava as entranhas e o embalava em viagens por terras mudas, de gente sorridente e calada, onde não havia gritos ou choros ou vozes.

O tempo correu, umas vezes mais depressa do que outras, mas a estranheza de carácter de Amália continuou intacta, até ao dia do veredicto final. O diagnóstico médico prendeu-a para sempre a uma esquizofrenia, que fazia dela um ser sem pátria, ou casa, ou família , ou mundo.

Limpava a casa dos dois, duas vezes por dia, fazia almoço, passava a ferro, engomava colarinhos, engraxava sapatos, bordava toalhas, via novelas, mas na realidade nunca ninguém sabia onde ela estava.

IV

Tirou o guardanapo do colo, limpou a boca, dobrou-o com uma destreza matemática, e sem fazer barulho levantou-se, e saiu para a rua.

Cinco minutos antes das sete da manhã, estava já à porta da igreja de Sta . Justa, onde todas as manhãs ouvia a missa em latim, pela voz do decrépito Padre Miguel, que só a muito custo se mantinha de pé para terminar a homilia.

Tomava a hóstia consagrada com um enlevo orgástico,  molhava a ponta dos dedos com água benta, e pela quarta vez desde que tinha saído da cama, benzia-se e saía.

Caminhava a pé até ao serviço. Sempre, todos os dias deste há quase 18 anos. Era um bom emprego, seguro, um ordenado certo ao fim do mês. Tinha sido o seu Padrinho, um conceituado Doutor daquela praça, que lhe tinha arranjado o lugar, e ele, estava-lhe agradecido para a eternidade.

O caminho era mais ou menos o tempo de um Mistério, que ele rezava com fervor, ao mesmo tempo que dava os bons dias a com quem se cruzava.

V

Em 45 anos de vida, passara muitas horas em hospitais e consultórios médicos, primeiro por causa dos pais, depois por causa da irmã.

Ele até hoje, jamais precisara da intervenção da medicina, bastava-lha a mão de Deus, dizia - Muito mais poderosa! É a falta de fé que põe os homens doentes!

Todos o conheciam, e sabiam que se algum assunto lhe acendia o coração e aquecia a voz, era a fé dos homens...ou a falta dela.

Sabia bem, que os mais jovens lá da repartição, lhe chamavam, beato, rato de sacristia, e ás vezes coisas muito piores; mas ele confiava como sempre na justiça Divina, que no seu espírito, comparava sempre a uma espada afiada pronta a cair sobre uma cabeça pecadora.

- Não há nada que se pague melhor do que a semente da lingua! - sentenciava em pensamento, tentando contrariar o sabor doce da vingança que Deus perpétuaria em seu nome.

VI

Ia a casa para almoçar. Só assim podia ficar descansado. Vigiava Amália de perto, sondava a sua disposição diária, e depois de um almoço a dois, numa mudez mais dura que o pão de ontem, regressava ao serviço.

Lançava-se com afinco ao pouco que tinha que fazer, numa repartição pública igual a tantas outras, apinhada de gente com muito pouco para fazer.

Para Álvaro, não havia futilidades a discutir, ou procedimentos a adiar. Trabalhava em cima da linha, cumprindo horários estipulados por ninguém.

Ao bater das cinco da tarde no relógio da torre, começava a arrumar com minúcia. lápis, canetas e papeis.

Sempre sem se dar por ele, levantava-se, chegava com delicadeza a cadeira para a secretária, e saía. Nunca era o primeiro a sair. Não tinha pressa nenhuma.

VII

O caminho de retorno a casa, era sempre mais pesado a esta hora.

Ás vezes relaxava um pouco, desacelerava o passo, e permitia-se olhar os outros, ver como viviam, como falavam, como sorriam.

Mas o devaneio era momentaneo, e o escárnio da leveza de sentimentos dos outros, o quase nojo com que encarava a forma escancarada com que riam alto, como se rissem de Deus, depressa voltavam a carregar o seu semblante de uma inexpressiva incompreensão.

Punha a chave à porta, limpava os pés no tapete da emtrada, e como hábito, levantando a voz, avisava a irmã da sua chegada.

VIII

O jantar decorria no mesmo tom. O acompanhamento era outra vez a mudez das palavras que não se trocavam, e a sobremesa era o silêncio consentido entre os dois.

Ia cedo para o quarto. Nunca depois das nove da noite.

Tinha que rezar o terço, e preparar tudo para a amanhã seguinte.

Ajoelhava-se no marmore frio,  e agulhas de gelo penetravam nos ossos, infringido-lhe uma dor aguda que ele recebia com um sorriso e de olhos cerrados.

Terminada a oração, fechava o oratório e colocava-o com reverência dentro da gaveta da comoda, depois dirigia-se à porta do quarto, mecâncicamente, fechava-a e dava duas voltas à chave. Aquele era o seu reduto. A sua privacidade.

IX

Abriu o garda-fatos de mogno envernizado, despojo da mobilia de núpcias dos pais, e retirou de lá a caixa de cartão forrada a papel de seda azul claro, que guardava desde não se lembrava quando, naquele recôndido lugar, longe dos olhos da irmã, longe dos olhos de Deus...

Abriu-a como quem desfolha um malmequer, devagar, mas ao mesmo tempo com uma ansiedade, que bem conhecia, e que tanto lhe custava amansar.

Ficou ali de olhos vidrados, embevecidos com a luz que vinha de dentro da caixa. As cores berrantes explodiam-lhe o sangue nas suas veias, as texturas de sedas, e crepes, e rendas queimavam-lhe a sua existência, quase não ousava tocar em tais reliquias.

Despiu-se, com a usual paciência e sem pressas. olhou outra vez a caixa, espreitou para dentro e demorou o olhar, os lábio entreabertos, como se quisesse fazer ecoar o prazer que os seus olhos sentiam.

Escolheu umas de um vermelho carmim arrendadas e leves, tão leves como uma oração, tão quentes como a fé que lhe enchia os dias.

Tremeu de raiva pela comparação, e gemeu impotente perante o pecado consumado.

Vestiu-as, depois o pijama, e de regresso à vida, meteu-se na cama, e puxou os lençóis até ao pescoço.

X

Apagou a luz do candeeiro de mesinha de cabeceira, e no escuro, mais só do que nunca, deixou a sua mão viajar. Tocou-as. As calcinhas de renda vermelhas, cobriam-lhe o corpo morto antes sequer de ter vivido.

Sorriu ao sentir o conforto luxuriante do cetim, e adormeceu num acto de fé sem precedentes.

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