I
O som do disparo ecoou pelos campos e cresceu na cabeça dele.
Vasco levou as mãos aos ouvidos, e tapou-os com a força do medo, ao mesmo tempo que cerrava os olhos no timbre de violência .
Deixou amainar vozes e latidos dos cães, deixou o cheiro da pólvora assentar na manhã orvalhada de Março, e ainda a tremer foi abrindo os olhos e afrouxando a pressão das mãos nos ouvidos.
À frente dele, não mais de um metro, metro e meio, estava um javali ensanguentado, o animal debatia-se ainda, num último alento, mas já ferido de morte, esticava-se emitindo grunhidos aflitos e mudos.
O sangue tingia a geada branca matinal, e enchia o ar de um cheiro quente e fétido.
Vasco sentiu a urgência do vómito chegar e caiu de joelhos na terra molhada.
Ficou ali horas...de joelhos, caído no vomitado, e em contemplação do animal morto.
Horas....não. Apenas alguns poucos minutos, que lhe pareceram sem fim.
Queria que os homens não mais se lembrassem dele, que esquecessem o javali morto, que esquecessem que o tinham trazido a ele para esta pantomima de sangue.
-Vasco! - a voz do pai, era mais que o chamado, era uma ordem. A voz do pai era sempre uma ordem.
- Aqui...estou aqui... acertou-lhe pai, o Senhor acertou-lhe, veja!
- Irra que é um grande bicho! Já viste o par de tomates? Olha pra isto rapaz! No dia que tiveres uns deste tamanho és um homem, ahahahah !
Vasco, baixou o olhar.
Não podia dizer ao pai, a compaixão que lhe despertava o animal ainda quente a sangrar, gritar-lhe na cara o quanto odiava aqueles rituais de marcação de território.
Não podia, apenas não podia...
- Anda daí. - o carinho do pai, não ia além destes encontrões. Tinha sido sempre assim. um empurrão aqui, um sopapo acolá. Ainda assim tinha melhor sorte que a mãe - aquele pensamento fez nascer-lhe um nó na garganta. O mesmo nó que sempre lhe calara os gritos nas noites escuras, em que ouvia a mãe chorar e gemer.
Lá foi.
II
Invejava Conceição....invejava-a com tanta força que às vezes a odiava.
Conceição era a irmã mais nova, a preferida do pai, a preferida do mundo. Ela e os seus vestidos de seda, vindos de propósito dos melhores armazéns da cidade grande. Ela e as suas revistas de moda, cheias de fotografias de corpos de raparigas e rapazes jovens e firmes. Tudo em Conceição era delicado, tudo era de vidro fino, até o sorriso dela era frio como o vidro mais fino.
A ela ninguém a obrigava a matar bichos no campo.
Não tinha que provar nada a ninguém, muito menos a ele. Nascera marcada pela perfeição de ser mulher, e isso bastava para a manter numa redoma de cristal caro, onde só podiam penetrar elogios e mimos.
Não levantou os olhos da estrada, enquanto tentava acompanhar as passadas largas do pai até ao monte.
O resto dos homens tinham ido por outro caminho, e ali, além dos galhos e folhas a cederem às pisadas, nada mais se ouvia. Era sempre assim. Aliás era a única coisa confortável entre eles, o silêncio.
O pai de quando em vez, olhava de soslaio por cima do ombro, como que a querer certificar-se de que ele o seguia.
Ele seguia-o. Sempre. Estava castrado desde o dia em que nascera. Estava destinado a segui-lo para todo o sempre. Não lhe fora dada outra opção. E ele também já não tinha força, nem vontade para ter opções na vida.
Era cedo. O sol ainda nem aquecia a manhã e havia uma película branca por cima de árvores e arbustos. Como dizia a avó, "esta noite, a velha andou por aqui a peneirar farinha"....
Nem sabia porque se lembrava destas coisas. As mulheres da vida de Vasco eram a casa dele. Só com elas se sentia pessoa. Menos Conceição...essa não deixava ninguém ser pessoa, ninguém que não ela. Ela e os seus veludos sumptuosos, as suas cambraia frescas, as suas rendas finas...
Ele não podia chegar perto de nada daquilo. Só uma vez...uma vez tinha entrado sorrateiro no quarto das costuras ...tinha-se insinuado por detrás dos cortinados dos grandes armários, e tinha podido sentir a carícia daqueles tecidos na sua pele. O veludo macio como um pêssego no verão, a seda como um corpo despido, só pele... as cambraias finas, bordadas eram um desafio...
Nesses breves momentos, Vasco experimentou o chamamento do corpo, um corpo de homem, fechado num casulo de autoridade imposta.
No resto do tempo nem sabia que tinha um corpo.
III
Não havia muito tempo, talvez até menos de um mês. O pai levara-o a uma casa nas fraldas da vila. Uma mulher gorda e oleosa fechara-o num quarto com uma rapariguita escanzelada e faminta, com duas covas nas faces, dentes ralos e um cabelo escorrido e seco como um fardo de palha no verão.
Fechou a porta com a recomendação cortante - ensina a este desgraçado pra que serve o apetrecho que tem no meio das pernas! - e deu volta à fechadura com uma gargalhada forçada e anormalmente alta.
Ficaram sentados na beira da cama. Calados. Sem se olharem. Sem uma palavra ser dita.
Os ponteiros do relógio deram meia volta e a matrona abriu a porta sem bater.
- Já sabes o que é bom, franganote?, anda lá que estás a precisar de um ponche quente!
E com um encontrão, lá o levou pra fora do quarto escuro. Um encontrão. Parecia que todos tinham tomado o gosto a dar-lhe encontrões.
O pai mostrou os dentes todos quando o viu chegar à sala de espera, encheu o peito e puxou de uma nota das maiores para as mãos da velha gorda.
Regressaram a casa no conforto habitual. O pai nada inquiriu, mas o sorriso na boca fazia Vasco acreditar que ele não suspeitava do que não tinha acontecido entre aquelas quatro paredes de bolor.
Conceição havia de esperar pela hora dela. Conceição havia de viver as horas dela ao ritmo certo da passagem dos dias.
Ela e os seus vestidos de seda....