Os olhos cegos de Jacinta moviam-se numa velocidade inquieta.
Buscavam terra firme. Há quanto tempo nadava, naquelas águas fora de pé. Já mal se lembrava de como era sentir a terra macia a ceder ao seu passo.
Uma maleita estranha ainda nos seus verdes anos tinha-a atirado para o nada em que vivia agora.
A principio a dor de perder o mundo, era aplacada pelos cheiros ou pelos toques.
O seu corpo era ainda um pomar de frutas maduras na ânsia da colheita.
Quando ele chegou, com voz mansa e mãos quentes, ela cedeu na árvore.
Depois ele partiu.
Deixou-a despida e fria.
Ele cheirava a tabaco barato, e tinha um hálito que ateava fogueiras por onde passava.
Jacinta lembrava-se de sentir crescer um rubor dentro de si, que se espalhava como uma peste, quando o cheiro dele invadia os seus pensamentos.
Aos poucos tudo à sua volta perdeu o aroma. Permanecia apenas um travo a mofo, que era pouco mais que uma corrente de ar.
Era quase como quando chove uma semana de seguida, e se fecham portas e janelas...
Só que ela estava à chuva. E aquele bafio subtil era ela a envelhecer numa inusitada e húmida escuridão.
Partira sem um adeus.
Deixou-a despida, com um buraco cavado fundo no peito, onde ela enterrou os cheiros das coisas.
Estava exausta de nadar fora de pé.
Sentia falta de sonhar.
Pés descalços, correrias, risos, gargalhadas, beijos, mãos, terra molhada, fogueiras...ele.
Já não conseguia ver os sonhos. Era cega, afinal... Ele deixara-a fria e cega.
Encostou a cabeça no espaldar da cadeira de braços, precisava tanto de descansar...ou então de voltar.
A essência de mulher pomar, tinha-se esvaído com o correr dos dias. E os dias tinham deixado de contar desde que a porta se fechara nas costas dele.
Ali, agora, neste instante, só pernoitava uma alma vazia de sonhos, e cega de vida.
O gato pardo, regressado da caçada nocturna, saltou-lhe para o colo.
Jacinta afagou-lhe o pelo farto, num gesto cúmplice, e o bicho retribuiu com um ronronar satisfeito.
Por breves instantes, na sala abafada, um cheiro a tabaco barato adoçou o ar.
Já disse o poeta (Vinicius de Moraes) que não há nada mais triste do que um gato morto.........
E é verdade......todos os dias desta semana, nos 9 kms que tenho que repetir 4 vezes, naquele ponto da estrada, tal qual um sinal de trânsito derrubado pelo vento da noite, está um gato de olhos mortos. Um gato preto de olhos mortos.
Olhos, e corpo, que a vida foi-se embora sem despedida prévia, ali mesmo na curva depois do caminho de cabras. Já há 3 dias, e aqueles olhos vazios sempre me cumprimentam, sem expressão nenhuma que não seja o do abandono da alma (sim da alma, porque os gatos têm alma, uma alma muito antiga, mais antiga que eu, mais antiga que o mundo inteiro), e eu olho de soslaio, porque me incomoda a ausência neles.
A pelagem baça, as orelhas ainda afitadas e...os olhos sem olhar de espécie alguma, só uns olhos de vidro assoprados.
Tenho medo daqueles olhos. Não têm dor, nem ódio, nem raiva, nem nada. Minto... só têm nada.´
Era um gato preto, de andar felino, elegante, de certeza que olhava para as cabras, para o pastor e até para o cão malhado com aquele olhar superior que têm os gatos pretos vivos.
E agora, depois da velocidade da curva, aquela logo depois do caminho de cabras, ficou lá, a dormir um sono sossegado, sem sobresaltos, um sono da cor da estrada, baça acinzentada como o rato que perseguia quando a curva o alcançou a ele primeiro.
Coitado, perdeu a corrida, e agora dorme de cansado, o gato preto de olhos mortos.