Quarta-feira, 5 de Dezembro de 2007

Romance de Cordel

Mariazinha levantou-se de supetão, derrubou no seu gesto, o livro de capa castanha que tinha no regaço, e a manta de viagem que lhe cobria os joelhos. O xadrez verde e branco derramou-se no chão, morto pela pressa do impulso.

Correu para a pequena janela da salinha de leitura, que dava para a rua das traseiras da velha casa.

O som metálico da campainha de uma bicicleta a pedais arrancou-a de viagens, e beijos arrebatadores do seu romance de cordel.

Três toques, como era habitual, três toques era a senha para olhar a rua.

Afastou com força as cortinas curtas floridas, e o estampado amarelo torrado encolheu-se todo a um canto da janela, temendo tamanha impetuosidade.

Espreitou , tentou em vão levantar o trinco de ferro da portada, mas a ferrugem acumulada impediu-lhe a vontade. Irritada viu a roda traseira desaparecer na calçada de granito cinzento, que brilhava com a força de um diamante à luz fria do sol de Dezembro.

Baixou os braços, numa fúria contida de desespero e desilusão.

- Agora só amanhã...raio da janela!!! Juro que se não te abrires amanhã, parto-te! Ouviste bem! Parto-te em pedacinhos tão pequenos, que ninguém vai reconhecer neles o vidro de uma janela!

Gritava com a janela. Mas a janela não podia ouvi-la, não podia saber a raiva que crescia na garganta da Mariazinha. Aquelas duas canas que lhe engrossavam o pescoço esganavam-lhe a voz, e tolhiam-lhe a razão.

Voltou para o sofá puído , mas ainda assim de porte nobre, de um veludo adamascado rosa velho, empalidecido pelo dias.

 Agarrou os joelhos com força e permaneceu muito tempo assim, toda dobrada, em cima do cadeirão, como uma almofada decorativa, imóvel, absolutamente imóvel.

Mergulhou numa inércia, que conhecia de outros dias, não se atreveu a levantar a cabeça do conforto das pernas, do calor do abandono, e deixou-se ficar ali, a esvaziar-se aos poucos, da raiva, do desamor, das esperanças de há pouco.

Nos romances de gosto duvidoso, que sorvia de olhos esbugalhados e coração em tempestades tudo era mais fácil, agora, neste preciso momento, ele chegava, jogava a bicicleta com estrondo e descaso no passeio da rua, e arrombava a porta fraca com os seus braços duros e queimados do rigor das estações. Depois em dois passos largos alcançava-a no sofá e levantava-a como uma pena, sem hesitações e com a firmeza de um deus de pedra. Seguiam-se beijos lascivos e trocas molhadas, e acabariam no meio do soalho arrastados por enxurradas de orgasmos...

Abriu os olhos em transe. A salinha continuava ali, na penumbra do estampado amarelo torrado das pequenas cortinas acanhadas, que coavam o tímido entardecer. Ela também. Continuava ali, sozinha , enrolada em si própria, encolhida, o corpo todo em ondas de dor, o peito dormente de mais um dia sem vida.

Apanhou do chão o livro da capa castanha, procurou na amalgama de páginas amarrotadas pela queda, o capitulo que estava a ler quando a campainha a interrompeu. A trama não fazia sentido, e os amores eram pardos, a heroína de cores macilentas e o deus de pedra era apenas pó.

Fechou o livro com força, e como se o quisesse apagar das suas mãos, arremessou-o para bem longe, com o ímpeto de um vento norte.

Sabia bem, que tinha que passar uma noite por cima dela para sentir de novo todo o seu ser domesticado e dócil. O coração debatia-se, algemado pela indiferença, os pulmões ardiam sacudidos por baforadas de areia, o cérebro amortalhado pela certeza do impossível .

- Amanhã...amanhã logo cedo, levanto-me e espero aqui sentada.

Mariazinha adormeceu, embalada em sonhos vazios.

Estava sentada num campo todo relvado de veludo azul noite, alto e farto, atrás de si havia um pomar de macieiras...e as maçãs eram campainhas de bicicleta a pedais, que tocavam sem parar.

Escancarou os olhos num repente, e deixou-se ficar na madrugada do acordar, o olhar fixo no tecto branco, percorreu todos os traços barrocos do centro de gesso esculpido em redor do candeeiro de vidro opaco de um azul leitoso. Analisou cada floreado, cada ponta, cada sequência de ramagens brancas.

-Daqui a pouco...três toques- soltou uma gargalhada, depois outra, e sempre num riso frenético , saiu da cama rodopiando no seu eixo, com um sorriso solto e as mãos rasas de esperança.

O livro de capa castanha, já estava aberto, a manta de viagem tapava os joelhos, e Mariazinha enterrada no velho sofá, mantinha os ouvidos na rua das traseiras.

Ela sabia que não tardava. A hora era aquela, já ouvia o pedalar, o deslizar da corrente oleada, era agora.....três toques!!!

Mariazinha, dum salto, repetiu os movimentos do dia anterior, a janela deixou-se de caprichos, e abriu sem esforço. A rapariga debruçou-se e derramou o sorriso no passeio da rua, mesmo por baixo do parapeito da janela.

O cinzento do granito estava de novo animado pelo brilho de mil estrelas que o sol despejara de manhãzinha, e a bicicleta descia ritmada pela campainha metálica e pelo sorriso franco do ciclista.

No outro lado da rua estava a Clara, encostada à ombreira da porta, como todas as manhãs mal ouvia o sinal do Rui. O Rui, trabalhava na serralharia do beco do Mendes, e todas as manhãs, saia de casa ainda a mastigar o papo-seco com manteiga, saltava para a sua bicicleta e descia a rua ansioso pelo sorriso da namorada, a Clara, era louco por ela!

Todas as manhãs lhe atirava um beijo com a mão, e recebia de volta um sorriso que lhe injectava forças para mais uma jornada de trabalho duro.

Mariazinha recolhia-se. O ciclista nunca reparara nela, nem um bom dia tinham sequer trocado. Ele não imaginava com que ardor uma outra rapariga, que não a sua Clara, sabia de cor a hora, a senha, o som da corrente, os três toques...

Fechou a janelinha pequena, acalmou o coração com carícias e palavras de compreensão, e regressou ao sofá.

 No calor da manta de xadrez verde e branco, deixou-se levar para os braços do seu deus de barro, impresso nas páginas enxovalhadas do romance barato.

 

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