Era uma vez uma casa, uma estória de encantar, desapareceu numa asa, estava no fundo do mar. Nela vivia uma menina, atada com duas correntes, tinha tanto frio ali, até lhe batiam os dentes. O frio era tamanho, tamanha era a brandura, acabou por morder a língua , deitou fora a dentadura!
A pobre da menina, que afinal era princesa, ficou toda desdentada, disso podem ter certeza!
Recusando a sua má sorte, de se ver tão desfeiteada , apanhou dois búzios rosados, para lhe enfeitar a queixada.
Naquela casa tão linda, afogada em água e sal, tinha os dedos todos roxos , e a pele da cor da cal.
Entrava-lhe aquele gelo, pelos buracos dos olhos, se ao menos tivesse levado a sua capa de folhos!Mas só tinha um vestidinho, de cetim, da cor do mar, azul verde, dourado, com peixinhos a nadar.
Encolheu-se num cantinho, que estava raso de mar, mar por cima, mar por baixo, não havia que enganar.
Era uma vez uma casa, de uma princesa encantada, a água estava tão fria, ela morreu congelada.
imagem retirada da net
Ficava ali de olhos esbugalhados, paralisado pela angustia de ter que tantas coisas para fazer.
Do fundo do mar, chegava um ruído surdo que lhe magoava os sentidos e o impelia a cerrar os dentes com quantas forças tinha. Era aquele barulho que fazem os seres enquanto se afogam em sal, um barulho calmo e inquietante, que pronuncia um silêncio sem fim à vista.
E aquele vinil riscado das ondas, uma a seguir à outra, e depois mais outra, todas a suicidarem-se em terra. Perdia sempre uns minutos, a pensar nos desatinos das ondas, queriam morrer porquê? Era cansaço, amor, demência? Morriam degoladas com facas de espuma, e o que restava delas voltava ao mar para assombrar calmarias e aguçar tempestades.
O mar tinha aquela mania de o manter alerta, tinha aquela cruel tentação de lhe meter medo. Mas ali, não havia mar.
Ali, só havia terra, terra vermelha a perder de vista, torrões de açúcar mascavado que cediam debaixo dos pés dos homens, que os castigavam de manhã à noite.
Aquele pó sépia, acre e doce, secava-lhe a boca e insinuava-se pelas narinas, polvilhando-lhe o cérebro de uma canela mulata.
O pó inebriante trazia-lhe sempre a imagem dela. Era o cheiro da canela que lhe abrasava os olhos, e lhe punha pimenta no corpo.
A terra seca, magoava-o sempre por dentro. O pó perdia-lhe sempre o olhar, e cegava-lhe as mãos. Mas ali não havia terra seca, nem pó, nem nada.
Ali só havia a sua angustia, de não saber o que fazer primeiro.
Tinha baralhado as horas do relógio de parede, o calendário amarrotado pela ansiedade, jazia a um canto da sala, a vida girava a uma velocidade que já não era a sua, e ele continuava, ali, estanque, sentado numa cadeira de pinho velho, no meio daquela sala, sem saber o que fazer primeiro. Os olhos esbugalhados, a boca cheia de pó, o desejo afogado em canela, e os pés encharcados em água salgada.
Pensou no destino das ondas, e gostou dele.
Levantou-se pela primeira vez em séculos, e foi buscar uma faca de espuma.
Quando finalmente o sol despejou um jorro de claridade na escuridão da noite, já a rapariga percorria há muito, os caminhos. Calcorreava veredas, investia matagais, cumpria pedaços de chão, como quem morde côdeas de pão duro. Como quem morde a vida por vingança.
- Estava ao alcance da mão...mesmo, mesmo aqui... e agora tenho que acelerar o passo..não posso fraquejar!. Não agora!
Pedras pequenas e finas como dentes de leite, vermelhavam à sua passagem, e o que estava morto e seco, levantava-se de jubilo pelas suas feridas.
- Parava só um bocadinho...se pudesse.....mas não posso...se parar agora..é o fim..e eu não quero que o fim seja isto, assim, no meio do nada, só embalada pelo resfolegar das cobras nestas pedras tristes....
O fim de um caminho, era sempre o começo de outro, e, depois de uma vereda estreita, vinha sempre outra ainda mais estreita, e os espinhos do mato, feriam cada vez mais fundo, as suas pernas, e os dentes de leite no chão, erguiam-se a cada sopro de vento, mais alto, e eram já presas de um qualquer carnívoro no recobro de um parto...e o caminho só cumpria o dia a seguir à noite, e a noite a seguir ao dia, numa sucessão desoladora de sol e de lua.
- Ardem-me já os olhos, e o peito...arde-me tanto o peito...é o desejo que arde que eu sei que é...mas já falta pouco...
Mil noites e mil dias depois, os caminhos acalmaram, as veredas amansaram, o mato descansou, e a rapariga podia até respirar fundo e deixar cair o cansaço de promessas cumpridas....mas o peito ardia ainda e cada vez mais fundo.
É um fogo posto pelo andar desvairado de mil dias e mil noites.
- Podes parar de queimar? Só um bocadinho, pra eu respirar fundo. Agora que cheguei à vida, queres matar-me na fogueira? Fogo cego! Na fogueira já tu me mataste antes, nesses caminhos sem fim!
O rapaz estava lá sentado.
Sentado, como quem espera a paz no mundo.
O rapaz era todo de água, e sorria com um sorriso antigo tingido de azul.
A rapariga correu para ele e o rapaz abriu os braços, os dois aplacaram fogos, e juntos desaguaram no mar.