-ÁMEN!
A palavra ribombou como um trovão em Agosto, na igreja apinhada de gente.
Os risos eram abafados pelo sinal da cruz feito a pressa, prenúncio do fim da missa dominical.
Maria da Anunciação, benzia-se agora em gestos largos e teatrais.
Era impossível deixar de notar a mulher alta e corpulenta que na primeira fileira de bancos, frente ao Santíssimo, todos os dias marcava a sua presença em voz alta e limpa duma maneira que podia mesmo ser considerada arrogante e constrangedora.
Há muito tinha perdido a noção da realidade, para haver exactidão no relato, podemos dizer que o mundo se foi perdendo aos poucos, foi caindo pelo caminho, esvaindo-se pelos buracos dos bolsos. Primeiro a infância, depois a mocidade, os homens novos, os velhos, o pai, o pé-de-meia herdado do pai, os tostões contados na penumbra da casa suja, a dignidade, a razão....as pessoas....ficou sozinha, com Deus.
Já não são muitos os que se lembram de ver chegar a vila, a carroça puxada por uma junta de machos magros e cansados, num fim de tarde de Junho. O homem conduziu as bestas ate ao bebedouro, na praça do mercado, desceu da carroça, mergulhou a cabeça na água imunda, esfregou o rosto com força, e chamou:
- Sãozinha! Acorda. - a voz rude do homem, soou terna - temos que arranjar um telhado, anda lá pequena, a ver se nos "amanhamos" antes do pôr-do-sol.
Diz que vinham do Ribatejo. Diz que o homem, ainda sem ter dobrado os 30, tinha esfaqueado, com a navalha de bolso que trazia consigo, o antigo patrão. O homem guardava gado bravo nas lezírias de sol a sol, levava uma talega de cotim grosso com a bucha, e a saudade da mulher jovem a espreguiçar-se na esteira, sempre a querer mais investidas, mais homem. Ele saía ainda de noite, com o corpo dorido e um nó na garganta.
Diz que um dia, à noitinha, quando voltava para casa, um cabanejo, cedido pelo patrão, nos fundos do estábulo, ouviu uivar uma cadela no silêncio do Março a anoitecer. Apressou o passo, e abriu a porta com o coração aos saltos. A mulher, uma rapariga ainda, de pernas grossas e cabelos vermelhos, contorcia-se na esteira de palha, o patrão na garupa, montava-a com garbo e maestria. Nem o choro gemido da criança no berço ao lado da esteira, chegou para estancar o leito escarlate de gritos mudos e entranhas quentes que corria pelo chão, em fuga.
Diz que puxou a menina do berço e desapareceu junto com ela no sol posto que escurecia a tarde com reflexos púrpuras bebidos no chão daquelas terras.
Diz que viveram de ervas como os bichos, durante anos a fio.
- Sãozinha, anda rapariga – abriu os braços, e a miúda saltou de cima da carroça com confiança. Devia andar pelos 8 anos. Era alta, magra, as mãos e o rosto eram de um branco baço, a fazer adivinhar linhas de um ténue lilás, por baixo da pele fina. Os olhos verdes avaliaram a praça toda em volta. As pessoas que passavam, os animais que bebiam debruçados, os velhos sentados no banco de ferro com a pintura escamada pelos elementos, os gritos de um rapazinho, arrastado pela orelha por uma mulher gorda de bigode... Sãozinha escondeu-se atrás do pai, assustada:
- É aqui que vamos ficar pai? Tens a certeza? - perguntou desconfiada.
O pai percebeu-lhe os receios, e respondeu-lhe com uma gargalhada sonora:
- Ahahah! Aqui mesmo! Bonita praça, não achas? - disse enquanto a levantava pelos braços para a colocar nos ombros.
- Vês? Daí de cima, ainda deve ser mais bonito, não? - a criança escancarou um sorriso seguro.
- Oh sim! Daqui é muito mais bonito! Vamos então procurar uma casa, pai, mas eu vou aqui às cavalitas, não vá aparecer a mulher do bigode!
O homem atou as bestas ao ferro que ali estava para esse propósito. Lançou um olhar intimidante todo em volta, e começou a dirigir-se a taberna que ficava na esquina em frente.
Pai e filha assentaram arraiais na vila. O homem, ainda jovem, rijo e pujante, trabalhava sem descanso, e em poucos meses comprou uma terrinha. A courela tinha um laranjal antigo, com árvores retorcidas e frutos mirrados.
- O que vamos fazer com laranjas secas e azedas, pai?
- Um império! Vamos fazer um império! - sonhou o homem passando-lhe a mão pelos cabelos vermelhos.
Depois a terra floresceu, as árvores tomaram forma, as laranjas adoçaram e arredondaram como barrigas de mulheres grávidas, e o laranjal cresceu, como cresceu a casa do homem, como cresceu a menina.
A rapariga, agora feita mulher, herdara da mãe os cabelos vermelhos, e o fogo que lhe corria nas veias e lhe queimava a pele fresca.
Todas as manhãs, bem cedo, passeava-se pelo laranjal, descalça, colhia uma laranja, arrancava-lhe a casca com os dentes brancos, e depois de uma ou duas dentadas, largava-a como um bagaço.
No tempo da apanha, semeava desejos de feno molhado no peito dos rapazes, e olhares de desdém nos semblantes das mulheres.
Quando as laranjeiras florescem, e a Primavera enfeita os campos, o aroma é tão forte, que tolda os sentidos da gente, era nesses tempos que a rapariga alindava os cabelos de fogo com aquelas flores puras e se deixava amar.
O primeiro foi o Zé Roberto, o encarregado da enxertia, homem bruto, ombros largos, olhos sanguíneos e umas mãos espalmadas, enormes, que espremiam os seios de Saozinha, como laranjas maduras. Levantou-lha a saia até à barriga e tomou-a ali mesmo, sem demoras ou pudores, até um soluço assombrar o corpo e acalmar a espera. A rapariga gostou da tempestade, e vieram outros, vieram tantos que se esquecia dos nomes.
Era um animal dócil e fácil.
Nas noites das campanhas, entre copos de vinho barato a transbordar, e risos de deboche, podia ouvir-se:
- É uma rica égua a Patroazinha!
Depois contavam vantagem, partilhavam gabarolices, faziam apostas sobre quem seria o próximo, e onde e como...
Ela queria todos, mas ninguém a queria de verdade.
O pequeno império das laranjas adoçara o coração outrora frio do pai, e a conta bancária desviava as atenções do homem, de disputas e honras ocas.
Sabia que a rapariga tinha trazido colados à pele os uivos de cadela no cio, que a mãe calara naquela tarde quase noite de Março, sabia que ela desaguava em lagos de suor pelos recantos do laranjal. Sabia-o bem...mas era a sua menina...
Depois, um dia, já a rapariga tinha perdido os 15 anos e o viço de uma juventude vivida às pressas, depois um dia, era Verão, o pai finou-se. Morreu, sentado na espreguiçadeira do alpendre, enquanto afiava na pedra, a pequena navalha de cabo de madrepérola, sua irmã de guerra...
E o que aconteceu entre esse dia e o final da missa dominical, foi uma sucessão vertiginosa de acontecimentos que conduziram a criança esquálida que numa tarde de Junho chegou à vila em cima de um carro de bestas, até à mulher corpulenta de olhar vago e voz firme.
Alguns ainda se lembravam das duas ou três vezes que os agentes da autoridade local a levaram para casa, coberta apenas com uma manta de viagem, por causa dos passeios de bicicleta, pelo centro da vila, completamente nua.
Comentam-se em surdina as orgias regadas com álcool e dinheiro.
Outros ainda, genuinamente mortificados com as voltas da vida, tentam lembrar o momento em que a menina das laranjas ensandeceu de vez...se é que houve um momento, um só momento.
Os miúdos na crueldade própria da infância, atiram-lhe pedrinhas às pernas e largam gargalhadas à sua passagem.
As crianças pequenas, escondem-se atrás das saias das mães assustadas com a visão deste ser estranho de roupagens coloridas, e invariavelmente um sapato diferente para cada pé. Ela era agora a mulher gorda do buço carregado, que a amedrontou no seu primeiro dia na vila...
Quando a fome aperta, bate na porta das senhoras, e pede pão se faz favor, que a educação e até mesmo a altivez, são qualidades que uma menina fina deve ter e manter, ensinara-lhe o pai, há muito tempo, enquanto juntos cavavam o laranjal.
Caminha só, o passo certo, o queixo levantado, imponente na sua loucura. O cabelo vermelho é a moldura perfeita para aquele rosto de olhar ausente e traços fortes.
Vai a rezar pelo caminho. A rezar alto, não seja o caso de Ele a não ouvir...
Já perdeu tanto...e há tanto tempo que ninguém a ouve...
Recusa-se agora perder a fé.
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A noite apanhou-a trancada num medo antigo.
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O vento falava com as madeiras cansadas das janelas da casa, e as respostas mais não eram que lamentos sentidos.
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O Outono andava a rondar-lhe a cama, e os clarões dos relâmpagos que fotografavam as sombras dentro do quarto, eram mais que um presságio.
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Trovões inundaram-lhe os ouvidos e encheram-lhe as mãos de um suor inquieto.
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Havia muito tempo que não se sentia tão sozinha . As noites assim, de fim de Verão, tinham tido nela sempre esse mesmo efeito, o sentimento de ausência...dos outros e dela mesma.
Permitia-se sempre ter medo nessas noites. Podia meter-se debaixo dos lençóis , rezar fervorosamente, fechar portas e janelas, trancar-se por fora, e ver-se assim, como todos os seres vivos à face da terra, com aquela ânsia que lhe acelerava o sangue, e, que por aqueles dias, era a única sensação que lhe dizia que ainda estava viva.
Vivia numa solidão de cinema mudo, tudo o que via, eram lembranças que desfilavam para ela, sempre que as evocava. Desfilavam acenos e sorrisos de despedida, sem palavras, só acenos e sorrisos.
Habituara-se a viver assim. Não poderia viver com outro alguém que não fosse o vazio das paredes da sua casa, e os figurantes que acenavam nas suas memórias.
Lembrava-se sempre da sua 1ª Comunhão...não sabia bem porquê, mas essa sequência passava vezes sem conta à sua frente. Via uma e outra vez, aquela menina pequena e séria demais para os 9 anos, o cabelo preso num rabo-de-cavalo sisudo; a fatiota branca até aos pés atada na cintura por um cordão de seda amarelada pelos dias; e as mãos postas em oração, com um rosário de prata pendurado...
Um enorme altar de crianças risonhas, acenava-lhe um até breve, mas aquela menina, nunca!
Ficava ali, quieta, a olhá-la, e olhava-a com a mesma impavidez e desinteresse de sempre.
Ás vezes reconhecia-se naquela criatura ridicula e infeliz, e chorava com pena dela.
Outras vezes, via-se ainda mais pequena, sentada ao colo da avó, apertada num ramo de cheiros de hortelã e erva luisa, que vinha do cabelo cinzento entrançado num poupo.
A avó era sempre uma memória que a deixava feliz. Acenava-lhe e sorria-lhe, segurando nos braços aquela criança amedrontada. Nessas alturas, quase podia ainda sentir as mãos dela nos seus cabelos, e ouvir as suas palavras sábias, dizendo-lhe que "não era bom, falar no cheiro da terra depois de uma trovoada".
Porquê? Nunca tinha tido a resposta, mas apesar disso, e apesar de os pulmões se encheram daquele cheiro estonteante a terra molhada depois de uma trovoada, e apesar de o seu peito quase explodir de extase, ela nunca o disse, nunca falou desse cheiro. Com medo de quê, não sabia, nunca soube.
Os relâmpagos apagaram-se por fim, e a noite pode cair abraçada àquela chuva, até de manhã.
O vento agora só já sussurava, e as janelas rendiam-se.
Havia já muito tempo que não se sentia tão sozinha .