Quinta-feira, 10 de Julho de 2008

Maria

 

 

Os pés da cadeirinha de madeira, ecoavam ao ritmo da cançoneta de embalar, no chão de tijolo vermelho bem encerado.

O frio cortava os dias a meio.

Era a hora da sesta da mais nova.

Dormia, ali ao seu colo, embalada pela sua voz, e pelo toc toc dos pés da cadeirinha de madeira, ali mesmo, em frente da braseira de carvão ardido.

"Ó papão vai-te embora, de cima desse telhado, deixa dormir a menina um soninho descansado..." a voz era doce, como são as vozes das mães, e a menina dormia sem sobresaltos.

A canção parava a tempos... o sono, tentava-a sem dó nem piedade.

- Maria! Acautela-te! Olha que deixas cair a gaiata dentro da braseira, mulher!

A vizinha, a velha Angela, fazia-lhe companhia nas tardes, fintando a solidão de uma casa sem filhos.

Mas, não. Maria abria os olhos e sorria. Não estava a sonhar. Tinha mesmo a sua menina nos braços. Os mais velhos, estavam na escola, e esta, a seroidinha, como chamavam os mais velhos aos filhos mais novitos, estava na segurança do seu regaço.

Maria sorria.

Não sonhava.

Era tudo verdade. As crianças, a casa, o seu homem, a vida toda.

Ficara longe a infância arrancada a ferros, a mãe viúva no fulgor dos 20 anos, os irmãos descalços de amparo, o orfanato a fingir de familia. A distância dissipava contornos, e ela estava agradecida por isso.

Era tudo dela! A vida, a casa...o amor....

Sorria por dentro, tentando a custo suster a vaidade que irrompia no seu peito. Ele era o rapaz mais bonito da vila. Um forasteiro é certo, ninguém o conhecia, mas as raparigas todas derramavam suspiros aos pés dele, e ele, ele escolheu-a a ela.

Não era a mais bonita, não tinha nada de seu, a não ser a inquietação nos seus olhos castanhos, breve no olhar, mas que permanecia muito para lá do momento. Um olhar líquido, uma torrente de paz.

E esse Inverno desaguou irremediavelmente numa Primavera plácida e morna, que deu lugar a um Verão irrespirável, inundado de suores e anseios de correntes de ar fresco, e por fim um Outono frutado em sopros de nevoas.

O ano deu a volta, uma vez, outra e mais outra...e as voltas ficaram mais curtas, e já quase parecia que Janeiro dava lugar a Agosto e a vida passava na porta, como mais um lá de casa.

Nunca foi exigente nos seus ensejos. Os do custume.....saude, alegria, o pão na mesa, bastava-lhe o essencial, e o sonho de uns sapatos de verniz, ou de um vestido novo, eram enfatizados no silêncio dos seus pensamentos, imaginando ocasiões, alindando dias, e ... ficando guardados,  porque o rapaz precisava de umas calças para o trabalho, ou então eram os livros da escola da mais velha....e não tardava a pequena começava com aquelas exigências das sempre insatisfeitas jovenzinhas imberbes.

Maria eclipsava-se diante da vida que tinha, não porque fosse obrigada, mas porque estava nela ser assim, mais dos outros que de si.

Trazia enjaulada uma corsa dentro do coração que dava couces e pulos, pelas injustiças, pelas coisas bonitas, pelas viagens.

De vez em quando soltava o animal, isso impedia-a de asfixiar, e permitia-lhe colher sempre dos dias o melhor que podia.

E Maria podia muito...podia tanto.

Os filhos cresceram, muniram-se de armas, e fizeram-se à vida. Casaram, tiveram filhos, ficaram longe, às vezes tão perto...

Chocaram de frente muitas vezes, riram às gargalhadas muitas vezes, viraram costas muitas vezes, voltaram em lágrimas muitas vezes, bateram à porta sempre. À procura dela, da mãe Maria. E a porta abria-se incondicionalmente, e esqueciam-se azedumes em volta da mesa, em volta da mãe.

O seu homem, esse continuava ali, firme, a seu lado, sempre embalado pelos olhos castanhos dela.

Foram sempre um só. Orgulhava-se disso. -Já são poucos os que se orgulham de 50 anos juntos, dizia em tom de farsa, que mais não era, que o doce sentido do dever de amar cumprido em pleno.

Viveram felizes até ao fim...sem o para sempre, pelo menos nesta vida.

E agora Maria? Agora onde está a porta para eu bater nos dias de frio...ou de sol?

  

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Original Zumbido por meldevespas às 10:57
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