Os Domingos eram sempre mais calados que os outros dias da semana. Maria Eva sentia-se incapaz de se levantar do sofá. Prostrada, num torpor letárgico que lhe esvaziava os sentidos. Deitou a mão ao maço de cigarros que jazia expectante na mesinha de serviço, ali ao lado. Tirou um, acendeu-o e deixou-se ficar ali a expelir argolas de fumo, e a desfazê-las com o dedo indicador.
É melhor levantar-me, tomar um banho quentinho e ir à minha vida. Pensou.
A sala, estava ainda na penumbra da manhã cinzenta, e a televisão ligada, passava um filme qualquer a preto e branco, num desses canais de cabo sem legendas. A heroína estava a fugir da casa, despedia-se com um último olhar, e fechava a porta atrás de si. Era o que parecia, mas também podia estar apenas a sair para ir visitar uma amiga. De qualquer maneira, não estava a prestar atenção ao filme. Desde que tinha ficado sozinha por morte dos pais, habituara-se a ligar a televisão mal acordava, e nem sequer a desligava quando saia para o trabalho. Assim, no regresso, tinha sempre a sensação de ter alguém à sua espera. A verdade é que nunca ninguém esperara por si. Os pais apenas suportavam a sua presença. Uma filha solteira, e ainda por cima falada, não era o mais desejável naquela aldeola de interior. Nem dada te querem! - dizia o velho Matias, já na cama feita pelos últimos dias de um coração fraco como o carácter que Deus lhe dera e a mesquinhice cimentara.
Cala-te homem! Não digas heresias! Se alguém te ouve falar assim, da tua própria e única filha! Matias calava-se, cerrava os dentes e em silêncio, alimentava com vontade uma raiva surda.
Maria Eva aprendeu a viver com os humores do pai. Desde cedo. Desde aquele dia, perdido nas lembranças de um fim de Verão distante.
Tantas vezes já se não lembrava quantos anos tinha. Tinha-se ficado na contagem pelos quinze anos, e depois deixara as contas esquecidas nos calendários da oficina do Zacarias pendurados a cada Janeiro na parede da cozinha, mesmo ao lado do frigorifico. Se fechasse os olhos por um bocadinho só, podia sentir o suor das noites quentes. Era melhor estar de olhos abertos, pensou ao mesmo tempo que enxotava o passado da sala como uma mosca peganhenta.
A avó Manuela, tomou-a no seu colo, aconchegou-a como um animal que cuida da cria depois de uma tempestade. Afagou-lhe os cabelos, secou-lhe todas as lágrimas, calou-lhe as mágoas e humilhações da rejeição, tapou-a com as suas mãos enormes de mãe duas vezes. Não poucas vezes, a avó repetia-lhe baixinho, quase num sussurro, não te esqueças que carregas a força do teu nome, Maria de mãe do Céu, e Eva a primogénita do mundo dos homens. Acreditou.
O calor do dia, acalmava a sede nas noites calmas. As mãos dadas às escondidas debaixo das cameleiras do Jardim Municipal. Acreditou.
Que o amor era eterno, que o amor vencia tudo, que o amor era inocente. Não tinha duvidas.
Em Agosto, as flores exalam cheiros fortes, e abrem de noite a pensar que é dia, e fazem-se bonitas, e acham-se bonitas.
Maria Eva fez-se flor, e o Verão adoçou-lhe os aromas.
Não devia ter acreditado. Era Verão e as palavras não pesam nada e os sentimentos são leves e fátuos.
A flor é arrancada da terra, sem pudores, e tudo o que poderia ter sido esvai-se com as primeiras águas de Setembro. E as raízes apodrecem na terra num estertor de vergonha.
Matias nunca foi capaz de perdoar à filha o escárnio dos homens nos cafés da avenida. Foi impotente para calar as bocas lascivas que machos como ele debitavam em gestos e sons.
Trinta anos. Se não os tinha, haviam de estar perto. Trinta Invernos.
A mãe Luzia, era uma formiguinha atarefada, cozinhava e limpava e lavava e aspirava, noite e dia e dia e noite, sem metas, sem propósitos, sem força nem querer. Fechava os olhos e cantava uma moda em surdina. Espantava o mau tempo, e nela era sempre Primavera. Maria Eva invejava-a. Na vida, jamais tinha invejado nada. Não depois do Verão mais quente que havia memória. Mas a placidez aparvalhada da mãe, isso sim, invejava.
Apagou o cigarro no cinzeiro de vidro fosco e levantou-se devagar.
Voltou ao quarto, acendeu a luz do candeeiro do toucador, e sentou-se na cadeira em frente. Aquilo era o que restava dela. Um tocador pintado de cor-de-rosa, a fotografia desbotada de um cantor colada com fita adesiva amarelada, no canto superior direito do espelho. Uma caixinha de musica, com uma bailarina em pontas que rodava ao som do Lago dos Cisnes.
Era melhor ir tomar um bom banho. Ontem à noite no caminho de casa, quase pisara um sapo. Havia um sapo no passeio. Um animal nojento, inflado, ponteado de manchas escuras. Desviou o passo mesmo a tempo. A avó Manuela dizia sempre que os sapos eram presságio de chuva.
Não se enganava. A manhã soletrava pés de vento, e Maria Eva sentia-se menos só por causa disso. Era mesmo melhor ir tomar um bom banho.
Passo a passo, memorizava o solfejo gotejado dos beirais, e adivinhava nele uma canção fora de moda.
-ÁMEN!
A palavra ribombou como um trovão em Agosto, na igreja apinhada de gente.
Os risos eram abafados pelo sinal da cruz feito a pressa, prenúncio do fim da missa dominical.
Maria da Anunciação, benzia-se agora em gestos largos e teatrais.
Era impossível deixar de notar a mulher alta e corpulenta que na primeira fileira de bancos, frente ao Santíssimo, todos os dias marcava a sua presença em voz alta e limpa duma maneira que podia mesmo ser considerada arrogante e constrangedora.
Há muito tinha perdido a noção da realidade, para haver exactidão no relato, podemos dizer que o mundo se foi perdendo aos poucos, foi caindo pelo caminho, esvaindo-se pelos buracos dos bolsos. Primeiro a infância, depois a mocidade, os homens novos, os velhos, o pai, o pé-de-meia herdado do pai, os tostões contados na penumbra da casa suja, a dignidade, a razão....as pessoas....ficou sozinha, com Deus.
Já não são muitos os que se lembram de ver chegar a vila, a carroça puxada por uma junta de machos magros e cansados, num fim de tarde de Junho. O homem conduziu as bestas ate ao bebedouro, na praça do mercado, desceu da carroça, mergulhou a cabeça na água imunda, esfregou o rosto com força, e chamou:
- Sãozinha! Acorda. - a voz rude do homem, soou terna - temos que arranjar um telhado, anda lá pequena, a ver se nos "amanhamos" antes do pôr-do-sol.
Diz que vinham do Ribatejo. Diz que o homem, ainda sem ter dobrado os 30, tinha esfaqueado, com a navalha de bolso que trazia consigo, o antigo patrão. O homem guardava gado bravo nas lezírias de sol a sol, levava uma talega de cotim grosso com a bucha, e a saudade da mulher jovem a espreguiçar-se na esteira, sempre a querer mais investidas, mais homem. Ele saía ainda de noite, com o corpo dorido e um nó na garganta.
Diz que um dia, à noitinha, quando voltava para casa, um cabanejo, cedido pelo patrão, nos fundos do estábulo, ouviu uivar uma cadela no silêncio do Março a anoitecer. Apressou o passo, e abriu a porta com o coração aos saltos. A mulher, uma rapariga ainda, de pernas grossas e cabelos vermelhos, contorcia-se na esteira de palha, o patrão na garupa, montava-a com garbo e maestria. Nem o choro gemido da criança no berço ao lado da esteira, chegou para estancar o leito escarlate de gritos mudos e entranhas quentes que corria pelo chão, em fuga.
Diz que puxou a menina do berço e desapareceu junto com ela no sol posto que escurecia a tarde com reflexos púrpuras bebidos no chão daquelas terras.
Diz que viveram de ervas como os bichos, durante anos a fio.
- Sãozinha, anda rapariga – abriu os braços, e a miúda saltou de cima da carroça com confiança. Devia andar pelos 8 anos. Era alta, magra, as mãos e o rosto eram de um branco baço, a fazer adivinhar linhas de um ténue lilás, por baixo da pele fina. Os olhos verdes avaliaram a praça toda em volta. As pessoas que passavam, os animais que bebiam debruçados, os velhos sentados no banco de ferro com a pintura escamada pelos elementos, os gritos de um rapazinho, arrastado pela orelha por uma mulher gorda de bigode... Sãozinha escondeu-se atrás do pai, assustada:
- É aqui que vamos ficar pai? Tens a certeza? - perguntou desconfiada.
O pai percebeu-lhe os receios, e respondeu-lhe com uma gargalhada sonora:
- Ahahah! Aqui mesmo! Bonita praça, não achas? - disse enquanto a levantava pelos braços para a colocar nos ombros.
- Vês? Daí de cima, ainda deve ser mais bonito, não? - a criança escancarou um sorriso seguro.
- Oh sim! Daqui é muito mais bonito! Vamos então procurar uma casa, pai, mas eu vou aqui às cavalitas, não vá aparecer a mulher do bigode!
O homem atou as bestas ao ferro que ali estava para esse propósito. Lançou um olhar intimidante todo em volta, e começou a dirigir-se a taberna que ficava na esquina em frente.
Pai e filha assentaram arraiais na vila. O homem, ainda jovem, rijo e pujante, trabalhava sem descanso, e em poucos meses comprou uma terrinha. A courela tinha um laranjal antigo, com árvores retorcidas e frutos mirrados.
- O que vamos fazer com laranjas secas e azedas, pai?
- Um império! Vamos fazer um império! - sonhou o homem passando-lhe a mão pelos cabelos vermelhos.
Depois a terra floresceu, as árvores tomaram forma, as laranjas adoçaram e arredondaram como barrigas de mulheres grávidas, e o laranjal cresceu, como cresceu a casa do homem, como cresceu a menina.
A rapariga, agora feita mulher, herdara da mãe os cabelos vermelhos, e o fogo que lhe corria nas veias e lhe queimava a pele fresca.
Todas as manhãs, bem cedo, passeava-se pelo laranjal, descalça, colhia uma laranja, arrancava-lhe a casca com os dentes brancos, e depois de uma ou duas dentadas, largava-a como um bagaço.
No tempo da apanha, semeava desejos de feno molhado no peito dos rapazes, e olhares de desdém nos semblantes das mulheres.
Quando as laranjeiras florescem, e a Primavera enfeita os campos, o aroma é tão forte, que tolda os sentidos da gente, era nesses tempos que a rapariga alindava os cabelos de fogo com aquelas flores puras e se deixava amar.
O primeiro foi o Zé Roberto, o encarregado da enxertia, homem bruto, ombros largos, olhos sanguíneos e umas mãos espalmadas, enormes, que espremiam os seios de Saozinha, como laranjas maduras. Levantou-lha a saia até à barriga e tomou-a ali mesmo, sem demoras ou pudores, até um soluço assombrar o corpo e acalmar a espera. A rapariga gostou da tempestade, e vieram outros, vieram tantos que se esquecia dos nomes.
Era um animal dócil e fácil.
Nas noites das campanhas, entre copos de vinho barato a transbordar, e risos de deboche, podia ouvir-se:
- É uma rica égua a Patroazinha!
Depois contavam vantagem, partilhavam gabarolices, faziam apostas sobre quem seria o próximo, e onde e como...
Ela queria todos, mas ninguém a queria de verdade.
O pequeno império das laranjas adoçara o coração outrora frio do pai, e a conta bancária desviava as atenções do homem, de disputas e honras ocas.
Sabia que a rapariga tinha trazido colados à pele os uivos de cadela no cio, que a mãe calara naquela tarde quase noite de Março, sabia que ela desaguava em lagos de suor pelos recantos do laranjal. Sabia-o bem...mas era a sua menina...
Depois, um dia, já a rapariga tinha perdido os 15 anos e o viço de uma juventude vivida às pressas, depois um dia, era Verão, o pai finou-se. Morreu, sentado na espreguiçadeira do alpendre, enquanto afiava na pedra, a pequena navalha de cabo de madrepérola, sua irmã de guerra...
E o que aconteceu entre esse dia e o final da missa dominical, foi uma sucessão vertiginosa de acontecimentos que conduziram a criança esquálida que numa tarde de Junho chegou à vila em cima de um carro de bestas, até à mulher corpulenta de olhar vago e voz firme.
Alguns ainda se lembravam das duas ou três vezes que os agentes da autoridade local a levaram para casa, coberta apenas com uma manta de viagem, por causa dos passeios de bicicleta, pelo centro da vila, completamente nua.
Comentam-se em surdina as orgias regadas com álcool e dinheiro.
Outros ainda, genuinamente mortificados com as voltas da vida, tentam lembrar o momento em que a menina das laranjas ensandeceu de vez...se é que houve um momento, um só momento.
Os miúdos na crueldade própria da infância, atiram-lhe pedrinhas às pernas e largam gargalhadas à sua passagem.
As crianças pequenas, escondem-se atrás das saias das mães assustadas com a visão deste ser estranho de roupagens coloridas, e invariavelmente um sapato diferente para cada pé. Ela era agora a mulher gorda do buço carregado, que a amedrontou no seu primeiro dia na vila...
Quando a fome aperta, bate na porta das senhoras, e pede pão se faz favor, que a educação e até mesmo a altivez, são qualidades que uma menina fina deve ter e manter, ensinara-lhe o pai, há muito tempo, enquanto juntos cavavam o laranjal.
Caminha só, o passo certo, o queixo levantado, imponente na sua loucura. O cabelo vermelho é a moldura perfeita para aquele rosto de olhar ausente e traços fortes.
Vai a rezar pelo caminho. A rezar alto, não seja o caso de Ele a não ouvir...
Já perdeu tanto...e há tanto tempo que ninguém a ouve...
Recusa-se agora perder a fé.