Quarta-feira, 3 de Novembro de 2010

Porque sim

 

 

 

 

Ficava aqui a falar dela, horas a fio. Dela ou do que me lembro dela.

O tempo encarrega-se de retocar as memórias, editar as imagens que fazemos das coisas e das pessoas. Agora, assim, ao longe, tudo me parece mais belo. Notam-se os remendos aqui e ali, numa ou outra passagem, ou em algum momento que se revela na escuridão das noites mal dormidas. A verdade, é que já não há noites mal dormidas, agora que penso nisso, atinge-me em cheio, a seco até, atrevo-me a dizer, a certeza do sono profundo e conciliador que me vem acontecendo.

Horas a fio, se quiser. Fora parte isso da cor, e dos retoques, está tudo claro como o dia de hoje, aqui, e aqui – apontou para a cabeça com o dedo indicador, e depois, pausando as palavras, com a mão aberta tocou o peito.

Era cheia de vidas. Assim, mesmo, no plural! Vidas. Ela era muitas. Ria-se do nada, brandia gargalhadas alto e bom som, escoando nela toda a alegria da terra. - Descansou as palavras num meio sorriso – Parece que estou a vê-la... ria alto, a boca perfeita abria-se sem pudores, e jogava a cabeça para trás num espicaçar constante. Os cabelos negros tomavam conta de toda a moldura da terra, e rasavam os sentidos de perfumes. - Falava entre silêncios e cambiantes poéticos – Ria-se de tudo, e de todos... se era bonita? Era bonita sim. Não que fosse uma estampa, dessas das revistas e do cinema, não, nada disso. Tinha lá os seus trunfos, se calhar era um bocadito...original. É a palavra que melhor a define. Os olhos deveriam ser menos afastados, os lábios mais finos, a silhueta mais delgada... – soltou uma gargalhada – era o que ela carregava dentro dela, ou sei lá onde, era isso que era bonito. Era esse não sei o quê, que ela transportada num esconderijo só dela, que provocava aquela vertigem à sua passagem. Também há quem diga que era...única... não gosto desse epíteto, Única! - Escarneceu - Estaria a condenar as pedras do caminho a nunca mais serem pisadas daquela forma. Não era única, não tinha esse direito.

Eu avisei, horas a fio a desfiá-la, a tecê-la...sem me cansar – atirava um olhar atulhado de vigor de outras épocas – mas antes que perca o fio à meada, sim porque a minha boca e o meu cérebro, andam cada vez mais por estradas desavindas. E isto...isto é a foz e a nascente, o derradeiro lugar. Talvez, não ainda, mas ela é o meu derradeiro lugar.

Dizia eu que ela era muitas a um tempo só. Quando chorava, e se ela chorava Santo Deus.... - As mãos impacientavam-se de sal. Estancou. Mudo – chorava a cântaros, e nos dias de chuva, aqueles dias cinzentos em que a tristeza é um estado de alma, nesses dias vidrados pelas janelas embaciadas, ela deixava de ser e escorria pelas paredes numa humidade de dar dó – uma sombra tombou em ameaça nos olhos fundos – era assim quando chovia, ou quando ouvia outros prantos que não o seu. O contágio era súbito e fatal.

Justiça lhe seja feita, tão depressa desaguava na dor, como renascia em fogos. Ela era também o fogo...como diz? Se ela era tudo? Tudo...mais que tudo.

Punha rubores onde pousava os olhos, e deixava rastos de labaredas por onde passava as mãos. Aquela mulher tinha o corpo em ferida aberta, do lume que o queimava, ardia devagarinho em lugares onde o recato aconselhava esquecimento. Se soubessem – podia quase ver-se o caramelo aquecido pelo desejo, escorregar-lhe pelos cantos da boca, num torpor de lava – se ao menos pudessem ter visto, como ela se entregava, mansa como uma cadela de colo, submissa e terna como um carneiro na Páscoa,.. cavalgava-a por montes e vales, banhados os dois em albufeiras de suor. Cada galope no dorso dela, era um passo para o abismo...ela tinha o abismo nos olhos e na ponta dos dedos com que me tocava inteiro... – as mãos branqueavam, apertadas uma na outra, e os olhos, esses perdiam-se na luz sépia da lembrança.

Porquê? Tardava a pergunta...porquê...Cheguei a perguntar a mim próprio. Nunca tive uma resposta. Melhor, nunca houve uma resposta. O sítio dela era em mim, percebe? Agora pergunto eu, percebe? Em mim...mas não fui compreendido, os abraços desatavam-se, ela deslizava pelo meu amor, fugia-me... não havia saída. Podia existir sem ela, mas nunca fora dela. Entende?

Então lamento...não sei dizer de outra maneira.

Como? Estava a dormir. Ela estava a dormir. Parecia uma criança ainda com a alma transparente. Sentei-me na beira da cama, toquei-lhe o peito destemido, subi pelo colo, até ao pescoço de garça, de graça... - Sorriu triste – detive-me por ali, senti a macieza daquela pele adamascada, apertei um pouco, só um pouco, mas firme. Os seios por fim calaram, ainda altaneiros, no entanto ausentes. Respirei fundo, inspirei as réstias de desafios e por fim, já com ela a correr-me nas veias, levantei-me e sai, em paz, completamente em paz.

 

 

originalmente postado neste blog em 12 de Agosto de 2009

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Quarta-feira, 12 de Agosto de 2009

Porque sim

 

 

Ficava aqui a falar dela, horas a fio. Dela ou do que me lembro dela.

O tempo encarrega-se de retocar as memórias, editar as imagens que fazemos das coisas e das pessoas. Agora, assim, ao longe, tudo me parece mais belo. Notam-se os remendos aqui e ali, numa ou outra passagem, ou em algum momento que se revela na escuridão das noites mal dormidas. A verdade, é que já não há noites mal dormidas, agora que penso nisso, atinge-me em cheio, a seco até, atrevo-me a dizer, a certeza do sono profundo e conciliador que me vem acontecendo.

Horas a fio, se quiser. Fora parte isso da cor, e dos retoques, está tudo claro como o dia de hoje, aqui, e aqui - apontou para a cabeça com o dedo indicador, e depois, pausando as palavras, com a mão aberta tocou o peito.

Era cheia de vidas. Assim, mesmo, no plural! Vidas. Ela era muitas. Ria-se do nada, brandia gargalhadas alto e bom som, escoando nela toda a alegria da terra. - descansou as palavras num meio sorriso - Parece que estou a vê-la... ria alto, a boca perfeita abria-se sem pudores, e jogava a cabeça para trás num espicaçar constante. Os cabelos negros tomavam conta de toda a moldura da terra, e rasavam os sentidos de perfumes. - falava entre silêncios e cambiantes poéticos - Ria-se de tudo, e de todos... se era bonita? Era bonita sim. Não que fosse uma estampa, dessas das revistas e do cinema, não, nada disso. Tinha lá os seus trunfos, se calhar era um bocadito...original. É a palavra que melhor a define. Os olhos deveriam ser menos afastados, os lábios mais finos, a silhueta mais delgada... - soltou uma gargalhada - era o que ela carregava dentro dela, ou sei lá onde, era isso que era bonito. Era esse não sei o quê, que ela transportada num esconderijo só dela, que provocava aquela vertigem à sua passagem.

 Também há quem diga que era...única... não gosto desse epíteto, Única! - escarneceuEstaria a condenar as pedras do caminho a nunca mais serem pisadas daquela forma. Não era única, não tinha esse direito.

Eu avisei, horas a fio a desfiá-la, a tecê-la...sem me cansar - atirava um olhar atulhado de vigor de outras épocas - mas antes que perca o fio à meada, sim porque a minha boca e o meu cérebro, andam cada vez mais por estradas desavindas. E isto...isto é a foz e a nascente, o derradeiro lugar. Talvez, não ainda, mas ela é o meu derradeiro lugar.

Dizia eu que ela era muitas a um tempo só. Quando chorava, e se ela chorava Santo Deus.... - as mãos impacientavam-se de sal. Estancou. Mudo -... chorava a cântaros, e nos dias de chuva, aqueles dias cinzentos em que a tristeza é um estado de alma, nesses dias vidrados pelas janelas embaciadas, ela deixava de ser e escorria pelas paredes numa humidade de dar dó - uma sombra tombou em ameaça nos olhos fundos - era assim quando chovia, ou quando ouvia outros prantos que não o seu. O contágio era súbito e fatal.

Justiça lhe seja feita, tão depressa desaguava na dor, como renascia em fogos. Ela era também o fogo...como diz? Se ela era tudo? Tudo...mais que tudo.

Punha rubores onde pousava os olhos, e deixava rastos de labaredas por onde passava as mãos. Aquela mulher tinha o corpo em ferida aberta,  do lume que o queimava, ardia devagarinho em lugares onde o recato aconselhava esquecimento. Se soubessem - podia quase ver-se o caramelo aquecido pelo desejo, escorregar-lhe pelos cantos da boca, num torpor de lava - se ao menos pudessem ter visto, como ela se entregava, mansa como uma cadela de colo, submissa e terna como um carneiro na Páscoa,.. cavalgava-a por montes e vales, banhados os dois em albufeiras de suor. Cada galope no dorso dela, era um passo para o abismo...ela tinha o abismo nos olhos e na ponta dos dedos com que me tocava inteiro... - as mãos branqueavam, apertadas uma na outra, e os olhos, esses perdiam-se na luz sépia da lembrança.

Porquê? Tardava a pergunta...porquê...Cheguei a perguntar a mim próprio. Nunca tive uma resposta, melhor, nunca houve uma resposta.

O sitio dela era em mim, percebe? Agora pergunto eu, percebe? Em mim...mas não fui compreendido, os abraços desatavam-se, ela deslizava pelo meu amor, fugia-me... não havia saída. Podia existir sem ela, mas nunca fora dela. Entende?

Então lamento...não sei dizer de outra maneira.

Como? Estava a dormir. Ela estava a dormir. Parecia uma criança ainda com a alma transparente. Sentei-me na beira da cama, toquei-lhe o peito destemido, subi pelo colo, até ao pescoço de garça, de graça... - sorriu triste - detive-me por ali, senti a macieza daquela pele adamascada, apertei um pouco, só um pouco, mas firme.  Os seios por fim calaram, ainda altaneiros, no entanto ausentes.

Respirei fundo, inspirei as réstias de desafios e por fim, já com ela a correr-me nas veias, levantei-me e saí, em paz, completamente em paz.

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Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009

Sem Formolidades

 

 

 

 

Jogou-lhe as mãos à volta do pescoço. Num suspiro gemido disse-lhe ao ouvido:

- o nosso amor é eterno!

ele deixou-se rir:

- não, o nosso amor é etéreo... deixemo-nos de eternidades que só a palavra me devolve um cheiro velho, a velhos e compressas de formol, o som cruel dos carrinhos de soro lavado a morfina a dedilhar corredores de mármore num passo arrastado sem fim......

o nosso amor está acima de tudo isso, está longe do envelhecimento da espécie, e próximo da permutação do ser, que se lixe a eternidade!

- ...m ..mas eu só queria dizer, que o nosso amor é para sempre....

- esquece o para sempre! esquece! - exasperou-se - para sempre são bocas cheias de terra, entendes? para sempre são corpos cheios de algodão...se te amar para sempre... acabamos mortos. Já pensaste nisso?

Agora o queixo tremia-lhe. As lágrimas ameaçavam transbordar, e transformar aquele fim de tarde, num dilúvio:

- Só pensei... que me amavas...

- E amo! Amo-te agora, hoje, aqui.

 

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Terça-feira, 19 de Agosto de 2008

Do amor incondicional....

 

"Pois é... pois é..... caro Ulisses..... queria, e digo-o com sinceridade, ter melhores notícias para si......"

O espaçamento velado com que debitava as palavras, deixava antever a tragédia da circunstância.

Ulisses cerrou os punhos por baixo da mesa, engoliu um travo de ar fechado e acre, e quase a medo, procurou os olhos do seu interlocutor.

".....pois é.... meu caro.....tem que ser corajoso, e pensar sempre que não está sozinho neste mundo... e além disso....."

"Ora por favor!!! - Ulisses estava a perder o chão - deixe-se de rodeios Baltazar!!!! Conheço-o não é de hoje! Se não fosse grave o que tem preso na garganta, não me tinha sequer chamado... sabe bem que coragem é coisa que não me falta..."

"É a sua mulher Ulisses....você...ela...."

" Eu sabia..." - foi mais um rugido que uma frase articulada - " continue!" - e agora era uma ordem dada com uma frieza que gelou as dobradiças da porta entreaberta, e pulverizou uma geada fininha no compartimento acanhado.

Uma tontura derrubou-lhe a vontade,   o filme do fim antecipado alagou de luz as lembranças desbotadas de toda uma existência.

Não tinha sido a mais perfeita das companheiras.

Os 10 anos de casamento tinham sido intercalados por interregnos de incertezas, desamores, outros amores e bastas de todas as espécies.

Era no entanto uma mulher apaixonada... não o podia negar. Jamais voltava as costas ao chamamento dum macho...

Ulisses gostava dela assim mesmo, desculpava-lhe os deslizes, amparava-lhe as quedas, macerava as pequenas vergonhas sozinho, calava injúrias e engolia olhares apiedados.

-É um pobre diabo nas mãos dela - diziam as vozes num coro celestial e eterno, que lhe embalava os sentidos há já quase 10 anos.

Mas Ulisses tinha por ela sentimentos que todos os outros pareciam não entender...

Nunca lhe tinha passado pela cabeça desfazer os santos laços do sacramento que tomara com as duas mão abertas, e tinha sempre presentes as palavras sábias do seu avô, que por altura do primeiro fogo de palha da sua amada, lhe disse: - Conforma-te rapaz...e cala-te bem calado. Vais fazer o quê? Trocá-la por outra? Esta já tu sabes como é.

Ulisses calara. Sempre. O amor doía-lhe tanto.....

E agora?

Já não sabia se queria continuar ali a ouvir o que Baltazar tinha pra lhe dizer.

Sempre preferira a ignorância.

Eram tão novos. Mal ou bem tinham tanto pra viver.

Queria voltar pra casa, abraçá-la e dizer-lhe que a amava e que estaria sempre ali como um muro de betão, forte e audaz a protegê-la de todo o mal.

Levantou-se deixando para trás a cadeira tombada num estrondo. Sentia os ouvidos a zumbir, a boca cheia de terra, e o coração a ganir como um cão sem dono.

"Não! Não quero ouvir...se é sobre ela não quero ouvir! Não importa, mais nada Baltazar, ouviu?! Se ela morre, eu dou um tiro nos miolos em cima do cadáver dela! Por isso cale-se agora! Não quero saber, nunca quis saber nada.... agora muito menos......" - caiu sentado no chão, a cabeça pendurada sobre o peito, o rosto escondido pelas mãos em concha, o choro calado do hábito.

" Ulisses, também não é caso para isso homem de Deus!

 A sua mulher pôs-lhe os cornos! É isso... pronto... agora já disse! "

A geada destilada pelo olhar de Ulisses há poucos minutos, dissipou-se num hálito quente, e o silêncio durou o tempo de se erguer do chão, sempre a fitar, incrédulo, um expectante e assustado Baltazar.

" Então é isso!?" - o outro acenava paternalmente - "Então é isso!!??"

Sempre com a mesma pergunta, Ulisses saiu para a rua a correr como um galgo no cio.

Tinha que a beijar, tinha que a avisar que afinal iam mesmo ser felizes para sempre!

 

imagem by deviantart 

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música: Perfídia - Nat King Cole
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Segunda-feira, 14 de Janeiro de 2008

Pertencer

Sentia cada músculo das suas pernas. A subida era íngreme, e pedalar debaixo daquela chuva miudinha e pesada era ainda mais difícil .

Tinha enfiado o impermeável azul escuro, com  riscas amarelo fluorescente, e saíra para a rua sem se preocupar nem um segundo, com o facto das calças do fato de treino irem ficar ensopadas nos primeiros 50 metros da etapa.

Saía sempre à mesma hora, um pouco antes das 7 da manhã.

Ver o sol nascer à sua frente, era um espectáculo que se recusava perder.

Hoje a manhã estava arisca para andar de bicicleta. Soprava um vento forte, e a chuva parecia milhares de agulhas a baterem-lhe na cara. Mal conseguia manter os olhos abertos, mas ao mesmo tempo sentia-se mais viva que nunca.

Àquela hora havia ainda pouco movimento neste tipo de estradas, secundárias. Um tractor aqui e ali, a assinalar a sua marcha lenta com a luz do pirilampo, a carrinha do padeiro, que já ia na segunda volta a distribuir pelas aldeias da vizinhança, o autocarro que levava as crianças das redondezas até às escolas da vila, e pouco mais.

Tinha escolhido, uma aldeia perdida no sul do país, para fugir a uma vida de correrias, de metas por objectivos, de solidão consentida pela religião do dinheiro e da carreira.

Pareciam palavras vãs, mas pelo menos para ela tinham sido motivos mais que válidos para a fuga.

Fuga. Podia chamar-lhe assim. Aliás não podia ser de outra forma.

O apartamento mobilado, a quota no escritório, o companheiro de cama. Partira sem aviso.

O que era ontem, hoje deixara de ser.

Tinha finalmente apanhado a curva da encosta. Agora  tinha uns bons 2 km de recta, poderia dar descanso à pernas. O dia estava a clarear, e a chuva a enfraquecer. O vento porém soprava cada vez mais impiedoso.

A temperatura descera bastante durante a noite, apesar da chuva. Tinha as pontas dos dedos geladas, e por momentos odiou-se por ser tão distraída e não ter levado umas luvas.

Tirou as mãos do guiador, esfregou-as uma na outra e colocou-as em concha junto à boca, de modo a soprar-lhe uma baforada de ar quente.

Caramba! Estava mesmo um gelo. Sentia os pulmões picarem, e o coração bater a um ritmo acelerado. Tudo aquilo era a vida dela, a vida nela, a vida que ela na cidade grande não tinha conseguido descobrir dentro do seu ser.

Começavam a ver-se pequenas abertas no céu. Aqui e ali, rasgos de um azul eléctrico apareciam do nada e prateavam os riscos deixados pelos aviões.

Junto aos troncos das árvores permanecia ainda uma névoa ténue e húmida , que mesmo à luz do dia desenhava contornos esquivos e indecifráveis por entre os ramos.

Pedalava com quanta força tinha, para afastar da cabeça as contas que de vez em quando ainda deitava à vida. Sentia a pele da cara a arder. Os lábios, era certo , iriam estalar, ao mínimo gesto.

Nunca se lembrava de passar o creme. Era um creme caro. Tinha-o trazido da outra vida. Sabia que era por isso que relutava em usa-lo.

Levantou a mão para acenar a um pastor que conhecia dos seus passeios matinais, e abriu um sorriso e um amistoso bom dia. Sentiu de imediato o sabor quente e doce do seu próprio sangue. Já sabia! Devia ter posto o batom do cieiro, ou a porcaria do creme. O lábio estalou, e agora ardia mais ainda.

Era sempre efusiva e simpática para os habitantes dali. Já todos a conheciam,  e não se podia queixar de ser mal aceite, nem nada parecido.

Mas também não a olhavam como um dos seus pares . Era uma forasteira. Com usos e costumes muito diferentes das gentes dali.

Aquilo da bicicleta....Os calções curtos pra correr... Os olhos pintados...

Por vezes mais que uma forasteira, olhavam-na como uma alienígena . Isso divertia-a, mas também a incomodava. Sentia-se num limbo. Não era da cidade. Mas também não era dali. Não se encaixava em lugar nenhum. Questionava-se se não seria um pouco assim, com toda a gente?

Sabia bem que não.

 Aquelas pessoas eram daquele lugar. Tinham raízes ali, e olhavam de viés e com estranheza as suas atitudes.

O vento estava incansável, mas o sol aparecia a tempos, a descoberto das nuvens de um cinza chumbo carregado, que ameaçavam o dilúvio ainda antes da hora de almoço. Estava um daqueles dias de muitas caras, como algumas pessoas, chorava e sorria, conforme a vontade do vento, e lá ia consumindo as horas e as forças dela na pedaleira.

Tinha chegado à estrada nacional. Agora era fazer o caminho de regresso, mais 8 kms , e com sorte antes da chuva estava abrigada em casa.

Pelo menos hoje não tinha nada que fazer. Não havia compromissos, horas marcadas, pessoas à espera, decisões pendentes. Nada. Só a casa vazia à sua espera.

O dinheiro estava a dar as últimas, e tinha que ser célere em arranjar uma ocupação rentável naquele fim de mundo. Engraçado como sempre que falava de trabalho, não conseguia evitar referir-se ao seu refugio no campo, como "o fim do mundo"...

Se tinha saudades do que tinha ficado lá atrás? Soltou um suspiro e empenhou-se em pedalar, como se o tempo se estivesse a extinguir agora, neste mesmo instante.

Na berma da estrada, as vinhas, com as suas hastes  vermelhas, ainda despidas de parra, despertavam para a vida, para um novo ano de caudais abundantes. As amoreiras, na curva do monte, essas estavam tal como ela... sorriu, e num gemido sentiu o lábio estalar de novo. Estavam nuas. Vivas, é certo , mas num abandono e solidão de fazer doer o coração. Até os ninhos, lá no alto, no meio dos ramos estavam vazios. Ela também estava vazia.

Uma pega fez um voo rasante mesmo à sua frente. Um rato, ou outro bicharoco qualquer, de certeza !

O sol já mal se via, e as nuvens tinham tomado conta dos céus. Um autentico motim. Ainda faltavam mais de 2km , e já estava arrependida da extravagância deste passeio. Sentiu falta do escritório, com aquecimento central, e colaboradores à sua disposição o dia todo. O cheiro do café quente, a chuva a bater nos vidros duplos das janelas, as árvores lá fora a vergarem-se à força do vento!

Pedalou sem descansar. Não se permitiu olhar nada que não fosse o fim da estrada. Ainda não tinha tido o desprazer de apanhar com uma tempestade daquele calibre em cima de si! E não ia ser hoje!

Tinha recomeçado a chover. Mas não era aquela chuva miudinha da madrugada. Eram gotas grossas e cheias, vindas propositadamente para a castigar. Que raio lhe tinha passado pela cabeça para sair num dia assim! O vento era de tal ordem, que tinha agora dificuldade em equilibrar-se em cima da bicicleta.

Na boca misturava-se o sabor da chuva insonsa com o doce do sangue húmido nos lábios gretados.

Gotas de suor escorriam-lhe nas fontes, ou seria só chuva?

E o que era aquele sabor salgado?

Não! Não podia estar a chorar agora! Ela raramente chorava.

Pedalou, enraivada com o momento de fraqueza. Não tardou a ver o telhado avermelhado da casinha que tinha alugado. Era ainda fora da aldeia, tinha preferido assim. Prezava muito a sua privacidade. Tinha tido casos, paixões, desvarios, mas jamais tinha baixado a guarda.

Ela era una. Um circulo. Um forte.

Jogou a bicicleta contra a parede debaixo do alpendre e largou o impermeável, no chão.

Meteu a chave na porta, e entrou, deixando poças de água à sua entrada.

Descalçou os ténis e mandou-os porta fora.

Despiu-se pela sala, a caminho da casa de banho. Tomou um banho quente e rápido, vestiu um pijama, e foi para a cozinha.

Preparou um chá, e enquanto esperava a água ferver, perdeu-se na chuva que continuava a fustigar o dia.

Estava sozinha . O silêncio dentro de casa era tão grande, que teve vontade de tapar os ouvidos. Mas não o fez, claro! Era uma estupidez, pensou, abanando a cabeça.

Sentou-se, sem nunca tirar os olhos lá de fora.

Talvez fosse a chuva, ou o frio, ou o chá quente, mas deu consigo a pensar como seria ser de alguém? 

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