Abril chegou morno como fermento, fazendo crescer os dias. As horas de sol prolongavam as vozes de homens e mulheres pelos campos. Havia ainda muito que fazer antes de a Pascoa chegar e o tempo corria a sete pés. Mais quinze dias, e seria Sexta-Feira Santa, nem pensar em mexer na terra, no dia da morte do Senhor. Os trabalhadores espalhavam-se pela vinha como carreiros de formigas, a trabalhar até ao sol-posto, numa cadência ritmada pelas vozes, pelo cante e pela solidão do silencio nas planícies dolentes.
Jacinto andava no meio deles, ensimesmado. Tímido no trato, e parco de palavras, Jacinto era um homem corpulento e grosseiro, num corpo que não sentia como sendo o seu. A pele curtida pelas soalheiras de Verões a fio passados apenas à sombra da sua própria miséria, uns olhos pequenos e tristes confinados à rudeza daquele rosto feio. O nariz grande tinha uma úlcera crónica na ponta redonda, uma vermelhidão causada pela inclemência dos elementos e pela evidente ausência de pedigree.
As mãos, rudes, manuseavam as vides, com uma sabedoria ancestral, sem olhar sequer, era um trabalho que o libertava, apesar de todas as correntes. Podia deixar fugir o pensamento, por onde lhe apetecesse, que ali nos confins da solidão, ninguém se daria conta. As costas curvadas por força da posição das videiras, realçavam o traço mais revelador de toda aquela anatomia desarmoniosa...umas ancas largas de matrona emolduravam um par de nádegas pesadas. Ele tinha-se acostumado ao escárnio dos outros - Há muito tempo, desde que era ainda quase uma criança, que tinha aceitado o facto de estar enclausurado naquele corpo estranho. Tinha uma alma delicada, um outro corpo, mais bonito, debaixo daquela pele áspera...
Uma vez por mês, sempre aos Sábados de manhã, deixava o campo para trás, e rumava à cidade mais próxima.
A cabeleireira já não o estranhava. Cumprimentava-o com um carinho oco e falso e encaminhava-o para uma das cadeiras de napa azul clara, desbotadas e antiquadas.
Tudo ali exalava a bafio e falta de classe.
Esticava-lhe o cabelo ralo, cortava, tingia-lhe madeixas de um amarelo oxigenado que o fazia parecer uma actriz travestida num filme decadente do final dos anos 30.
Ficava sentado de frente para um espelho grande demais, castigador, inclemente, enquanto a Madame (como gostava de ser chamada) lhe dava o toque final com uma escova cheia de cabelos velhos, ao mesmo tempo que debitava numa voz demasiado aguda para ser real, que ninguém fazia mises à brasileira como ela.
Ás vezes, poucas vezes, enchia-se de coragem e subia de um sopro os 22 degraus inclinados de uma casa sombria na zona mais antiga da cidade, uma pensão de má fama, atarracada e suja, com um barzinho no 1º andar, onde homens cansados saciavam corpos ausentes e gestos reprimidos. Pedia uma bebida barata, e forte, que engolia de um trago, e despido das vergonhas diurnas arrastava um companheiro de fome para um dos quartos acanhados do andar. Nos lençóis imundos, ensopados em suores e paixões paridas à socapa, despejavam os corpos em carne viva de tantas e tantas provações
Saia daquela casinha decrépita, limpo, leve, novo.
Na aldeia, todos o conheciam como o Jacintinho, e, não obstante a sua existência peculiar ,tinham aprendido a repspeitá-lo de alguma forma - não virava as costas ao trabalho, e isso era de louvar.
No recato velado da casa onde vivia com a irmã viúva, bordava a ponto de cruz, pelas noite dentro, à luz vaga da manga de um candeeiro a petróleo O corredor de acesso aos quartos, estava povoado de cães de pelo comprido bordados em pano cru, alindados com laços de cetim aplicados à laia de coleira, com pontos de uma delicadeza sem par.
Num canto do quarto, um cima de uma pequena mesa de abas, tinha um gira-discos antigo, e num cesto de vime, mesmo ao lado, uma quantidade considerável de discos de vinil. Vozes femininas, que de frente para o espelho do guarda-fatos, imitava num play back-bizarro.
No Domingo de Passos, acordara mais tarde que o normal, a irmã, de buço cerrado e semblante vazio, estava a guardar a loiça do jantar do dia anterior.
- Só agora!? Estava a ver que hoje pegavas o dia com a noite! Anda, ajuda a por a mesa, que temos que nos despachar para a procissão.
Jacinto estendeu a toalha branca bordada de malmequeres amarelos - tinha-lhe dado um trabalhão, mas estava um deleite - pensava ele com satisfação embevecido nas flores brilhantes. Depois da mesa preparada. Varreu o canto da cozinha. Agora já era de dia. Todas as noites, sacudia a toalha da mesa do jantar para o canto da cozinha. Parece que estava a ouvir a voz da finada mãe - Oh rapaz, de noite não se sacode a toalha para a rua! Estas a deitar à noite o pão da tua casa! - e ele ainda hoje acatava todas as ordens da sua mãe...
Depois do almoço, vestiu-se, imaculado, como todos os Domingos, ajeitou o penteado puxando um tufo escasso de cabelo para a testa, na tentativa frustrada de esconder as entradas que lhe sulcavam o escalpe. Perfumou-se em demasia, como era habitual e saiu para a rua, as ancas cheias a marcar o compasso.
A tarde ameaçava chuva, e o céu estava carregado de farripas roxas de nuvens - já mexeram no Senhor dos Passos...ele não gosta....assim que lhe mexem, é chuva certa... - dizia para si mesmo no caminho para a Igreja.
A procissão estava a sair. A banda a tocar, os homens das congregações religiosas enfiados dentro capas acetinadas de um púrpura profundo. O queimador de incenso a balançar na mão de um acólito, impregnava o ar e os sentidos de um cheiro quente e transcendente, e todos os paroquianos tomavam os seus lugares no cortejo.
- Que triste - pensou - engalanarem-se todos, só para mostrar o sofrimento do Senhor carregado com a cruz....
Os rufos dos tambores da filarmónica começaram a fazer-se ouvir, e o desfile arrancou em marcha lenta.
Jacinto ía ficando para trás consciente da sua própria cruz, da sua nudez disfarçada, dos olhares cravados na sua nuca, onde o cabelo arranjado ondulava com a força da laca, sentia-se a desistir, apetecia-lhe voltar para casa, esconder-se do resto do mundo, no seu quarto perfumado de saquinhos de alfazema bordados em cambraia, ou fugir para a cidade e estancar o sangue com uma garrafa de aguardente e a caridade de um outro qualquer.
Apetecia-lhe sair daquele corpo feio, daquela alma atormentada.... se calhar até morrer...
Parou de repente. Fechou os olhos por um momento. Engoliu, outra vez (mais uma vez) a vergonha que apascentava dentro de si...
as pessoas mais atrasadas, encalhavam nele, parado no meio da rua, cego e ausente...
por fim recomeçou a andar, um passo, a seguir outro e mais outro ... olhou para a frente, um olhar quase firme, quase um desafio.
Era Domingo de Passos, pelo menos por hoje também ele carregaria a sua cruz na frente de todos.
I
O som do disparo ecoou pelos campos e cresceu na cabeça dele.
Vasco levou as mãos aos ouvidos, e tapou-os com a força do medo, ao mesmo tempo que cerrava os olhos no timbre de violência .
Deixou amainar vozes e latidos dos cães, deixou o cheiro da pólvora assentar na manhã orvalhada de Março, e ainda a tremer foi abrindo os olhos e afrouxando a pressão das mãos nos ouvidos.
À frente dele, não mais de um metro, metro e meio, estava um javali ensanguentado, o animal debatia-se ainda, num último alento, mas já ferido de morte, esticava-se emitindo grunhidos aflitos e mudos.
O sangue tingia a geada branca matinal, e enchia o ar de um cheiro quente e fétido.
Vasco sentiu a urgência do vómito chegar e caiu de joelhos na terra molhada.
Ficou ali horas...de joelhos, caído no vomitado, e em contemplação do animal morto.
Horas....não. Apenas alguns poucos minutos, que lhe pareceram sem fim.
Queria que os homens não mais se lembrassem dele, que esquecessem o javali morto, que esquecessem que o tinham trazido a ele para esta pantomima de sangue.
-Vasco! - a voz do pai, era mais que o chamado, era uma ordem. A voz do pai era sempre uma ordem.
- Aqui...estou aqui... acertou-lhe pai, o Senhor acertou-lhe, veja!
- Irra que é um grande bicho! Já viste o par de tomates? Olha pra isto rapaz! No dia que tiveres uns deste tamanho és um homem, ahahahah !
Vasco, baixou o olhar.
Não podia dizer ao pai, a compaixão que lhe despertava o animal ainda quente a sangrar, gritar-lhe na cara o quanto odiava aqueles rituais de marcação de território.
Não podia, apenas não podia...
- Anda daí. - o carinho do pai, não ia além destes encontrões. Tinha sido sempre assim. um empurrão aqui, um sopapo acolá. Ainda assim tinha melhor sorte que a mãe - aquele pensamento fez nascer-lhe um nó na garganta. O mesmo nó que sempre lhe calara os gritos nas noites escuras, em que ouvia a mãe chorar e gemer.
Lá foi.
II
Invejava Conceição....invejava-a com tanta força que às vezes a odiava.
Conceição era a irmã mais nova, a preferida do pai, a preferida do mundo. Ela e os seus vestidos de seda, vindos de propósito dos melhores armazéns da cidade grande. Ela e as suas revistas de moda, cheias de fotografias de corpos de raparigas e rapazes jovens e firmes. Tudo em Conceição era delicado, tudo era de vidro fino, até o sorriso dela era frio como o vidro mais fino.
A ela ninguém a obrigava a matar bichos no campo.
Não tinha que provar nada a ninguém, muito menos a ele. Nascera marcada pela perfeição de ser mulher, e isso bastava para a manter numa redoma de cristal caro, onde só podiam penetrar elogios e mimos.
Não levantou os olhos da estrada, enquanto tentava acompanhar as passadas largas do pai até ao monte.
O resto dos homens tinham ido por outro caminho, e ali, além dos galhos e folhas a cederem às pisadas, nada mais se ouvia. Era sempre assim. Aliás era a única coisa confortável entre eles, o silêncio.
O pai de quando em vez, olhava de soslaio por cima do ombro, como que a querer certificar-se de que ele o seguia.
Ele seguia-o. Sempre. Estava castrado desde o dia em que nascera. Estava destinado a segui-lo para todo o sempre. Não lhe fora dada outra opção. E ele também já não tinha força, nem vontade para ter opções na vida.
Era cedo. O sol ainda nem aquecia a manhã e havia uma película branca por cima de árvores e arbustos. Como dizia a avó, "esta noite, a velha andou por aqui a peneirar farinha"....
Nem sabia porque se lembrava destas coisas. As mulheres da vida de Vasco eram a casa dele. Só com elas se sentia pessoa. Menos Conceição...essa não deixava ninguém ser pessoa, ninguém que não ela. Ela e os seus veludos sumptuosos, as suas cambraia frescas, as suas rendas finas...
Ele não podia chegar perto de nada daquilo. Só uma vez...uma vez tinha entrado sorrateiro no quarto das costuras ...tinha-se insinuado por detrás dos cortinados dos grandes armários, e tinha podido sentir a carícia daqueles tecidos na sua pele. O veludo macio como um pêssego no verão, a seda como um corpo despido, só pele... as cambraias finas, bordadas eram um desafio...
Nesses breves momentos, Vasco experimentou o chamamento do corpo, um corpo de homem, fechado num casulo de autoridade imposta.
No resto do tempo nem sabia que tinha um corpo.
III
Não havia muito tempo, talvez até menos de um mês. O pai levara-o a uma casa nas fraldas da vila. Uma mulher gorda e oleosa fechara-o num quarto com uma rapariguita escanzelada e faminta, com duas covas nas faces, dentes ralos e um cabelo escorrido e seco como um fardo de palha no verão.
Fechou a porta com a recomendação cortante - ensina a este desgraçado pra que serve o apetrecho que tem no meio das pernas! - e deu volta à fechadura com uma gargalhada forçada e anormalmente alta.
Ficaram sentados na beira da cama. Calados. Sem se olharem. Sem uma palavra ser dita.
Os ponteiros do relógio deram meia volta e a matrona abriu a porta sem bater.
- Já sabes o que é bom, franganote?, anda lá que estás a precisar de um ponche quente!
E com um encontrão, lá o levou pra fora do quarto escuro. Um encontrão. Parecia que todos tinham tomado o gosto a dar-lhe encontrões.
O pai mostrou os dentes todos quando o viu chegar à sala de espera, encheu o peito e puxou de uma nota das maiores para as mãos da velha gorda.
Regressaram a casa no conforto habitual. O pai nada inquiriu, mas o sorriso na boca fazia Vasco acreditar que ele não suspeitava do que não tinha acontecido entre aquelas quatro paredes de bolor.
Conceição havia de esperar pela hora dela. Conceição havia de viver as horas dela ao ritmo certo da passagem dos dias.
Ela e os seus vestidos de seda....
Os 9 km que me separam do "forte", são deveras inspiradores, ou será mais correcto dizer transpiradores ...... pois..na verdade não sei.....
Não sei explicar assim, por letras se é o caminho que me inspira, ou, pelo contrário se é a desolação do olhar que me impele a transpirar a saudade que todos os dias engulo em seco e me faz aqui um nó na garganta, mesmo aqui a meio, de tal modo que acho que se vê no espelho retrovisor. Vê-se mesmo sem eu olhar pra lá.
Até parece!!!!
O grande lago!!! As terras do grande lago!!!!
"vai mudar tudo!!!! A terra, a aragem, a vida da gente, até os olhos vão deixar de estar secos, vai tudo verdejar"
....não se trata exactamente da terra prometida, onde correria Leite e Mel, mas andava lá perto.
E a alma da gente? Alguém, em algum momento se lembrou que este mundo de água ia arrastar pró fundo um bocado da alma da gente?
Onde ficaram as searas queimadas pelos Verões impiedosos? Esses campos cobertos de sol e suor? Onde ficaram os olhos da gente? A paz da aragem das tardes de estio de Agosto? O mar áspero de espigas gordas de pão acabado de fazer?
Está tudo afogado, morto, asfixiado pela água presa que encheu a alma da gente e a levou até ao paredão...
O verde enche agora as mãos dos homens, enche-as de vinhas carregadas da cachos lustrosos que aquecem almas novas.
E as almas não mais cantam, não mais se entregam aos rituais lânguidos dos campos em brasa. Agora o verde é luxuriante, e semeou ganância no coração das gentes.
O verde que é vida, o verde que é ar, é também rios de vinho a correr em direcção aos olhos esbugalhados e insaciáveis dos homens.
Agora as uvas enchem os bolsos, e os corpos engordam de felicidade......mas sem alma...
a alma está lá no fundo do grande lago a desfiar raízes de árvores velhas decepadas ......