Terça-feira, 6 de Abril de 2010

No limite

 

 

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Quase podia jurar ter ouvido bater na porta do quintal. Se não fosse o adiantado da hora, aquele gato vadio tinha-a ludibriado na certa. Em casa já todos dormiam. O dia de trabalho tinha acabado os corpos, e ali nada mais havia do que corpos. No quarto pequeno dormia a filha mais velha, com a criança. Esta semana o homem com quem se deitava a tempos, não tinha aparecido, por isso a criança podia ficar na cama com a mãe. O homem mandava dinheiro. Era pontual e constante. Ele podia não parecer, mas o vale de correio chegava todos os dias 10 de cada mês, à ordem de Olívia Pinto. Dinheiro nunca era demais. A criança, de seis meses tinha uma cor bacenta desde o dia que chegara ao mundo. Uma tez amarelada, profunda como uma despedida. Custava muita farmácia, uma cria daquelas. Unguentos, e vapores, soluções salinas, xaropes, pomadas... Maldito gato! Não era mulher de temores, mas estes animais, assim, no meio da noite, a escalar telhados, a largar miados de angustias passadas, davam-lhe arrepios na base do pescoço, e traziam-lhe presságios de antigamente. Tinha gravada na pele, fundo, em carne viva, a noite em que despejara no mundo o filho do meio. Dizia o povo "filho do meio, filho do coração". Até hoje nunca o sentira assim. Era seu, defendia-o com as unhas de fora, e os dentes e as forças todas do seu corpo miúdo se assim fosse preciso, mas o coração...isso era outra coisa. Aquele rapaz, meio rapaz. Aquele ser mal acabado, de órbitas perdidas e boca aberta. Eternamente aberta, como um fim do mundo ali mesmo à porta, um abismo de dor para uma mãe olhar. Escolhera não olhar. Vestia-o, asseava-o, alimentava-o, como fazia com os animais do quintal. A horas, sempre. Mas senti-lo no coração... não tinha sido capaz de tanto. O pai desse filho, passara-lhe pelo corpo com a rapidez de uma trovoada em Agosto. Tirara-lhe o juízo mesmo no meio da seara no mês da monda, e nas urgências que estas coisas dos corpos destilam, deixara-se emprenhar, outra vez. Era o terceiro filho, era o terceiro pai. Nascera calado, roxo como a Páscoa do Senhor. O Dr. Basílio, que morava no largo, cantara a desgraça como o galo de madrugada, " Júlia, o rapaz está vivo, mas era melhor que não estivesse." e deu-lhe aquele despojo de mais uma guerra para os braços. Olhou o médico, teve raiva dele. A criança roxa, continuava calada, os olhos escancarados e a boca descaída num esgar, com um fio de baba que fiou num fuso durante toda a sua vida depois dessa noite. Trinta anos. Quando se lembrava ainda tinha dores na boca do corpo, como se estivesse outra vez a parir aquela criatura. Como se o trouxesse ao mundo de cada vez que se lembrava. Também ele dormia já, calmo, quieto, no divã do quartinho dos arrumos. Dormia e sonhava uns sonhos vazios como a cabeça dele, pensava ela engolindo um gemido de ressentimento. Se calhar é mais feliz que todos aqui dentro destas paredes frias. Tem o cérebro do tamanho de um feijão seco, ri-se de tudo e de nada, e come que nem uma besta, o desgraçado! Olhou a porta entreaberta do quarto, nada, só aquela respiração pesada, estava gordo o anormal. Odiava-o, odiava-se por não o conseguir amar. Como se pode amar um ser assim! Os outros filhos não eram modelos de inteligência, ela sabia-o bem. A mais velha era uma oferecida, que só pensava em abrir as pernas. Cerrou os olhos e meneou a cabeça, também já fui assim. O segundo, também rapaz, desaparecera no mundo. Devia estar agora com trinta e dois, trinta e três anos. Quem sabe se estaria vivo ou morto. Aos 15 anos tivera a ousadia de lhe levantar a mão, a ela, à mãe que o pusera nesta vida. Disse-lhe que saísse e não mais voltasse. Pela primeira vez na vida ele obedeceu. A quarta era uma rapariga mansa. Acanhada, fechada dentro de um corpo bafiento e cheio de banhas. Tinha uns olhos azuis claros, sempre marejados de água, e um rancor por todos os seres viventes, que extravasava em rezas e mezinhas nos encontros de uma seita religiosa de origem suspeita, todos os Sábados antes do pôr-do-sol. Estava perto dos trinta e nunca lhe conhecera homem. Também, não havia vivalma que quisesse deitar-se com aquele monte de esterco, pensou enojada. A mais novita tinha em doçura o que sobejava à gorda em amargura. Era burra que nem uma porta, não tinha ilusões, mas em compensação era bonita, fresca, descarada. Sabia todos os caminhos da vida apesar da pouca idade. Já a tinha tido depois dos quarenta, quando do corpo restavam cinzas e o fogo tinha consumido todas as vontades. Os outros filhos esgatanhavam-se em casa por uma côdea de pão, e aquele homem, caixeiro viajante, vendedor de panos e louças, tinha a carteira cheia de dinheiro, e era generoso com a hospitalidade dos prazeres que ela lhe proporcionava. Um dia deixou de aparecer. Pelo correio chegou um embrulho. Uma toalha de linho, com umas pontas de renda envelhecidas pelo tempo, uma nota de cem escudos bem dobrada e um bocado de papel com a palavra "obrigado". Nesse dia engoliu uma caixa de comprimidos e acordou no hospital a vomitar. Queria ter ficado a dormir para sempre. Doíam-lhe os músculos todos do corpo. Era Abril, e não tardava começava o restolhar das andorinhas lá fora. O pai da mais velha, o único que lhe oferecera guarida e papel assinado, fora também ele o primeiro da sua vida. Eram pouco mais que duas crianças. Apaixonaram-se. Soltou uma gargalhada tímida, perante este pensamento. Apaixonaram-se. Três anos depois, com os dois filhos ainda de colo, encontrou-a no meio da seara, com outro homem a arfar em cima dela. À noite, em casa, chamou-lhe puta enquanto a atirava à parede presa pelos cabelos. Quando por fim ele dormiu, agarrou nas crianças, e fugiu dali sem olhar para trás. Não era mulher de temores. Nem Deus, nem o Demónio a assustavam, quanto mais um homem, um simples homem. Mal sabia ele que esta não fora a primeira traição, que o rapazote ranhoso a quem chamava filho, era o resultado de meia hora de cio com o irmão dele que viera passar os Santos lá a casa. Não se arrependia. Nunca se arrependera. Os cornos ficam bem a um homem bruto. Tantos anos depois ainda se vangloriava disso, ainda o conseguia odiar, aquele bastardo que lhe tinha batido um dia, uma vez. Ia amanhecer. Não pregara olho. Primeiro o gato, depois as horas e a vida e as lembranças todas agarradas a ela como pragas. Ia amanhecer, e tinha que voltar para o trabalho. Tinha o corpo dorido de viver, e ainda que quisesse não podia parar. A casa começava a mexer-se. A criança chorava baixinho, a mãe enfiava-lhe a mama na boca para o calar só mais uns minutos. A gorda ladainhava em surdina, de modo a incomodar toda a gente, a mais nova dormia com um sorriso na boca, a janela do quarto aberta de par em par, denunciava a saída brusca do amante. Ela levantou-se da cadeira para responder ao chamado do rapaz no quarto dos arrumos. "Mãeee", entrou e olhou-o, sorria para ela de braços abertos. Teve tanta vontade de o amar. Mas estava cansada. Passara a noite em claro, passara a vida em claro. "Anda, levanta-te vou-te fazer o pequeno almoço".

 

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Domingo, 6 de Dezembro de 2009

Arroz Doce (conto de Natal)

 

 

 

 Toda a manhã tinha sido a mesma coisa. aquele barulho arrastado dos troncos de madeira a serem despejados em plena praça da vila. A  cada 24 de Dezembro a cena repetia-se. Camiões e tractores fretados pelo Município carregavam raízes de árvores moribundas, e troncos de madeira de azinho para a fogueira que iria aquecer a noite da consoada, e iluminar o nascimento do Menino. O lume era  alimentado até ao dia de Reis, e logo depois extinto até ao Natal seguinte.

Depois daqueles dias de inverno, aquecidos pelo brasido campal, ficava no ar um cheiro acre a despedida, e um pó escuro que se demorava até ao Entrudo.

Maria Rita, assistia a tudo por dentro da janela de sacada do 1º andar, lugar privilegiado com vista para a Praça. Tinha puxado a cadeira para mais perto da janela, assim, podia ir assistindo ao desenrolar do dia lá fora, enquanto bordava um delicado pano de organdi, quase transparente, com motivos de Natal. Pequenos pássaros vermelhos com raminhos de gil barbeiro polvilhavam o paninho de tabuleiro.  Aos pés tinha um pequeno aquecedor eléctrico de duas resistências. A lareira estava acesa desde cedo. A inclemência gélida de Dezembro no Alentejo, não se compadecia com corpos descuidados e almas errantes.

Desviara a cortina de tafetá beije, não demasiado, apenas o suficiente para poder espreitar de quando a quando o que se passava lá em baixo.

Quando o marido ainda era vivo, a casa tinha outro brilho, ele trazia um pinheirinho pequeno, o mais bonito que conseguisse, do pinhal do Eng. Francisco Gouveia, e um caixote de ripas de madeira cheio de musgo alto e aveludado ainda a cheirar a terra molhada. Então ela, com as suas mãos meticulosas e pacientes, compunha um cenário Natalício perfeito. O presépio com estradinhas empedradas e campos nevados de farinha de trigo, rios de papel de prata ondulante e lagos de pedaços de espelho improvisados para o efeito. O pinheiro ficava no canto da sala, ao lado da lareira de granito. Lacinhos de cetim carmim, e bolas de vidro pintadas de ouro, cobriam de luz a pequena árvore, encimada com uma estrela de papel brilhante que se abria como um harmónio. Naqueles tempos não havia estas grinaldas de luzes que agora via lá fora a iluminar ruas e montras, mas nunca faltava a lamparina de azeite para alumiar o Menino no frio do musgo escuro.

Tinha sido um homem bom, pensou com um aceno de cabeça, contava mais quinze anos que ela, e quando o pai chegou a casa com ele e o anunciou como o seu futuro marido, foi com verdadeiro temor que acatou a vontade paterna. Afinal de contas ela era pouco mais que uma menina, e ele um homem feito. Enquanto foi pequena, a mãe, e a avó, não pouparam esforços a fazer dela uma mulher de verdade. Sabia fazer na perfeição os bordados mais complicados e as rendas mais finas, tocava piano com distinção e tinha lido todos os clássicos. A criadagem encarregava-se das tarefas domésticas. Ainda hoje era assim. Já não havia tanta gente lá em casa, no entanto, não saberia como viver sem a companhia segura da Catarina. Era a cozinheira, já andava nos setenta e estava com a família desde os trinta anos, quando enviuvara. Era muda. Movia-se como uma sombra, a deslizar e ainda hoje não deixava que nada faltasse à Menina. Também vivia na casa a Vitorina, mulher robusta de tronco grosso e feições rústicas, era pouco mais nova que Catarina, e não sendo muda, pouco ou nada falava. Fazia todo o tipo de limpezas e trabalhos pesados com o afinco da expiação de uma culpa.
Maria Rita tinha cinquenta anos. Nasceu já os pais tinham passado
quarenta, e perdido todas as esperanças de ter filhos. Foi encarada como um milagre e criada com a devoção própria de uma santa.
Foi perdendo toda a família pelo caminho manso da vida. Os pais envoltos em lençóis de penicilina e xaropes de mel e cânfora,  depois o marido, traído por um coração grande demais. Quedou-se ali, no casarão do 1º andar da Rua Diogo Cão, nº 1, mesmo defronte para a praça central da vila.
No tempo do marido a casa tinha mais cor. Em especial nesta quadra. Joaquim Augusto era um homem simples, que fazia tudo para deixar a esposa feliz...desde que a vontade dele fosse soberana.

Era um homem do campo, criado no meio dos alavões, por mulheres rudes e cansadas.
No casarão era tudo novo. As mobílias, as roupas de cama, os serviços de chá e respectivos adereços, e a pele de Maria Rita, a pele de pêssego da mulher com quem tinha casado.
Habituara-se desde o primeiro momento do enlace a resignar-se aos caprichos do marido. Na verdade nem achava nada de mais nisso! As saias por baixo do joelho, as blusas abotoadas até acima, as mangas compridas, as cores neutras, de preferência escuras.
Estava tudo bem para ela. Sempre esteve. A verdade é que nunca cultivara grandes amizades, para além das Senhoras do Apostolado, que uma vez por mês traziam a Sagrada Família e ficavam para o lanche. Estudara em casa, com uma perceptora que viveu com eles até Maria Rita completar quinze anos. Foi o mais próximo que alguma vez teve de um contacto feminino mais intimo. Mas ainda assim, havia sempre um muro difícil de transpor, e as perguntas ficaram  por fazer.

Já tinha perdido o conto aos anos que não descia daquele 1º andar, a não ser claro, para as visitas de rotina ao Dr. Virgílio, cujo consultório ficava apenas duas portas abaixo da sua.
As três mulheres compartilhavam o casarão num silêncio consentido, uma porque era muda, as outras porque emudeceram. Parou de bordar por um segundo, massajando os dedos dormentes de tantas horas de empreitada. O cheiro a fumo imiscuía-se já pelas fechaduras e frestas de portas e janelas, e de alguma maneira depositou em Maria Rita um pouco do espírito da quadra. Já anoitecia, as luzes nas árvores e na fachada da Igreja, acenderam-se aos poucos, e a praça ficou finalmente vazia de gente. Era hora do jantar. Catarina já fizera soar a sineta de porcelana francesa. Maria Rita guardou o paninho, desligou o aquecedor, e dirigiu-se pra a sala de jantar, anexa, onde a mesa a esperava, imaculadamente posta. Bacalhau cozido com couve-galega a fumegar na travessa, um prato de vidro fino repleto de sonhos de abóbora com calda de açúcar, e outro com arroz doce, cremoso, Feliz Natal, escrito a pó de canela.
Agradeceu a Catarina e sentou-se. Jantou sozinha como sempre. Não tinham tido filhos. Aceitara esse facto, com a mesma calma com aceitara tudo na sua vida. Sabia que nas casas da vila, havia famílias inteiras à volta de mesas, crianças a correr, brinquedos embrulhados em papéis coloridos...Não percebia porque logo hoje se fora lembrar destas coisas. Logo hoje tinha vontade de maldizer a esterilidade do seu ventre, logo hoje pensava com alguma raiva nos sapatos pesados que trazia nos pés. Era noite da consoada, e não fora o cheiro a fumo lá de fora, e as luzes que piscavam na rua, ninguém entrando ali saberia.

Comeu devagar, sem apetite. Experimentou um pouco de tudo sem vontade, apenas para não magoar a cozinheira. Ligou a televisão, apanhou um xaile de caxemira antracite de cima do cadeirão, e sentou-se colocando-o pelos ombros.
 

Porquê logo hoje este nada lhe estava a crescer no estômago? Levou a mão à cabeça. Acariciou o cabelo atado  num rabo de cavalo antigo. Num gesto brusco, puxou o elástico e sacudiu a cabeça. Aquele nada devia ser a ânsia de liberdade, porque foi o gosto que lhe veio à boca.

Lá fora começava a ouvir-se um corrupio de vozes. Um burburinho de gente agasalhada, dirigia-se para a Igreja. A Missa do Galo não tardava. Havia casais de mãos dadas, outros abraçados. Não se lembrava de ter saído de mãos dadas com o seu Joaquim para algum lugar. Nem para a Missa do Galo. Saiam sempre meia hora antes para apanhar o melhor banco, ele de capote e botas caneleiras à frente, ela atrás num passinho curto de reverência. Nunca me deu a mão! Agora parecia-lhe a maior das ofensas.

 E se ela...e se ela fosse à Missa? Podia sentar-se ao lado das outras pessoas, sentir-lhes o cheiro, o calor. Esquecera-se de como era o toque de alguém. Um aperto de mão, um abraço, um simples toque de ombros. 

Correu para o quarto, tirou do guarda-fatos o casaco de abafar, um cachecol de tricot rosa velho que tinha feito há anos e lhe fora confiscado pelo marido, e correu porta fora.

Desceu as escadas de um fôlego, e achou-se no meio da praça. As labaredas laranjas do lume, as pessoas, as luzes. Sorriu, apertou o casaco e entrou na Igreja.

Sentou-se num banco lateral ainda vago. Logo depois chegou um casal de velhotes de braço dado. Abriram-lhe um sorriso franco de boas noites e boas festas. Maria Rita devolveu o sorriso e ficou com um rubor de felicidade no rosto. Ainda se lembrava de como era sorrir.

Relembrou as canções de Natal, eram as mesmas da sua mocidade.  Atreveu-se a cantar, primeiro num sussurro, depois com alma e força, e aquele rubor tomou conta dela inteira.

No final da missa, despediu-se do casal com um aperto de mão demorado, desejou-lhes Boas Festas e foi para casa, sem pressas. O coração a abarrotar de vida.

Despiu o casaco, jogou o cachecol para cima de uma cadeira, aventou os sapatos para longe e atirou-se com gula ao prato de arroz doce.

 

Para o Desafio de Dezembro da Fábrica das Letras

 

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 7 de Outubro de 2009

Escrever à toa

 

Faltavam-lhe as palavras. Em tantos anos nunca tal lhe acontecera. Eras de palavras em catadupa, despejadas em páginas e páginas ordeiramente arrumadas nos escaparates. Romances frustrados, desventuras e mágoas, lágrimas e traições, paixões fervorosas e abraços arrebatados, fins trágicos e corações destroçados.

E agora? Agora chegada a hora da verdade, o momento supremo do discurso inflamado, a chuva de meteoros brilhantes, a ovação pungente repetida em encores a uma só voz....Agora...agora....nada!

A Meisterstück monogramada na mão, a folha verde clara, perfumada de colónia Vétiver, em frente...vazia...flores pastel, esbatidas em jeito de moldura escarneciam diluídas em sorrisos verde água.

Costumava sentir-se impelida a escrever pelo desejo secreto de semear penas e escombros nos corações frágeis que devoravam os seus contos. Aquelas pessoas reviam toda uma existência de promessas vãs e sentimentos violentados nas páginas de um daqueles folhetins debitados por ela. Alimentara-se séculos a fio daquela pontada doce de sadismo. A dor provocada nos peitos maltratados pelo desamor. As palavras aventadas sem pudor, frases inteiras de solidão, parágrafos de abandono e despedidas prematuras.

Ah! - pensava ainda agora, vazia - como tinha sido feliz enquanto paria livros como coelhos, uns atrás dos outros! E agora nada. Lembrava-se, já de uma forma desfocada, é certo, de como o coração batia mais apressado a cada nova capa, homens fortes e másculos, tomavam nos braços donzelas indefesas que os olhavam em prece, caladas. Títulos sugestivos " O amor de toda uma vida", " Adeus meu amor!", "Não me esqueças!", " A mulher misteriosa", um rol de banalidades, uma receita certificada e eficaz de gestos teatrais e desfechos melodramáticos...

Rodou a caneta por entre os dedos. Sentiu o peso frio do aço. O peso pluma do vazio de palavras que a tomava de assalto.

Fechou os olhos rendida num suspiro fundo.

A Meisterstück deslizou até ao chão alcatifado a Arraiolos. Em cima dos joelhos, o genérico final, uma folha verde água, perfumada de Vétiver, marginada de flores pastel, nua de palavras.


Para Vou de Colectivo - "Hábitos de leitura" - Outubro/09

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Segunda-feira, 25 de Agosto de 2008

A queimar a vida

 

 

Acendeu um cigarro, e sorveu-o com urgência. Fazia sempre assim quando as recordações começavam a chegar.

Estava sentada numa cadeira. Os braços dobrados pelos cotovelos, apoiados numa mesa redonda. As pernas por debaixo da toalha da mesa que tocava ao de leve no soalho bem encerado. Os livros abertos, forravam a mesa de forma desordenada. Estavam calados. Sempre lhe tinham dito que os livros falavam...mentira crassa! Os livros calam, guardam, envelhecem. Tirou outra passa vigorosa e a brasa incandescente quase lhe queimava a pele dos dedos. Os dedos estavam feitos livros....velhos, amarelentos, calados.

Tinha um casaquinho de caxemira vestido. Era macio, e quente..e ali sentada, era certo, arrefecia depressa. Era cruel aos resfriados. não era preciso muito e lá vinha o martírio do nariz entupido, as dores no corpo, as noites de chá quente com mel e folhas de eucalipto.

Era Agosto.

Mas só lá fora.

Ali na sala, era sempre Novembro.

Tirou um cigarro, da caixinha de prata monogramada, e acendeu-o, aproveitando o borrão do outro ainda em agonia no cinzeiro.

Olhou as folhas quietas na sua frente. Folheou o compêndio de matemática uma e outra vez, sem nexo. Tirou os óculos que repousavam com displicência na ponta do nariz, e pousou-os agora nos papeis mudos.

Há quanto tempo estaria ali?

Não tinha filhos de quem sentir falta, ou marido para chorar...

Então do que se lembrava?

Talvez fosse das vidas dos outros. De todos quantos enfrentavam perigos nas páginas impares de um qualquer livro, e lutavam com monstros inóspitos na capa de um outro, ou faziam amor capítulos a fio. Sempre silenciados na última página...

Ou então a vida dos vizinhos. Via-os todas as manhãs quando saía para comprar o pão. trocavam bons dias formais, gravados em fitas antigas desde há anos e anos...Já ali estava, sentada quando eles casaram. Sorriam um para o outro e olhavam-se de frente, depois só já sorriam, e agora também eles viviam no silêncio dela, sem mais memórias que sorrisos de papel colados em álbuns meramente decorativos. Sorrisos que podiam ser de qualquer um...ou de ninguém.

Recostou-se na cadeira de espaldar alto, e puxou o fumo agora devagar e profundamente.

Sentiu os pulmões estalar de prazer e esboçou um sorriso discreto. Será que eles, os vizinhos, também tinham memórias como ela? Assim, vazias de gente, ausentes, sem cor, sem cheiro.

As suas cheiravam a cigarros fumados com urgência.

Pegou na esferográfica de tinta azul, e escreveu na folha em branco prostrada à sua frente:

As minhas memórias

depois riscou por cima, para voltar a escrever em baixo:

As minhas recordações...

olhou, e decidiu-se por um ponto de exclamação no fim:

As minhas recordações!

Dava mais ênfase à frase, e dava mais peso ao vazio que se lhe seguia.

Seria a tão falada angustia da folha em branco? - agora sorriu com gosto, mas de forma breve...Não, não tinha nada a ver com papel...

Era mesmo a angustia da vida em branco.

O silêncio cresceu para além dela.

Uma vez, um dia,  tivera um amor...recordava-se agora.

Encontraram-se num café...não, não, foi numa esplanada. Era Agosto!..ou Setembro, já não sabia bem. Ele trazia um chapéu preto e fumava um charuto cubano que cheirava a rum com chocolate preto. Ou seria Whisky com cacau? Mas fumava. Disso tinha a certeza!

Ela pediu-lhe lume. Ela tinha uma voz rouca e exalava um fumo adocicado quanto falava.

Caia uma chuva miudinha, e o Inverno insinuava-se como uma mulher da vida...

Mas era Setembro!

Uma vez, um dia ela tivera um amor, uma paixão avassaladora, mas o livro terminara, e finda a leitura, fechara-o e jazia numa estante daquele imenso cemitério de palavras que era a sua sala, a sua casa, a sua vida toda.

Apertou o casaquinho de caxemira delicado com as duas mãos junto ao peito. estava a ficar frio. 

Era Agosto.

Tirou outro cigarro da caixinha monogramada de prata, eternamente aberta, e fumou-o com urgência. 

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Segunda-feira, 21 de Julho de 2008

Azul

 

 

 

Ezequiel acordou de mansinho, foi amanhecendo para a claridade, sem pressas, e foi também sem pressas, que despertou nele a consciência de que tinha finalmente chegado o dia que aguardava desde que o tinham aventado para este mundo.

A sombra de uma nuvem escureceu-lhe o olhar, mas não mais do que dois efémeros segundos. Hoje não era dia para amarguras. Esfregou os olhos com um vigor de outros tempos, e de um impulso pulou da cama, e puxou as cortinas grossas.

Levou a mão aos olhos, para os proteger da luz intensa do sol maduro de Agosto, e ficou ali até habituar o olhar ao massacre solar de espreitar a rua.

-Que belo dia.... - pensou - é hoje ou nunca mais!

E nunca mais era muito tempo para Ezequiel. Nunca mais era quase o tempo que ele levava de espera, de dar corda ao relógio de bolso, de gastar as solas de cabedal grosseiro no chão de barro do casarão, de espreitar a rua , abrir e fechar trancas e ferrolhos....

- É hoje ou nunca.

Deixou a água a correr na banheira de esmalte estalado, enquanto fazia a barba.

Custou-lhe levar a lâmina aos lugares mais difíceis, e tudo por culpa do sorriso de lhe crescera na boca como o dia. Espalhou a colónia de alfazema calmante, e bateu nas faces com as palmas das mão, exorcizando a energia que emergia das pontas dos dedos, e que ameaçava transformá-lo num bocado de carvão a qualquer instante.

Entrou na banheira, e pensou que seria a última vez que o faria assim...sózinho. Tocou-se com saudade. Cada milimetro do seu corpo de homem feito, tinha uma estória de cumplicidade com as suas mãos, um segredo guardado, um êxtase calado pela vergonha...

 

Abafou um último gemido no calor passageiro daquele lago molhado, e saiu de lá outro.

Esfregou com força o corpo todo. Arrancou da pele os restos do Ezequiel que todos conheciam, deixou em carne viva um homem novo. Um homem capaz de andar no mundo como todos os outros homens.

Ficou de pé frente ao espelho.

Nu

Sem roupa

Sem pele

Sem pesos

Olhou-se com tempo .... as rugas que começavam a aprecer como as ervas nas primeiras chuvas, sem dó nem piedade.... o peito de águia, escurecido pela mata densa de pêlos que aqui e ali íam ficando grisalhos das névoas dos outonos tardios....as pernas finas de galgo...não estava mal....pensou num arquear de sobrancelha.

A manhã tinha corrido apressada, enquanto ele disfrutava do sabor doce que antecipava a mudança.

Puxou o relógio de cima da cómoda, e espantou-se com a consulta. - Já 11 horas!

Abriu o guarda-fatos de madeira envernizada cor de avelã, e tirou a roupa que já tinha escolhido para quando lhe fugisse o medo. O melhor fato. Um fato cor de chocolate, de espinhado inglês. - Muito fino! -  dissera-lhe o caixeiro da loja de voz afeminada e gestos ameninados - é a última moda no estrangeiro!

Ezequiel, lembrava-se de ter olhado o sujeitinho esquisito de lado, desconfiado....mas, a cor ficava-lhe bem, e decidiu comprar o fato completo.

Mirou-se de alto a baixo, uma e outra vez...de frente, de lado, o outro ângulo, espreitou a parte de trás...... -Olha pra ti  velho Ezequiel ... Quando tu queres até pareces um doutor! - sentenciou para o reflexo opaco e desfocado do espelho de pêndulo.

Meio dia em ponto. Abriu a porta do casarão, saiu para a rua e deixou entrar em casa um rasgo de ar quente carregado de borboletas azuis que tingiam  daquela cor triste, tudo o que tocavam no seu voo.

Ezequiel seguiu o seu rumo, sem fazer caso das asas azuis invasoras do seu reduto de solitário.

Seguiu pela rua acima, sorrindo boas tardes aos poucos que se atreviam a um frente a frente com o sol tirano do meio do dia.

O suor escorria-lhe por dentro do paletó, e ensopava a camisa, as cuecas, a vontade....

Entrou no jardim da vila. Não havia viválma a não ser ele por aquelas bandas, sentou-se no banco que ficava situado por baixo dos longos braços do chorão frondoso. Fechou os olhos por um momento breve, respirou fundo e sentiu uma miscelanea de cheiros e sabores que lhe saturaram os sentidos, e lhe depositaram um travo anizado no céu da boca.

Concentrou-se nos ruidos que o rodeavam, a ausência da brisa, o canto dos pardais, dos melros, dos pintassilgos, um cão vadio que farejava urinas alheias, na relva ressequida.....o seu coração....

Era hoje .... sorriu ..... levou a mão ao bolso das calças, suspirou de alivio.

A solidão era um bicho teimoso, fossão, como o cão sarnento que estava agora a coçar as mordidelas das pulgas deitado ao lado do banco, mas Ezequiel, sentia a leveza infinita do abandono do estado solitário.

Retirou a mão do bolso, abriu-a, olhou o objecto pequeno e reluzente, uma aparição com artes mágicas, e num gesto encostou o aço rijo e frio à orelha direita e puxou o gatilho.

Houve uma debandada de asas e pêlo de cão vadio, e uma brisa tingida de azul uivou a romper a tarde.

 

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Quinta-feira, 12 de Junho de 2008

O rapaz no casulo

 

O dia acordou devagar, como todos os dias de Verão acordam.

Tapou os olhos com as mãos em concha e virou-se de costas para fugir da luz clara e baça que tinha tomado conta de todas as frestas do quarto atarracado.

Enterrou a cabeça na almofada, e deixou-se ficar ali até quase perder o fôlego.

Finalmente levantou-se. Os olhos franzidos, as mãos em pala de protecção. Pôs os dois pés fora da cama, e num impulso ficou de pé, frente ao espelho de corpo inteiro, à direita do divã onde dormia.

Aproximou-se mais de si. Espreitou o olhar reflectido, demorando-se nas linhas franzidas por debaixo dos lagos cinzentos, fundos, ansiosos. Aquela claridade em corta-luz, tinha-lhe conferido um ar desconfiado, permanentemente encandeado, as rugas em volta dos olhos pareciam exércitos de riscos a lápis de carvão...exércitos desalinhados, cansados, que tinham assentado arraiais por aquelas bandas...

As sombras lá de fora, despertaram-no da letargia do ritual de observação.

As sombras cresciam na proximidade, e minguavam na distância, mas em momento algum tocavam sequer a sua existência de ilhéu...apartado do calor dos outros por vontade própria.

 Então era assim? Era assim, estar sozinho.

A única metamorfose à vista era o facto de aquele familiar nó no peito, a dor constante que transportava pra todo o lado... estar agora transformado num enorme e estranho vazio de sons, que lhe apertava a garganta e o impedia de abrir a boca.

Voltou às linhas dos olhos...eram como um pecado que ainda está por fazer, sempre a chamar, num sussurro.

Agora tinha desaprendido tudo.

 Estava preso do lado de dentro do casulo. Uma prisão sem amarras, sem grades, e sem gente.

Acordava devagar nos dias de Verão, deitava-se depressa nas noites de Inverno, dormia ao de leve, enroscado em si mesmo, na ânsia avassaladora do amanhecer,  de olhos quase fechados, franzidos, secos.

 

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Quarta-feira, 17 de Outubro de 2007

Acto de Fé

I

Álvaro Guedes era um homem como há poucos. Para ele, a vida era uma coisa séria, que devia ser encarada sem descontracção e com formalidade.

E era tal e qual assim que Álvaro a levava. Todos os dias, se levantava da cama às 6 da manhã em ponto. Saltava ao primeiro toque do relógio despertador, herdado do avô, e ao qual todas as noites, impreterivelmente às 22,30, dava corda religiosamente.

Calçava os chinelos de lã, aos quadrados castanhos e cinzentos, que exactamente às 10,45 da noite anterior como de todas as que a precederam, colocava em posição, no sitio justo por onde sairia da cama pela manhã.

Tomava um duche. Rápido e frio. Sim frio, porque, dizia, a água fria, afasta porcarias e pensamentos pecaminosos das nossas cabeças!

Dizia-o todos os dias, a quem o quisesse ouvir!

A sua devoção à candura da alma, era tão profunda como a sua inflexibilidade sobre o dever de virgindade do corpo.

- O nosso corpo é um templo! - dizia extasiado pelas suas próprias palavras -  um templo do Senhor!!!! E quem somos nós para o profanar?  Somos humildes servos!!! Temos que limpar e alimentar o nosso corpo! Respeitá-lo! E isso basta ao Senhor!!! - uma veia arroxeada crescia no pescoço e alongava-se até à testa, denotando a excitação crescente com que acentuava a sua voz. Podia-se até dizer, que se algum prazer retirava da vida, era sem dúvida a fogosidade quase carnal com que defendia a pureza da dualidade corpo/alma.

Álvaro Guedes tinha 45 anos. Era empregado numa repartição estatal,  conhecido pela sua perseverança, pela sua rectidão, pela sua fé, pela sua vida espartana.

II

Saia do banho e vestia o fato cinzento. Tinha dois. Ambos cinzentos. Completos, e de boa qualidade - Se forem de um bom tyrilene  duram uma vida! E os luxos sobram-nos todos!

Camisa branca, tinha três camisas brancas, impecavelmente engomada. Meias cinzentas de algodão egípcio, e uns sapatos castanhos, de atacadores,  que tinha estreado há já 15 anos, numa excursão a Santiago de Compostela . Aliás a única  extravagância da sua vida, que ainda hoje, apelidava de esbanjamento sujo - Se ao menos tivessem ido em profissão de fé! , mas não!!!! Já não há crentes neste mundo! Todo o caminho cantaram brejeirices, e quando chegaram perderam-se nas lojas a comprar caramelos!!!

 A mesa do pequeno almoço, estava posta como sempre, uma toalha de linho, ainda do enxoval da mãe, duas chávenas de louça antiga, um bule cheio de água quente com cascas de limão, e duas fatias de pão de ontem.

Sentou-se, e olhou para o relógio na parede da cozinha, por cima do velho frigorifico. Marcava as 6:30.  Amália, a irmã de Álvaro, aquecera a água para o chá, acordada pelo barulho estridente do despertador, e voltara logo depois para os lençóis ainda quentes.

Tomava o pequeno almoço sozinho . Como quase todos os dias. Álvaro não era homem de se importar com coisas tão terrenas como ausências ou solidão.

Com a mesma cerimónia de quem se benze na missa de Sexta-Feira Santa, sentou-se à mesa, abençoou a parca refeição, e demorando-se nos gestos, encheu a chávena e barrou com pouca manteiga o pão endurecido. Comeu em silêncio, acompanhado pelo vazio da casa e pelo frio das suas mãos.

III

Amália tinha 50 anos, e vivia naquela casa desde o dia em que a mãe aos gritos a derramara no mundo. Fora um parto difícil , e logo  nas primeiras horas, a recém nascida mostrara ao mundo as suas diferenças .

Como se quisesse prolongar as dores da mãe, Amália, gritou duas semanas seguidas, sem parar. A mãe julgou de enlouquecer, e o pai deitou-se numa cama de aguardente, que lhe queimava as entranhas e o embalava em viagens por terras mudas, de gente sorridente e calada, onde não havia gritos ou choros ou vozes.

O tempo correu, umas vezes mais depressa do que outras, mas a estranheza de carácter de Amália continuou intacta, até ao dia do veredicto final. O diagnóstico médico prendeu-a para sempre a uma esquizofrenia, que fazia dela um ser sem pátria, ou casa, ou família , ou mundo.

Limpava a casa dos dois, duas vezes por dia, fazia almoço, passava a ferro, engomava colarinhos, engraxava sapatos, bordava toalhas, via novelas, mas na realidade nunca ninguém sabia onde ela estava.

IV

Tirou o guardanapo do colo, limpou a boca, dobrou-o com uma destreza matemática, e sem fazer barulho levantou-se, e saiu para a rua.

Cinco minutos antes das sete da manhã, estava já à porta da igreja de Sta . Justa, onde todas as manhãs ouvia a missa em latim, pela voz do decrépito Padre Miguel, que só a muito custo se mantinha de pé para terminar a homilia.

Tomava a hóstia consagrada com um enlevo orgástico,  molhava a ponta dos dedos com água benta, e pela quarta vez desde que tinha saído da cama, benzia-se e saía.

Caminhava a pé até ao serviço. Sempre, todos os dias deste há quase 18 anos. Era um bom emprego, seguro, um ordenado certo ao fim do mês. Tinha sido o seu Padrinho, um conceituado Doutor daquela praça, que lhe tinha arranjado o lugar, e ele, estava-lhe agradecido para a eternidade.

O caminho era mais ou menos o tempo de um Mistério, que ele rezava com fervor, ao mesmo tempo que dava os bons dias a com quem se cruzava.

V

Em 45 anos de vida, passara muitas horas em hospitais e consultórios médicos, primeiro por causa dos pais, depois por causa da irmã.

Ele até hoje, jamais precisara da intervenção da medicina, bastava-lha a mão de Deus, dizia - Muito mais poderosa! É a falta de fé que põe os homens doentes!

Todos o conheciam, e sabiam que se algum assunto lhe acendia o coração e aquecia a voz, era a fé dos homens...ou a falta dela.

Sabia bem, que os mais jovens lá da repartição, lhe chamavam, beato, rato de sacristia, e ás vezes coisas muito piores; mas ele confiava como sempre na justiça Divina, que no seu espírito, comparava sempre a uma espada afiada pronta a cair sobre uma cabeça pecadora.

- Não há nada que se pague melhor do que a semente da lingua! - sentenciava em pensamento, tentando contrariar o sabor doce da vingança que Deus perpétuaria em seu nome.

VI

Ia a casa para almoçar. Só assim podia ficar descansado. Vigiava Amália de perto, sondava a sua disposição diária, e depois de um almoço a dois, numa mudez mais dura que o pão de ontem, regressava ao serviço.

Lançava-se com afinco ao pouco que tinha que fazer, numa repartição pública igual a tantas outras, apinhada de gente com muito pouco para fazer.

Para Álvaro, não havia futilidades a discutir, ou procedimentos a adiar. Trabalhava em cima da linha, cumprindo horários estipulados por ninguém.

Ao bater das cinco da tarde no relógio da torre, começava a arrumar com minúcia. lápis, canetas e papeis.

Sempre sem se dar por ele, levantava-se, chegava com delicadeza a cadeira para a secretária, e saía. Nunca era o primeiro a sair. Não tinha pressa nenhuma.

VII

O caminho de retorno a casa, era sempre mais pesado a esta hora.

Ás vezes relaxava um pouco, desacelerava o passo, e permitia-se olhar os outros, ver como viviam, como falavam, como sorriam.

Mas o devaneio era momentaneo, e o escárnio da leveza de sentimentos dos outros, o quase nojo com que encarava a forma escancarada com que riam alto, como se rissem de Deus, depressa voltavam a carregar o seu semblante de uma inexpressiva incompreensão.

Punha a chave à porta, limpava os pés no tapete da emtrada, e como hábito, levantando a voz, avisava a irmã da sua chegada.

VIII

O jantar decorria no mesmo tom. O acompanhamento era outra vez a mudez das palavras que não se trocavam, e a sobremesa era o silêncio consentido entre os dois.

Ia cedo para o quarto. Nunca depois das nove da noite.

Tinha que rezar o terço, e preparar tudo para a amanhã seguinte.

Ajoelhava-se no marmore frio,  e agulhas de gelo penetravam nos ossos, infringido-lhe uma dor aguda que ele recebia com um sorriso e de olhos cerrados.

Terminada a oração, fechava o oratório e colocava-o com reverência dentro da gaveta da comoda, depois dirigia-se à porta do quarto, mecâncicamente, fechava-a e dava duas voltas à chave. Aquele era o seu reduto. A sua privacidade.

IX

Abriu o garda-fatos de mogno envernizado, despojo da mobilia de núpcias dos pais, e retirou de lá a caixa de cartão forrada a papel de seda azul claro, que guardava desde não se lembrava quando, naquele recôndido lugar, longe dos olhos da irmã, longe dos olhos de Deus...

Abriu-a como quem desfolha um malmequer, devagar, mas ao mesmo tempo com uma ansiedade, que bem conhecia, e que tanto lhe custava amansar.

Ficou ali de olhos vidrados, embevecidos com a luz que vinha de dentro da caixa. As cores berrantes explodiam-lhe o sangue nas suas veias, as texturas de sedas, e crepes, e rendas queimavam-lhe a sua existência, quase não ousava tocar em tais reliquias.

Despiu-se, com a usual paciência e sem pressas. olhou outra vez a caixa, espreitou para dentro e demorou o olhar, os lábio entreabertos, como se quisesse fazer ecoar o prazer que os seus olhos sentiam.

Escolheu umas de um vermelho carmim arrendadas e leves, tão leves como uma oração, tão quentes como a fé que lhe enchia os dias.

Tremeu de raiva pela comparação, e gemeu impotente perante o pecado consumado.

Vestiu-as, depois o pijama, e de regresso à vida, meteu-se na cama, e puxou os lençóis até ao pescoço.

X

Apagou a luz do candeeiro de mesinha de cabeceira, e no escuro, mais só do que nunca, deixou a sua mão viajar. Tocou-as. As calcinhas de renda vermelhas, cobriam-lhe o corpo morto antes sequer de ter vivido.

Sorriu ao sentir o conforto luxuriante do cetim, e adormeceu num acto de fé sem precedentes.

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Quarta-feira, 12 de Setembro de 2007

A menina que não acenava

 

  • A noite apanhou-a trancada num medo antigo.
  • O vento falava com as madeiras cansadas das janelas da casa, e as respostas mais não eram que lamentos sentidos.
  • O Outono andava a rondar-lhe a cama, e os clarões dos relâmpagos que fotografavam as sombras dentro do quarto, eram mais que um presságio.
  • Trovões inundaram-lhe os ouvidos e encheram-lhe as mãos de um suor inquieto.
  • Havia muito tempo que não se sentia tão sozinha . As noites assim, de fim de Verão, tinham tido nela sempre esse mesmo efeito, o sentimento de ausência...dos outros e dela mesma.

Permitia-se sempre ter medo nessas noites. Podia meter-se debaixo dos lençóis , rezar fervorosamente, fechar portas e janelas, trancar-se por fora, e ver-se assim, como todos os seres vivos à face da terra, com aquela  ânsia que lhe acelerava o sangue, e,  que por aqueles dias, era a única sensação que lhe dizia que ainda estava viva.

Vivia numa solidão de cinema mudo, tudo o que via, eram lembranças que desfilavam para ela, sempre que as evocava. Desfilavam acenos e sorrisos de despedida, sem palavras, só acenos e sorrisos.

Habituara-se a viver assim. Não poderia viver com outro alguém que não fosse o vazio das paredes da sua casa, e os figurantes que acenavam nas suas memórias.

Lembrava-se sempre da sua 1ª Comunhão...não sabia bem porquê, mas essa sequência passava vezes sem conta à sua frente. Via uma e outra vez, aquela menina pequena e séria demais para os 9 anos, o cabelo preso num rabo-de-cavalo sisudo; a fatiota branca até aos pés atada na cintura por um cordão de seda amarelada pelos dias; e as mãos postas em oração, com um rosário de prata pendurado...

Um enorme altar de crianças risonhas, acenava-lhe um até breve, mas aquela menina, nunca!

Ficava ali, quieta, a olhá-la, e olhava-a com a mesma impavidez e desinteresse de sempre.

Ás vezes reconhecia-se naquela criatura ridicula e infeliz, e chorava com pena dela.

Outras vezes, via-se ainda mais pequena, sentada ao colo da avó, apertada num ramo de cheiros de hortelã e erva luisa, que vinha do cabelo cinzento entrançado num poupo.

A avó era sempre uma memória que a deixava feliz. Acenava-lhe e sorria-lhe, segurando nos braços aquela criança amedrontada. Nessas alturas, quase podia ainda sentir as mãos dela nos seus cabelos, e ouvir as suas palavras sábias, dizendo-lhe que "não era bom, falar no cheiro da terra depois de uma trovoada".

Porquê? Nunca tinha tido a resposta, mas apesar disso, e apesar de os pulmões se encheram daquele cheiro estonteante a terra molhada depois de uma trovoada, e apesar de o seu peito quase explodir de extase, ela nunca o disse, nunca falou desse cheiro. Com medo de quê, não sabia, nunca soube.

Os relâmpagos apagaram-se por fim,  e a noite pode cair abraçada àquela chuva, até de manhã.

O vento agora só já sussurava, e as janelas rendiam-se.

 

Havia já muito tempo que não se sentia tão sozinha .

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Sexta-feira, 10 de Agosto de 2007

Hopeless

...és tu?....entra se quiseres...mas não acendas a luz...

 o melhor era não entrares...

porquê?....porque me dói por dentro, e isso não é uma coisa bonita de se ver...

sim, estou sentada no chão....não me apetece falar...mas se estás mesmo interessado na minha solidão podes ficar aí. Não! Assim tão perto não,  que tenho frio. Fica aí onde estás, não te vejo, mas posso sentir-te...

Foi a vida...tu sabes...agente cai, e levanta-se enquanto pode, e depois já não se levanta mais...

Deixei a esperança presa, naquela última porta que se fechou, e agora também já não tenho forças pra voltar atrás e ir buscá-la. Deixa..não faz mal..é só a esperança.

Não, a sério, não acendas a luz, nem abras a janela, depois vai entrar o sol e eu já te disse que tenho frio...

Eu sei, não te culpo, nunca o fiz. Tu também tens o orgulho esfolado dos tropeções e rasteiras...eu sei. Tu também tens feridas ainda abertas....desculpa...

Desculpa, já devia ter feito um curativo nisso...ao menos podia ser que ainda pudesses sorrir...ao menos tu.

Estou sentada no chão, sim, não vês que sim? ...É verdade, está escuro... não podes ver.

Estou a abraçar os meus joelhos....é só para não me esquecer que ainda estou aqui, ainda existo, tu sabes que eu ainda existo não sabes?

Olha...estás tão longe....chega mais perto....anda lá!

....se calhar se estiveres mais perto, dói menos...

 

 

image by Wee (amazingWeee)

 

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Quarta-feira, 11 de Julho de 2007

In the Heat....

 

 

Deixou cair o braço com estrondo. As flores desbotadas do lençol entraram em pânico. Está tanto calor!!!

As horas no relógio do móvel arrastam-se no compasso da noite, numa lentidão quase brutal.

Não fosse a garrafa de água na mesinha de cabeceira, e seria já uma passa de uva...os pulmões estão secos, a boca está seca, e no entanto o coração está a afogar-se.....é uma agonia observada pelas moscas em voos rasantes .

O coração está prestes a afogar-se....se não for o calor do breu da noite, vai ser  de certeza a profusão de suor que tinge a pele.

Dá outra volta, e depois mais uma, braços e pernas dançam ao som do ranger da cama, ao tom do crepitar das flores desbotadas no lençol; procuram planaltos de frescura, planicies virgens de suor.

Mas tudo parece vão e  inutil, completamente inutil...daqui a pouco amanhece, e, a angustia vai acordar, colada à pele como os cabelos revoltos estão agora, e o sol vai levedar a solidão, e logo, quando a noite entrar mais uma vez pela porta do quarto, vai chegar de novo só..só e quente como hoje, como ontem, como a eternidade.

 

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