Ajeitou o colarinho da camisa, pela segunda vez em menos de dois minutos. Dois toques à campainha da porta. Dois toques breves. Tirou o lenço de cambraia da algibeira das calças, e limpou a testa, estava um calor dos diabos. O Outono não tardava, o sol de Verão, implacável, mas já doente, teimava em não se dar por vencido. Duas horas da tarde. Em ponto. Soavam agora no relógio da torre da Igreja Matriz. Ninguém de bons miolos saía à rua àquelas horas. O som dos tacões no chão de mosaicos, anunciou a presença de alguém. Suspirou de alívio. A porta, pesada e alta abriu-se sem ruído. Um rosto esculpido em indiferença, avançou : - Entre. A senhora espera-o. Aguardou que a mulher de mármore lhe desse passagem e entrou, pedindo licença Sentia os dedos dormentes da força com que apertava o lenço nas mãos. Não se tinha dado conta. O lenço parecia agora um pedaço do jornal de ontem amachucado. Às pressas, voltou a meter o lenço na algibeira, alisou as calças, assim, ao mesmo tempo que ajeitava a sua aparência, enxugava o suor frio que lhe alagava as palmas das mãos.
Caminhou alguns passos atrás do ser granítico à sua frente. O passo dela era decidido, intimidador. Ele balbuciava um andar constrangido. Todo o hall de entrada estava envolto por uma luz que tinha alguma coisa de sagrado. Os vitrais das janelas altas, conferiam à divisão ampla uma atmosfera de oração e retiro. Acalmou. Sentiu o bater do coração ceder, no seio da calma daquele lugar. De novo respirou fundo. Fechou os olhos só por um segundo, e depois ergueu o olhar e a coragem. Saíram para um corredor estreito, e pouco iluminado, ladeado de portas de ambos os lados. Era bastante audível o zumbido de ventoinhas, vozes, e segredos. Algumas das portas entreabriam-se à sua passagem, e quase se podiam sentir as carícias daqueles olhos sôfregos, por detrás da vida da casa grande.
O corredor desaguava numa sala pouco mobilada para o espaço disponível, impessoal, triste. - Aguarde aqui.
Era uma ordem, tinha a certeza. Num dos cantos da sala havia uma salamandra de ferro, grande, a acautelar os longos invernos, ali bem maiores que lá fora. Em frente uns sofás de napa bordeaux. Na parede contígua, um quadro de gosto duvidoso, com cores garridas, uma queda de água, e uma rapariga de outros tempos acocorada a apanhar flores.
Em frente à porta, para o jardim, umas janelas enormes que deixavam entrar sem pudores o calor e a luz do exterior. Quiçá o elo de ligação a um mundo que não deixara de existir apesar de tudo.
No centro 4 mesinhas de madeira de pinho, com quatro cadeiras cada uma. Alguns jogos de tabuleiro, revistas de bordados, livros fechados.
Não havia ninguém ali, além dele. Ouviu um estalido e virou-se. O aparelho de ar condicionado, fazia os possíveis por refrescar a sala.
Puxou uma cadeira para perto das vidraças, e deixou-se ficar ali, a olhar para o imenso jardim. O pavimento todo cimentado, as escadas de granito davam agora lugar a rampas, e todo o verde deslumbrante de antes, tinha sido substituído por canteiros de flores de outras paragens geometricamente pousados no cimento. O pombal, o galinheiro, o forno, a horta. Tudo traduzido de forma grosseira em cubículos de argamassa e reboco. Lavandaria, casa de máquinas, tudo imaculadamente branco e asséptico.
- Passa aí! Não queiras fumar tudo tu!
- Mas é só uma ponta! Não dá mais que duas passas a cada um.
- Então está na minha vez, certo? Esta gente com a mania das doenças...o avô deixou de fumar, o pai - a voz esganiçada, os gestos exagerados - reduziu para metade! - caíram no meio das ervas numa gargalhada franca e despreocupada.
Eram assim aqueles dias. Francos e despreocupados.
- Agora só mesmo a mãe, que a gaja não vai em conversas, ela fuma-os às escondidas dele, às vezes até fuma daqueles que fazem rir! Fica um pivete no terraço, que nem te digo!
É vê-la com olhos de peixe - dramatizava a conversa da mãe - "Queridoooo, o que queres para o jantarrrrr , diz lá que eu peço à Mariiaaaaa pra fazerrrrr"
Outra vez o riso livre, abafou a terra e o cimento frio.
- Xiça!!!! Já queimei a ponta dos dedos!! Vamos ficar com os dedos todos amarelos como eles, e ter cancro nos pulmões, e as doenças cardíacas todas, e um hálto mal cheiroso, e catarro matinal, e escarros verdes e nojentos, e dentes enferrujados.
- Não digas tantos disparates....- nunca gostou de falar no fim, podia até rir por fora, mas dentro de si, borboletas assustadas, batiam asas ao som de profecias - dá isso! Apagou a beata com força na terra húmida
Lá ao fundo, foram em tempos as cavalariças. Agora, no seu lugar estava uma pequena capela, de traço limpo e minimalista, reservada para a extrema função de velar as almas que partiam.
- Queres.....vamos até ao pombal?.... - perguntou num misto de vergonha e ansiedade.
- Se o pai soubesse o uso que temos dado ao pombal, depois que ele se desfez dos bichos - tapou a boca com a mão para abafar o riso nervoso e corado. - Vamos - levantou-se de um pulo e puxou-o.
- Não brinques com coisas sérias! - um calafrio subiu-lhe pelas costas - punha-nos a todos no olho da rua, a mim a minha mãe, ao meu pai....há coisas que apenas se pensam, não se dizem nem a nós mesmos - depois tocou-lhe no queixo, já mais morno - sabes porque tens dois ouvidos e uma boca? Para ouvires o dobro do que falas! - apertou-lhe o nariz e fugiu.
- Não fujas! - Empurrou-o de novo para o chão - És mesmo velho tu! Isso são mesmo ditados de velhos....Eu vou à frente.
Deixou-o sentado nas ervas, os cotovelos apoiados, a olhá-la....o andar lascivo e inocente a um tempo, os pés descalços, os calções curtinhos a desafiar a vertigem do desejo dele.
Esperou. O coração aos saltos, quase a rebentar-lhe as têmporas, a boca seca, e as palmas das mãos, ontem como hoje, alagadas em suores frios.
Olhou em volta. A lida da casa grande soava distante, na cadência monótona de todos os dias. Limpo. De um pulo alcançou a porta do pombal, entrou, subiu o lance de escadas para o piso superior, e encontrou-a à sua espera. Nua. Não havia sombra de culpa naquele rosto perfeito, antes uma atitude provocadora de quem não sabe ainda o que é o medo. Os braços abertos - Anda, vem cá! - os seios pequenos iluminavam a tarde que caía em paz, e encandeavam-lhe a vontade. Como um animal, cego, ele entregava-se inteiro.
Olhou o relógio. Duas e meia. Tardava. Dava-lhe tempo para pensar, e ele havia tempo que tinha deixado de pensar, pelo menos pensar nesses dias distantes.
Arrependia-se de não ter sido mais, de não ter sido maior. Mas, afinal, ele era era apenas do tamanho dos homens.
Se calhar não devia ter vindo. Não era bom falar dos mortos. Aquilo fora a vida de outro. Ele podia ver agora claramente todos os pontos da história, classificados, legendados, editados, como numa tela de cinema. Nada era seu, nem as memórias. Era mais que certo. Era uma redonda estupidez ter vindo. Ainda funcionava a voz do dono, pensou desconsolado.
Levantou-se devagar. Levantou a cadeira e voltou a pô-la no lugar. Não esperava mais, nem mais um minuto. Pousou a cadeira, olhou mais uma vez lá para fora, só mais esta última vez.
- Quem pensas tu que és, um bocado de merda! Desaparece daqui e assegura-te de que nunca mais apareces a mijar aqui à porta.
Foi pacífico. Foi-se dali. Ela ficou. Despediu-se num aceno camuflado pelas cortinas pesadas do quarto dos pais. Um aceno dissimulado e um sorriso. Uma promessa.
As promessas, soube-o sempre não foram feitas pra se cumprir, são feitas de esperas e perseguições quiméricas. Tinha as mãos trémulas, apertou-as uma na outra - acorda! - pensou alto. Arrumou a cadeira e dirigiu-se para a porta. A meio do caminho, a porta abriu-se, a mulher sem expressão apareceu, abriu as duas portadas, voltou um pouco atrás e entrou empurrando uma cadeira de rodas. - Está mesmo à sua frente Senhora.
A mulher sentada na cadeira, devia rondar os setenta anos, tinha um ar distinto e altivo, uma figura magra, e uma postura que mesmo naquela condição era firme e vincada. Tinha o cabelo prateado apanhado numa banana. Perfeito.
- Jorge...és tu? - Perguntou enquanto descerrava um sorriso ainda provocador. Ficou imóvel, perante a força daquela presença. A frescura daquela voz. - "és mesmo um velho tonto!"- Ainda ouvia o eco desses dias felizes.
- Sim - foi tudo o que conseguiu dizer.
- Ainda bem que vieste. Pena que não te posso ver. Chega-te aqui. Dá-me as tuas mãos.
Estendeu-lhe as mãos. Tocaram-se. Dois pares de mãos cheias da vida de outrora. Juntas, a encurtar distâncias.
- És mesmo tu Jorge...puxa uma cadeira, queres um cigarro?
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A hora do chá era um ritual repetido dia após dia, no mesmo horário.
Sentavam-se frente a frente, os olhos baixos, postos nas chávenas de porcelana. Há muito tempo que não de olhavam.
Estava tudo dito entre as duas. Tudo havia já sido vasculhado, remexido. Não havia um centímetro da vida de uma, que a outra não tivesse já violado.
Chá preto, bem forte, às Segundas e Quintas, chá de Tília às Terças e Sextas; de Camomila às Quartas, e de Rosas aos fins de semana. O mesmo calendário há mais de 50 anos, num recital de tilintares e cheiros, que tinham impregnado paredes e vestidos, pele e sentidos, de uma forma opaca e irreversivel.
Não sabiam ao certo como tinham ido ali parar.
Não eram nada uma à outra. Não havia laços de sangue a uni-las, aliás, não havia laços nenhuns a uni-las.
Cinco décadas, meio século de fios de seda que as mantinham presas naquela mesma casa, numa cohabitação de silêncios partilhados, em que cada vez mais, apenas suportavam a presença da outra, como um mantra que se repetia e ecoava no bater das horas.
Tinham sido amigas de infância, mas não tinham memórias desse tempo.
Caminhos de angustias e solidão, aos poucos tinham aproximado as duas, e como as fases de uma lua qualquer, esvaziaram almas anos a fio.
Fizeram companhia uma à outra, falaram de tudo, esgotaram segredos, trocaram dores, levaram mágoas da outra para a cama, e devolviam-nas pela manhã já apaziguadas.
A primeira enviuvara cedo. tão cedo que nem tivera tempo de parir um filho. O homem dela morrera na guerra. Mas já não se lembrava qual, nem quando, nem onde, nem sequer se fora na guerra. Morrera.
A outra não. A outra cansara o corpo de homens. Como alguém que debaixo de uma amoreira, colhe frutos até não poder mais, porque são doces e quentes, e depois já são doces e quentes demais, até não mais poder ver uma amora diante dos olhos...
Os anos correram, e quase sem se darem conta, a indiferença insinuou-se pelas frestas dos caixilhos de madeira velha das janelas, e, mais calada que um rato, instalou-se, e apossou-se do olhar delas.
Já não se falavam, não se olhavam, também não se ouviam.
Viviam de pressentir a outra. Acordavam, dormiam e voltavam a acordar, na certeza da outra. uma certeza constante e vazia, cada vez mais impossivel de suportar.
A primeira pensava muitas vezes na libertação da morte. Finalmente o júbilo da solidão almejada, uma solidão real.
A outra não. A outra pensava nos biscoitos para o chá de amanhã. Biscoitos de manteiga, com raspas de limão e amendoas torradas, os preferidos da primeira.
A morte. A morte era pouca coisa. A morte era quase nada.
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