Quarta-feira, 7 de Outubro de 2009

Escrever à toa

 

Faltavam-lhe as palavras. Em tantos anos nunca tal lhe acontecera. Eras de palavras em catadupa, despejadas em páginas e páginas ordeiramente arrumadas nos escaparates. Romances frustrados, desventuras e mágoas, lágrimas e traições, paixões fervorosas e abraços arrebatados, fins trágicos e corações destroçados.

E agora? Agora chegada a hora da verdade, o momento supremo do discurso inflamado, a chuva de meteoros brilhantes, a ovação pungente repetida em encores a uma só voz....Agora...agora....nada!

A Meisterstück monogramada na mão, a folha verde clara, perfumada de colónia Vétiver, em frente...vazia...flores pastel, esbatidas em jeito de moldura escarneciam diluídas em sorrisos verde água.

Costumava sentir-se impelida a escrever pelo desejo secreto de semear penas e escombros nos corações frágeis que devoravam os seus contos. Aquelas pessoas reviam toda uma existência de promessas vãs e sentimentos violentados nas páginas de um daqueles folhetins debitados por ela. Alimentara-se séculos a fio daquela pontada doce de sadismo. A dor provocada nos peitos maltratados pelo desamor. As palavras aventadas sem pudor, frases inteiras de solidão, parágrafos de abandono e despedidas prematuras.

Ah! - pensava ainda agora, vazia - como tinha sido feliz enquanto paria livros como coelhos, uns atrás dos outros! E agora nada. Lembrava-se, já de uma forma desfocada, é certo, de como o coração batia mais apressado a cada nova capa, homens fortes e másculos, tomavam nos braços donzelas indefesas que os olhavam em prece, caladas. Títulos sugestivos " O amor de toda uma vida", " Adeus meu amor!", "Não me esqueças!", " A mulher misteriosa", um rol de banalidades, uma receita certificada e eficaz de gestos teatrais e desfechos melodramáticos...

Rodou a caneta por entre os dedos. Sentiu o peso frio do aço. O peso pluma do vazio de palavras que a tomava de assalto.

Fechou os olhos rendida num suspiro fundo.

A Meisterstück deslizou até ao chão alcatifado a Arraiolos. Em cima dos joelhos, o genérico final, uma folha verde água, perfumada de Vétiver, marginada de flores pastel, nua de palavras.


Para Vou de Colectivo - "Hábitos de leitura" - Outubro/09

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Segunda-feira, 25 de Agosto de 2008

A queimar a vida

 

 

Acendeu um cigarro, e sorveu-o com urgência. Fazia sempre assim quando as recordações começavam a chegar.

Estava sentada numa cadeira. Os braços dobrados pelos cotovelos, apoiados numa mesa redonda. As pernas por debaixo da toalha da mesa que tocava ao de leve no soalho bem encerado. Os livros abertos, forravam a mesa de forma desordenada. Estavam calados. Sempre lhe tinham dito que os livros falavam...mentira crassa! Os livros calam, guardam, envelhecem. Tirou outra passa vigorosa e a brasa incandescente quase lhe queimava a pele dos dedos. Os dedos estavam feitos livros....velhos, amarelentos, calados.

Tinha um casaquinho de caxemira vestido. Era macio, e quente..e ali sentada, era certo, arrefecia depressa. Era cruel aos resfriados. não era preciso muito e lá vinha o martírio do nariz entupido, as dores no corpo, as noites de chá quente com mel e folhas de eucalipto.

Era Agosto.

Mas só lá fora.

Ali na sala, era sempre Novembro.

Tirou um cigarro, da caixinha de prata monogramada, e acendeu-o, aproveitando o borrão do outro ainda em agonia no cinzeiro.

Olhou as folhas quietas na sua frente. Folheou o compêndio de matemática uma e outra vez, sem nexo. Tirou os óculos que repousavam com displicência na ponta do nariz, e pousou-os agora nos papeis mudos.

Há quanto tempo estaria ali?

Não tinha filhos de quem sentir falta, ou marido para chorar...

Então do que se lembrava?

Talvez fosse das vidas dos outros. De todos quantos enfrentavam perigos nas páginas impares de um qualquer livro, e lutavam com monstros inóspitos na capa de um outro, ou faziam amor capítulos a fio. Sempre silenciados na última página...

Ou então a vida dos vizinhos. Via-os todas as manhãs quando saía para comprar o pão. trocavam bons dias formais, gravados em fitas antigas desde há anos e anos...Já ali estava, sentada quando eles casaram. Sorriam um para o outro e olhavam-se de frente, depois só já sorriam, e agora também eles viviam no silêncio dela, sem mais memórias que sorrisos de papel colados em álbuns meramente decorativos. Sorrisos que podiam ser de qualquer um...ou de ninguém.

Recostou-se na cadeira de espaldar alto, e puxou o fumo agora devagar e profundamente.

Sentiu os pulmões estalar de prazer e esboçou um sorriso discreto. Será que eles, os vizinhos, também tinham memórias como ela? Assim, vazias de gente, ausentes, sem cor, sem cheiro.

As suas cheiravam a cigarros fumados com urgência.

Pegou na esferográfica de tinta azul, e escreveu na folha em branco prostrada à sua frente:

As minhas memórias

depois riscou por cima, para voltar a escrever em baixo:

As minhas recordações...

olhou, e decidiu-se por um ponto de exclamação no fim:

As minhas recordações!

Dava mais ênfase à frase, e dava mais peso ao vazio que se lhe seguia.

Seria a tão falada angustia da folha em branco? - agora sorriu com gosto, mas de forma breve...Não, não tinha nada a ver com papel...

Era mesmo a angustia da vida em branco.

O silêncio cresceu para além dela.

Uma vez, um dia,  tivera um amor...recordava-se agora.

Encontraram-se num café...não, não, foi numa esplanada. Era Agosto!..ou Setembro, já não sabia bem. Ele trazia um chapéu preto e fumava um charuto cubano que cheirava a rum com chocolate preto. Ou seria Whisky com cacau? Mas fumava. Disso tinha a certeza!

Ela pediu-lhe lume. Ela tinha uma voz rouca e exalava um fumo adocicado quanto falava.

Caia uma chuva miudinha, e o Inverno insinuava-se como uma mulher da vida...

Mas era Setembro!

Uma vez, um dia ela tivera um amor, uma paixão avassaladora, mas o livro terminara, e finda a leitura, fechara-o e jazia numa estante daquele imenso cemitério de palavras que era a sua sala, a sua casa, a sua vida toda.

Apertou o casaquinho de caxemira delicado com as duas mãos junto ao peito. estava a ficar frio. 

Era Agosto.

Tirou outro cigarro da caixinha monogramada de prata, eternamente aberta, e fumou-o com urgência. 

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Original Zumbido por meldevespas às 17:19
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Quinta-feira, 8 de Novembro de 2007

Vulgar ( a segunda parte)

4

 

O pai morreu na Terra. O coração que há anos batia contrariado, parou.

Andava a semear trigo.

Uns caçadores encontraram-no, deitado de bruços, com a boca cheia de terra e as unhas cravadas no chão vermelho.

As velhas vieram dar-lhe a notícia à escola. Pranteavam tingidas de preto e de mágoas que não eram suas. Catarina esbugalhou os olhos, e deixou-se levar por aquelas mãos frias de corvos.

Paramentaram-na de negro da cabeça aos pés, enquanto lhe rezavam a excelência do defunto, como pai, marido, trabalhador aguçoso e amigo inteiro.

Os lamuriosos ais, lembravam a Catarina os balidos das vacas a parir em noites de tempestade, e não conseguia deslindar se sentia mais dó do pai morto, estendido no caixão de pinho, ou das velhas que de desfaziam em caudais de água doce.

Para Catarina o pai nunca fora vivo. A única diferença era que antes estava morto dentro da carcaça que era o seu corpo, e agora estava morto dentro daquele caixote de madeira ruim.

Por isso, não sentia mais tristeza, ou queixume, nem menos. Os dias continuaram como até aí, na mesma cadência de  passos vazios e silêncios.

Esta falta de reacção, foi tomada por desprendimento por uns, outros houve que asseguraram de imediato a insanidade mental da criança.

As velhas agarraram nela, e sob a secreta mas ténue esperança de verem ali uma rapariga, levaram-na pra casa, e induziram-lhe uma formação intensiva lançando Catarina num corrupio de tarefas que cintavam mais as suas angustias, e agigantavam o nó de revolta que lhe engasgava as horas.

 

5

 

A adolescência chegou em bicos de pés, sem avisos, e, o animal que as velhas alimentaram e criaram dentro do peito de Catarina, cresceu e preparava-se para desferir todo o veneno destilado numa dose única de abandono.

Aos 12 anos, pegou na trouxa negra que adoptara como uniforme, e foi-se tão de repente como tinha chegado.

Regressou ao campo, regressou à vida. Dormia debaixo das copas das árvores, por cima do chão húmido que a chamava como antes quando era ainda uma semente enraizada e forte.

Tornou-se implacável como as estações do ano, sempre a fazer o que queria, quando queria, e quase sem dar por isso, foi largando a pele de serpente escorregadia aos pedaços debaixo dos  seus pés.

 A emulsão de pés de vento foi tomando forma, e com a força brutal de uma trovoada de Maio, a rapariguinha esguia e seca, deu lugar a um ser diferente, feito de contornos reais e carnudos, que primeiro a amedrontaram e quase em simultâneo lhe deram a noção do tamanho da fúria que ardia nos olhos dos homens.

E o seu campo era também o seu corpo. E a sua cama era também a dos homens que vinham em busca de relâmpagos gemidos no meio do pasto alto.

E Catarina viveu de trocas que deixavam na boca o travo azedo do campo vazio.

Os olhares de espanto e perguntas eram já olhares de raiva mal contida nas palavras ditas em surdina.

Era virtuosa nos corpos dos homens, era bruxa na boca das mulheres, era puta nas vozes ecoadas na vila.

A terra fria de Novembro, acordou-lhe a dureza da vida e asfixiou-lhe o ensejo de voar mais alto. A simplicidade dos dias de outrora, desvanecia-se no mundo, e Catarina cada vez mais vezes aquecia as mãos na fogueira baça da solidão.

O frio que lhe vinha de dentro, ameaçava tomar conta do astro, e transformar em gelo todos os seres que olhassem a imagem negra curvada como um junco  num charco ao fim de uma semana de chuva.

Já sabia de cor as ervas que expulsavam almas inocentes do seu corpo doído, conhecia como a palma da mão, a toca onde se acocorava em banhos de sal e sangue, e de onde saia mais vazia, mais pálida, quase uma sombra.

Mas as sombras crescem com a claridade, e inundam os caminhos de cabras ao pôr do sol.

As sombras acolhem os males e afagam as vinganças.

 

(continua...brevemente...)

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Quarta-feira, 24 de Janeiro de 2007

O GATO MORTO

Já disse o poeta (Vinicius de Moraes) que não há nada mais triste do que um gato morto.........

E é verdade......todos os dias desta semana, nos 9 kms que tenho que repetir 4 vezes, naquele ponto da estrada, tal qual um sinal de trânsito derrubado pelo vento da noite, está um gato de olhos mortos. Um gato preto de olhos mortos.

Olhos, e corpo, que a vida foi-se embora sem despedida prévia, ali mesmo na curva depois do caminho de cabras. Já há 3 dias, e aqueles olhos vazios sempre me cumprimentam, sem expressão nenhuma que não seja o do abandono da alma (sim da alma, porque os gatos têm alma, uma alma muito antiga, mais antiga que eu, mais antiga que o mundo inteiro), e eu olho de soslaio, porque me incomoda a ausência neles.

A pelagem baça, as orelhas ainda afitadas e...os olhos sem olhar de espécie alguma, só uns olhos de vidro assoprados.

Tenho medo daqueles olhos. Não têm dor, nem ódio, nem raiva, nem nada. Minto... só têm nada.´

Era um gato preto, de andar felino, elegante, de certeza que olhava para as cabras, para o pastor e até para o cão malhado com aquele olhar superior que têm os gatos pretos vivos.

E agora, depois da velocidade da curva, aquela logo depois do caminho de cabras, ficou lá, a dormir um sono sossegado, sem sobresaltos, um sono da cor da estrada, baça acinzentada como o rato que perseguia quando a curva o alcançou a ele primeiro.

Coitado, perdeu a corrida, e agora dorme de cansado, o gato preto de olhos mortos.

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