Segunda-feira, 28 de Dezembro de 2009

Aprendiz de pássaro

 

Caminhava num passo lento por cima da muralha. Um passo lento e descuidado.

O vento assobiava pelos torreões em ruínas Era um vento insistente, teimoso. Não era um daqueles espojinhos de Verão, quietos, cheios de pó e restos de papéis e paus de gelados. Era um vento de fio afiado em pedra de amolar e chuva antiga.

Chovia há mais de três dias, sem parar. Lourenço repetia o caminho, uma e outra vez, para a frente, para trás....a decorar as pedras velhas, cansadas de chuva, cansadas de vento, cansadas do caminhar fastidioso do rapaz. A cada saraivada de chuva arrojada pelo vento,  cerrava os olhos e os dentes e oferecia-se de braços abertos aos ímpetos do dia que amanhecia em espasmos.

Os cabelos ruivos caiam-lhe sobre a fronte, escorriam como rios em dias de enchentes, pelo colarinho da camisa e desapreciam peito adentro.
A cada trégua do vento, abria um pouco os olhos. A manhã estava  coberta por uma névoa de água, que tornava as árvores sombras, e os rios e os homens e os bichos, tudo era agora uma amálgama de ténues linhas de bruma. Antes de subir, tinha visto de perto o desgosto das terras. Choravam em rios de sangue pela estrada fora. Transbordavam caudais de lágrimas de ocre que deixavam livres pelas bermas. Sem acanhamentos, ou medo de desonra.

Invejava os campos, o seu despudor. Ele estava ali em cima, prestes a acabar com tudo, e ainda assim não conseguia verter uma lágrima que fosse. Sentia na boca o sabor doce da chuva, nada mais.

Outra vez abriu os braços, cerrou os olhos e ensaiou o voo. Um cascalho pequeno, escapou-se da muralha, mesmo por debaixo do seu pé direito. Por um momento perdeu o equilíbrio, sentiu um formigueiro nas pontas dos dedos, um calor brusco na face molhada, e o coração acelerado na garganta. Caiu para trás e ficou ali, a ver o calhau rolar pela encosta, até se perder na película de bruma. Era quase poético chamar encosta àquela escarpa de xisto escorregadio e bruto.

Do que estava à espera afinal? Que ela viesse, desfeita em culpas e carregada de súplicas? Ela não viria. Disso estava bem certo. Se queria voar, teria que o fazer sozinho.

Um voo solitário.

Acariciou o granito, lavado de lamas e ervas e bichos-de-conta.  Alisou a pedra fria. Outra vez aquele formigueiro. Era medo. Tinha a certeza que era medo. As fontes tinham começado a latejar, sentia-se zonzo. A chuva sedava-o. De alguma forma esbatia nele as convicções, as vontades, os rancores.

Ela não viria. Sempre o soubera.

A roupa ensopada pesou-lhe pela primeira vez. Tinha perdido o tino ao tempo que estava ali em cima. Ouvia com clareza os próprios ossos ranger demolhados na humidade lá de fora.

Esquecido da coragem que o içara até ao cimo do castelo decadente, agarrado às pedras ásperas com os dedos em garra, arrastou-se na descida.

Firmou os pés na terra ensopada, e em cambaleios correu na direcção de casa.

Por hoje, pelo menos por hoje,  deixava o voo para os pássaros.

 

 

 Pic aqui

 

sinto-me:
Original Zumbido por meldevespas às 16:01
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Quarta-feira, 29 de Abril de 2009

Dias a fio

 

 

Por esses dias, a morte andava no ar.

Como remelas em olhos de crianças doentes, pegava-se a tudo sem pudores.

Nas casas desertas não moravam agora mais que recordações vagas de vidas passadas em suspiros breves.

Pelas ruas ecoava um soão soturno e atrevido, que se insinuava pelas frestas de portas e janelas, e irrompia em explosões de pó que se elevavam das chaminés estéreis.

No Beco da Cova, mesmo ao virar da esquina, encravada entre as raízes encarquilhadas de uma mimosa, e as paredes altas do Palacete abandonado dos Fidalguinhos, ficava a casa da Velha Justina.

A Velha contava, se soubesse contar, mais de 100 anos. Movia-se em sinuosos círculos, como uma assombração, do seu eu passado. As costas curvadas, o queixo a poucos centímetros dos joelhos, os dedos das mãos deformados pela descalcificação da alma ausente há muito. Arrastava os pés nodosos e antigos pelo chão  ladrilhado de barro vermelho. O lume na soleira da chaminé, era a única companhia da velha. Os restos dos lenhos secos trazidos pelo Vespertino no princípio do Inverno, estalavam ateando labaredas vivas.

Estranhava a estadia prolongada nesta dimensão. Estranhava a forma como as lembranças se lhe iluminavam. Agora mais que antes, agora mais que nunca. Lembrava-se de coisas sem sentido... e no entanto, esquecia-se de quem era, não poucas vezes.

Lembrava-se dos olhos espertos do marido. Dos modos ladinos que tinha de a namorar, mesmo nos tempos mais duros...e depois, na cegueira do cair da noite, fechava os olhos e via-o no seu melhor fato de tyrilene, comprado ao Paco contrabandista... as mãos postas em descanso sobre o peito. As maçãs do rosto salientes da pele cinzenta . . .os olhos sem ninguém caídos no fundo de duas covas escuras..

Falava, enquanto se movia naquele rodopiar arrastado, sem fim... era mais um murmurejar, um ruído de fundo, uma prece em ladainha, que se renovava a cada rumor de vento. - Pai! Filho! Espírito Santo! qual de vós se esqueceu de mim nesta cova rasa de silêncios ruins! 

Já não chorava. O caudal fértil tinha secado, nada mais restava da bonança de outrora...apenas a pele árida, gretada, quase morta...

Porque andava Ela a imiscuir-se na vida de uns e de outros, e resistia teimosa a todos os seus chamamentos ?

Anda no ar Ti Justina, anda no ar! - dizia num gemido surdo a Maria Adelina.

Anda nada - ripostava a velha da janela do quarto de dormir - se andasse no ar já tinha entrado por estes buracos que tenho em mim, onde entra tudo quanto é dor... menos essa magana, que não tem dó desta sombra eterna.

Maria Adelina benzia-se em ânsias, e fugia às pressas, deixando atrás de si um cheiro a nêsperas azedas caídas da árvore em dias de trovoadas de Agosto.

A vida era uma erva daninha. A morte uma carícia que tardava.

O lume de chão, ardia em estalidos.A velha enchia de água uma cafeteira esmaltada, e encostava-a estrategicamente às brasas matutinas. Juntava o pó de café, e acocorada na cadeira baixa fundilhada a buinho, esperava o fervilhar do liquido. Assistia com pormenor a todos os pequenos movimentos dentro da cafeteira. No momento exacto em que a ebulição começava, e o café ameaçava transbordar, a Velha munida de uma tenaz de ferro fundido, apanhava uma brasa, e deitava-a com saber para dentro do liquido. Depois com o pé, arredava a cafeteira. Ali, era o único lugar do seu dia que lhe despertava um sorriso franco, tímido, mas franco.

Cerrava os olhos pesados, e inspirava com uma força escondida para a ocasião, o aroma forte do café acabado de fazer.

- Bem podias vir agora - conjurava baixinho, enquanto beberricava o liquido escuro - não sei o que ainda esperas...

As mãos envolviam a caneca de loiça pintada. Não havia tremores, só uma tristeza que cobria as paredes da casa, e escorria por baixo da porta até à raiz da mimosa.

O vento passou por ali, manso e calado. Fez ranger portas e batentes, e farto de desígnios vãos, deixou um rasto de Maio por toda a parte.

  

 Imagem by Deviantart

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Original Zumbido por meldevespas às 10:03
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Quarta-feira, 5 de Novembro de 2008

Prece

 

Quando voltares, no regresso do vento, não deixes de me abraçar.

Peço-te agora, na ausência, porque à luz dos teus olhos sei que por certo vou calar a prece.

Ampara-me dos rigores de Novembro, faz das tuas mãos....dos teus braços, um manto vermelho de folhas quentes que amornem a inquietação da espera.

Ensina-me a ir e vir como o vento....como tu...

Contraria o meu espírito de árvore, espicaça estas raizes pré-históricas que alastram na minha negligência.

Poda as incertezas que me castram a vontade.

Que o teu corpo se apodere do meu, e o vento nos encontre por fim, fundidos numa partícula irremediavelmente una... indivisível...

 

Image by: Meldevespas

 

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Original Zumbido por meldevespas às 20:28
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Quinta-feira, 13 de Março de 2008

Amazing....

 

- Foram três dias de assombro...

Falava...as palavras espalhavam-se como água e havia bocas que se abriam de espanto, e olhos paralisados colados na sua voz.

- O vento rugia com tal força, que os alicerces das casas descolavam da terra como dentes podres, e os homens trabalhavam amarrados a estacas de ferro de dez polegadas, e os tímpanos rebentavam e tudo quanto era ser vivente ensurdecia....

As mães ajoelhavam aos pés das camas onde as suas crianças dormiam. Ajoelhavam e velavam o sono inquieto, atemorizadas por alguma rajada insolente que entrasse por baixo da porta e lhes levasse os inocentes.

.....

-Eu vi! Ninguém me contou! Eu vi bem, três crianças pequenas, todas de mãos dadas, que se ergueram no ar como balões e voaram pelos céus , até desaparecerem por detrás de uma nuvem cheia de vento...não mais voltaram...eu bem vi...

......

- Depois foi a chuva, começou de madrugada e alagou tudo o que estava seco, só sobreviveram os que sabiam nadar....ou voar...

Começou de madrugada. Quando o vento de calou. Começou com tiros de canhão, que ecoavam nas casas como se estas estivessem vazias de coisas e de almas.

Fui à janela. Eram ovos do tamanho de punhos de homens grandes. Ovos de gelo que caiam com estrondo, e quando caiam saiam deles uns pintos encharcados  que se derretiam e deixavam no ar um cheiro a gemada com aguardente.

E aqueles pintos derretidos, alagaram tudo o que estava seco...depois abriram-se bicas lá no céu, e fontes derramaram toda a água sobre nós. Safou-se quem nadava.....ou voava....

.....

-No último dia  trovejou. E não houve noite, só dia claro, e um qualquer cegava com os clarões dos relâmpagos. E as árvores do campo tornaram carvão, queimadas da raiz às folhas, e a paisagem ficou pintada em tons de preto e branco... cinzento....e luz.

.....

-Por fim o silêncio...os que ficaram, apanharam os cacos, varreram as casas, escoaram as ruas, fizeram leitos de rio todos de novo, arrumaram as vidas....

Foram três dias de assombro. Eu vi......

.....

Depois calou-se, saiu para a rua, cortou a corda que o prendia à porta, com uma navalha de bolso, e tirou os pés do chão, devagar....deixou no ar um cheiro forte a gemada quente com aguardente.

 

Imagem by Weee (Amazing)

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Sábado, 23 de Fevereiro de 2008

Pé de Vento

Está a escurecer...vou sair.

Eu sei que está a chover, a chover muito...não fiques em cuidados comigo!

Achas que me vou afogar?!

Se me quisesse afogar, deitava-me na fonte e ficava lá...a criar raízes ...

tu sabes que eu não sou raiz, eu sou pé de vento.

Ah....e antes que me esqueça.....sei que arrancaste todas as flores que eu plantei.

Na verdade nem sequer eram flores...ainda....eram apenas rebentos...mas ainda assim...

E agora tens medo? De quê?

A morte tem muitas formas, sabias?

Agora vou.

 

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música: It's raining again - Supertramp
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Segunda-feira, 19 de Novembro de 2007

Antes de o dia acordar

Acordei cedo.

Ainda antes de o dia acordar.

Não havia sombra de sol ou claridade lá fora. Só um rasto de noite e uns laivos roxos na linha do olhar.

Sentei-me na cama à espera de ver o dia voltar a si. Mas estava demorado. As gostas de água nos vidros denunciavam um amanhecer difícil .

Bocejei. Acendi a luz do candeeiro, vi as horas e deixei-me ficar ali sentada na ponta da cama, os pés no soalho frio, os olhos na madrugada baça, e a cabeça no sono, ainda no sono.

Ouvi um ruído . Era sinal, que aos poucos todo o meu corpo ia despertando da letargia da noite.

Era o vento nas laranjeiras do quintal. As laranjas já estão maduras, se insistir, vai acabar por derrubá-las, e depois vão saber a chão, e já ninguém as vai querer comer....

Esfreguei os olhos com força.

Lá fora a noite não se resignava, e trocava humores com um sol sem vontade para disputas.

Enfiei uns chinelos de lã e aventurei-me até à ombreira da janela de sacada... Olhei o exterior em tom de desafio, e o vento lembrou-me as laranjas a cair da árvore e a rebentar em estrondos de sumo no chão de lajes do quintal.

Chovia menos agora, e a madrugada, envergonhada cedia finalmente às suplicas de cama que o sol lhe lançava.

Apanhei o cabelo sem pressas. Na cozinha, os motores cansados dos electrodomésticos debatiam-se na monotonia dos sons. A chuva parecia ter parado de vez, e era agora só um pingar das beiras dos telhados.

O café acabado de fazer encheu o ar de uma fragrância de especiarias quentes. Inspirei aquele odor até mais não poder e bebi com demora  o liquido que me embaciava o olhar e me aclarava o dia.

Lá fora, como num jogo de crianças, estava tudo montado para mais um acto. Tudo no mais perfeito balanço, um jogo de compatibilidades e cedências que desde o berço do mundo regia os vazios dos homens.

Liguei a televisão. as notícias eram como sempre deprimentes, ou não seriam notícias, mas sim eventos. Desliguei, e deixei-me ficar ali, enterrada no sofá, longe da perfeição do mecanismo de bons dias e amanheceres risonhos que vinham pela janela da salinha.

Nunca tinha sentido vontade de fazer parte da engrenagem. Via-me, como sempre me via, uma peça solta que sobrara na hora da montagem.

Apetecia-me voltar para a cama.

Olhei outra vez de soslaio. Vi duas vizinhas a falar na esquina da frente, sorriam em gestos largos, e havia crianças a comer bolos agarradas às suas pernas. 

Respirei fundo e fechei os olhos. Só por uns breves segundos pude pensar em sair,  levantar-me dali, romper o casulo e atrever-me a bater as asas, a não ter medo de mostrar as cores de mim.

Foi só um instante, um abrir e fechar de olhos, uma amarra cortada.

Ao fim do cais, apenas um grito breve e...voltar atrás, pousar ao de leve, como se nunca tivesse sequer voado.

Levantei-me do sofá. Deixei os chinelos de lã esquecidos  no chão, e pé ante pé, tomando consciência do frio que me subia pela planta do corpo, voltei à cama.

Desliguei a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira, deitei-me no mesmo compasso com que pautava as minhas horas, e, cansada de voar, adormeci sentada no cais.

 

 Fotografia de João Palmela

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Segunda-feira, 5 de Novembro de 2007

Vulgar

 

 

1

Não havia memória de um dia, naquela magra vila, em que não tivesse sido pronunciado o seu nome.

Anos e anos de peripécias, envolviam-na numa espécie de halo mítico, que tornava a sua, uma história em tudo igual a tantas outras impressas nas páginas de um qualquer livro de lendas antigas.

O seu nascimento, as escadas íngremes da infância, os amores e desamores da adolescência, a queda na vida adulta. Tudo se conjugava num único verbo, singular e solitário de engrandecimentos de boca em boca, e vazio dentro da casa onde morava, ainda.

Ouvia contar de si, como quem ouve o relato de um filme que acabou de passar na televisão. Via-se sempre no papel da heroína , forte, bela, sobrevivente. Via-se sempre assim por fora dela, por fora de si mesma.

Os pontos acrescentados à teia de eventos, eram tantos e tão espessos , que não havia olhares que resistissem à sua passagem pelos passeios empedrados. As vozes calavam por instantes os seus infortúnios , e a pena que as suas expressões debotavam, feria-a fundo, no corpo tolhido pela força dos elementos. Ou então não. Feria-a no sítio onde antes tinha acalentado um pequeno ego, que cresceu depressa até sufocar de tanto ar, até arder como uma Fénix que se zangou com os homens e se recusou a renascer.

2

Era ela Catarina das Graças. Não era uma velha, também não era nova. Era uma mulher que tinha a idade exacta dos seus dias, e os seus dias eram do tamanho da sua existência, e a sua existência pairava, mais do que era.

Nascera com a morte da mãe. O primeiro grito de uma foi o último da outra. Uma só alma, que abandona um corpo,  porque se enamora de outro.

Cresceu na casa do pai, mas fora do colo dele.

O pai era um homem duro e pouco dado a afectos, que nunca conseguira lavar da boca o sabor amargo do dia em que a filha chegara a este mundo de Deus.

Trabalhava a terra com avidez, e se algum calor sobrara em si, era a ela que o dedicava. A terra era a sua única amante, que o esgotava de toques e o esvaziava de forças. A terra sugava-lhe o suor do corpo e a vida do olhar.

Catarina cresceu na terra, livre como os coelhos, a correr pelos campos, acossada pelas raposas e outros bichos das sombras. Comia flores e mordia ervas frescas, nadava nas ribeiras que corriam depressa nos meses de Primavera, por entre os baixios do terreno, e dormia sestas coberta apenas com o calor do verão ou o frio do Inverno. Era do campo, como outros são da lua. Não sabia outra fala, não percebia outra vida que não fosse essa.

 

3

Entre ventanias e trovoadas, Catarina foi crescendo à margem das gentes, à reveria de regras, ao contrário das leis dos homens, que a cada bater de porta, mais se ausentavam da sua presença no mundo.

completados os 6 anos, entrou na escola, e livros dentro foi trilhando caminhos de descoberta. A carteira de pau, sovada e castigada de tabuadas cantadas em coro, abrigava-lhe os primeiros medos. Medo das pessoas que agora lhe apertavam os seus dias, medo das horas contadas com esforço no relógio por cima do quadro preto, medo daquelas paredes pálidas e opacas que  eram o limite do seu campo.

O seu campo tinha ficado lá fora, solto, livre e verde, farto de terra e água e passos de bichos.

Sonhava acordada, e abalada, acordava de sonhos que não o eram.

Um dia de sol morno, logo depois do almoço engolido à pressa debaixo do telheiro da escola primária, cerrou os dentes e calou-se. Abriu os olhos para o mundo com que lhe queriam entulhar a alma, e como uma escolha que se faz por querer, calou-se.

Não é certo o tempo que durou tal situação. Uns falam de dias, outros de meses, os mais audazes arriscam anos.

Enquanto o silêncio não se quebrava por dentro, o burburinho de vozes e sons crescia como cogumelos no tronco de árvores na estação das chuvas.

Havia dedos apontados, murmúrios que eram quase sussurros, segredos expostos, e prosas inventadas com pormenores arrancados pela raiz à laia de dentes inúteis.

Aquela criatura, pouco maior que um cão vadio,  ia assim, tomando conta do ar, das casas e de todos os poros da vila.

 

(continua...brevemente)

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Sábado, 20 de Outubro de 2007

Memórias de Vento

- Há quanto tempo não moras aqui?

-...não me lembro...mas volto sempre depois da chuva...

- Como uma formiga de asa?

- Sim!!! Isso mesmo, como uma formiga de asa, atrás de nesgas de sol.

- Antes eras diferente.

- Quando?

- Sei lá! Antes. Trazias as mãos e a boca carregadas de pólen , e por onde passavas nasciam flores amarelas, daquelas pequeninas que há no campo.

- Malmequeres do campo.

- Talvez.

- Não sei... só guardo o sabor do vento a uivar nas canas da ribeira. Trazia um torpor tão leve, que adormecia a sonhar com libelinhas de cores garridas em dias de sol.

- Ainda falas como quem diz poesia...pelo menos isso não perdeste.

- Nunca me compreendeste... são só palavras, percebes?

- Cortaram-nas.

- Desculpa!?

- As canas. As canas que ladeavam a ribeira. Vi lá os homens. Ceifaram todo o canavial.

- Que pena...o vento vai estranhar tanto!

- Disparate! O vento é um sopro, não é gente! quem te ouve falar....

- É um sopro, eu sei. Mas se não é gente, porque é que vive comigo na mesma casa, debaixo do mesmo tecto?

- Lá vens tu com as tuas coisas....

- Não sabes a resposta, não é? ... eu também não sei. às vezes enxoto-o com o silêncio, mas ele não se rende, volta com mais força ainda, e esconde-se dentro do meu peito.

- Desconcertas-me...

- Não sei porquê? Basta olhar para ti! Vê-se a léguas!

- Ora....o quê? Diz lá...

- O inverno.

- ....

- Sim. Está nos teus olhos. Olhas para mim com tal frieza, que me faz arrepender...

- Mentes! Não há frio, nem chuva, nem neve no meu olhar! , mas...arrepender de quê?

- De voltar  depois da chuva...

-...como as formigas... para te encostares ao sol e aquecer as asas.

- Não ... vinha para me aquecer em ti, e enxotar o vento.

- Não percas tempo. Também eu já não moro aqui. Tu sabes...

- Sim, eu sei. A força nunca foi o teu forte.

- E agora o que queres dizer com isso!!!

- Deixa lá...agora já não vale a pena...

- Sabes que detesto meias palavras! Explica-te!

- Está a arrefecer. Deve ser de ti. Vou-me embora. Adeus.

- Não! Espera! Fica mais um bocadinho...tens razão, tens sempre razão...mas o que queres,  sou fraco.

- E eu sou leve. Por isso vivo com o vento. Tenho dias de ser brisa, tenho dias de ser ventania.

- Mas fomos felizes, não fomos?

- Fomos?

- Acho que sim...eu era feliz..

- Vivias a fazer bonecos de neve com algodão doce...por isso eras feliz. Mas sabes? Para fazer bonecos de neve, é preciso neve...

- Isso nem parece teu! Tanta seriedade! Tu que dormias de olhos abertos numa cama de flores amarelas, que cresciam só para ti! Tu que derramavas  pólen, por onde passavas...

- Se dormia de olhos abertos, era só para não te perder de vista...e não eram flores, eram os teus olhos, e não era pólen, era amor...

- Não sei que te diga.

- Não digas nada...vou agora.

- Voltas?

- Não sei...

- Talvez depois da chuva?

-...como a formiga de asa.

 

Fotografia de João Palmela

 

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Quarta-feira, 10 de Outubro de 2007

Hopeless III

 

 

Olha para mim. Só um bocadinho...

Não me toques como se eu fosse água...sempre com medo que te arraste para fora de pé.

Não me olhes como se eu fosse vento...sempre com medo que eu derrube muros em ti.

E não me ames com medo que me desvaneça...como se eu fosse esperança.

Não sou água, ou vento, ou esperança.

Nada em mim é rebelião, ou lugares distantes.

Antes sou pântano , calmaria, resignação.

Por isso nada temas. Não te vou magoar. Nem poderia!

Até porque são tantas as vezes, em que tu e eu somos um.

Siameses de braços caídos. Corpos ausentes de um hoje que se faz tarde.

Agora a sério! Não tenhas medo. Já não sonho.

Hoje de manhã, estavam a cortar as ervas na beira da estrada. Uma ceifa que deixou o ar carregado de cheiros de campos saturados de águas e temperos. Uma aroma tão verde, que por momentos me acordou a fadiga.

Depois passou. Ficou lá atrás, na berma da estrada, e eu segui o dia que nascia fora do meu reduto.

Sim, eu também tenho muros! Ergui-os aos poucos, com suor salgado e às vezes doce. Com a força dos meus braços, das minhas mãos, com o sopro da minha indiferença.

Ao meio dia, quando o sol já vai alto, passei outra vez. As ervas cortadas, jaziam numa exaustão colhida à força, e o cheiro agora era tão intenso como o teu silêncio.

Havia anis e licor de poejo e ervas doces, na respiração ofegante das ervas tombadas.

O calor fermentou-as, e o ar estava exuberante de bebedeiras e faces coradas.

Um aroma tão quente, que quase me queimou a fadiga.

Depois passou. Ficou lá, a brincar com incautos errantes, que cansados de tudo e de nada por ali se perdiam.

Mas eu não.

Não tenhas medo.

Eu já não sonho.

 

 

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