Andavam no campo a pisar ervas.
Caminhavam com passos pesados.
Andavam a pisar ervas, porque no campo só há ervas.
Deixavam o ar carregado do cheiro das ervas pisadas.
Comiam as flores das estevas sem mastigar, e nem o travo amargo os fazia recuar.
Eram bichos
Fugiam deles as abelhas
Escondiam-se deles os escaravelhos.
Tinham os pés descalços e passos pesados
Esmagavam formigueiros, alecrim e rosmaninho
Calavam rumores de pássaros
Sacudiam borboletas e mosquitos com o vento feroz das mãos abertas
Ateavam o sol e queimavam ramos secos.
Acordavam crias adormecidas.
Enchiam o vazio de ruídos
Esvaziavam a vida das coisas
Eram bichos
Não tinham fome
Tinham pressa
Parabéns Zequinha!!!!!
12 Anos!!!
Todos por aqui, já conhecem o meu Zeca, e esta é a minha homenagem ao meu rapazinho, que me enche a cabeça de problemas, que me moi o santo dia, que me chateia até aos limites da insanidade e que apesar de tudo.....eu AMO tanto tanto ( e sim! sou uma mãe babada
"Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
Quero um cavalo só meu,
seja baio ou alazão,
sentir o vento na cara,
sentir a rédea na mão.
Não quero, não quero, não
ser soldado nem capitão.
Não quero muito do mundo:
quero saber-lhe a razão,
sentir-me dono de mim,
ao resto dizer que não.
Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão."
Eugénio de Andrade
Eram três raízes fortes.
Frutos de sementes vulgares, mas sãs e escorreitas.
Eram três raízes, que fermentaram no colo de uma mãe viúva de traços firmes e plácidos, e germinaram num dia de Primavera com o nascer de uma manhã qualquer.
Tinham membros malhados como ferro, forjados na tempra de uma fornalha acesa em brasa. Estavam na terra, como a terra estava nelas, Eram da terra numa pertença sem reservas ou limites, eram e isso bastava.
A viúva que as deitou ao mundo, cansava os braços com os filhos dos senhores, e caiam-lhe os seios de tristeza pelo leite derramado na boca de outras crias que não as suas. Tinha olhos de sal, que às vezes não se fechavam, porque não se podiam fechar, e davam-lhe um ar de estátua. Uma estátua numa praceta de segunda que ninguém olha, pela razão simples de que não há ninguém para olhar. A mãe viúva, tinha os nós dos dedos gretados do frio do pão amassado noites dentro para mesas de outras casas. Ela não tinha casa, nem mesas, nem tampouco pão, só três raízes fortes metidas na terra, de pés sujos e duros que sorriam com a alma toda quando a tarde do dia a seguir trazia embrulhadas num pano grosso, as côdeas do pão dessa manhã.
Codeas , maçãs tocadas com nódoas negras que alastravam mais depressa dentro dos bolsos, escondidas dos olhares famintos de raízes fracas e folhas caídas longe do Outono; raspas dos bolos de torresmo assados no forno do pastor, árvore nobre de tronco rugoso e ramos quietos.
Aquietavam o clamor do estomago com restos de nada, e brincavam de mangas arregaçadas e calções cortados pelos joelho e atados à cinta com duas voltas de cordel.
Eram amados na sombra dos filhos ricos que não eram da sua mãe. Espreitavam do alto do muro as mãos gretadas a pentear cabelos de ondas loiras, e fingiam ser eles, quem estava ali à mercê da doçura daquelas mãos de que só conheciam o cheiro.
Mas os seus cabelos eram negros, e atrevidos, espetados e sujos, e as mãos estavam longe. Acariciavam cabeças douradas, faziam-no com carinho e desmedida dor.
As raízes tomaram conta do seu pequeno mundo, e fizeram dele um lugar fertil para se viver.
Cresceram e multiplicaram-se, ficaram mais fortes a cada pedaço partilhado de amor em forma de pão bolorento. Abraçaram palmos e palmos de terra, sempre na busca, sempre a fossar o cheiro a óleo de amendoas doces que a mãe trazia nos dedos àsperos, o cheiro arrancado a aneis louros incandescentes.
Um dia a mãe viúva fechou os olhos de sal, e não mais os abriu. Nunca mais trouxe côdeas , ou frutas passadas, as mãos mornas, arrefeceram num repente e perderam o cheiro.
E as raízes encolheram-se de dor, calaram gemidos, perderam sorrisos abertos e ganharam um par de olhos de sal para cada uma delas.
As poças de lama, já não eram oceanos sonhados de praias quentes e azuis, e os olhos de sal viam agora apenas poças lamacentas feias, frias e vazias de interesse.
A terra toda encheu-se de raízes novas, e as três raízes fortes sulcavam vales com gretas nos nós dos dedos, e voltavam de rastos com pedaços de pão de ontem e restos de bolos resgatados do lixo das padarias. E havia sorrisos de mangas arregaçadas que esperavam com os olhos cheios de sono, as mãos sedentas de toques e as barrigas cheias de fome.
Aos poucos os olhos de sal que tanto tempo permaneceram abertos, escancarados de fé, e tantas vezes (muitas mais vezes) de desespero, fechavam-se.
Uma a uma, as três raízes fortes foram perdendo o viço, os olhos foram ganhando a paz.
Os olhos de sal e a busca de pão foram passando de raíz em raíz, até hoje.
Os meus olhos salgados já mal se fecham.
Três raízes fortes esperam as minhas mãos.
O homem passou como todos os dias passava. O ar da manhã estava carregado de cheiros e texturas que lhe dilatavam as narinas e lhe acariciavam a pele. E ele deteve-se, parou a sua monótona marcha matinal, e pela primeira vez viu-a. Já tinha olhado para ela vezes sem conta, era impossível não o fazer, mas não, nunca a tinha visto assim.
Ela ali estava, posta a seus pés, estendida em gestos lânguidos e preguiçosos , cansada de dias grandes e noites quentes, esgotada das provocações primaveris consumadas nas tardes de Verão.
Estava mesmo ali, como sempre tinha estado, a Terra.
Tinha estampado na cara um sorriso trocista de desejos explorados, e olhou-o como quem colhe uma romã a rebentar na pele, de sucos doces e carne madura. Demoradamente como um convite.
A Terra. Ela ali estava, vermelha e doce, deitada em toda a sua volta, húmida e tenra, movendo-se com o ritmo de passos perdidos, e brisas de Outono atrevido .
O homem, não conseguiu tirar os olhos, ficou parado, estanque, num burburinho de sensações a explodirem-lhe o peito, um rastilho de pólvora a correr-lhe nas veias e a transportá-lo para leitos voluptuosos atapetados a folhas secas de veludo.
Ela encarava-o, sem medo ou temor, segura e serena, cheia e plena, grávida de chuvas abundantes e sementes que o vento quis violar e ela negou com artes de sábia guerreira.
Tudo à sua volta era vida, tudo gravitava em torno do seu eixo, numa fertilidade mal contida de folhas e frutos e raízes .
O homem contemplou-a já apaixonado, já rendido ao seu poder, e compreendeu o sentido dos ponteiros do relógio da torre, abraçou a vontade de viver que lhe crescia na ponta dos dedos, e precipitou-se em direcção a casa numa correria cega e apressada.
Abriu a porta, e os seu olhos perderam-se pela casa, numa busca de loucura pressentida.
A mulher estranhou-o ali, perguntou-lhe ao que vinha, mas os olhos do homem responderam antes que a boca se abrisse.
Correram juntos como animais em campo aberto, e quando os seus olhos se acharam na ânsia do encontro, deitaram-se nela e apaziguaram o corpo com sumos de romã, e saciaram a sede com bagos maduros.
Por baixo deles a Terra sorria num gemido cúmplice , e girava devagarinho, prolongando os dias.
O Santo António veio quente, e seco, este ano.
- Se o calor continuar, isto vai ser de arromba, pá!!
O calor molhava os corpos e a vontade da sesta já teimava contra vontades pouco férreas .
Mas para eles, não havia calor, ou sesta que os desviasse dos seus trabalhos. Havia que puxar dos galões, e mostrar aos outros bairros quem era de facto o melhor!!!
O grupo reunia-se invariavelmente no casão da Ti Ana, havia ali espaço para guardar tudo o que precisavam, rolos de papel, grades de gasosas, tesouras, fios, caixotes, lâmpadas pintadas a guache, e corações cheios de orgulho.
A Ti Ana, tinha acabado de fritar as favas secas, e o cheiro pegajoso e salgado deixava no ar promessas de bailaricos e balões de papel colorido.
Agora entravam eles em acção, improvisavam saquinhos de plástico, selados com facas de cozinha aquecidas, debaixo do olhar atento da sua guardiã. O Zé Luís assoprava os dedos, entre uma queimadela e outra, que na ânsia de ver o tempo andar, nenhum deles tinha achado necessário esperar que as favas fritas arrefecessem. As mãos iam ficando brilhantes da gordura, e os peitos iam ficando inflamados pela excitação.
Todos os anos rituais se repetiam, votava-sa uma comissão, calcorreava-se toda a vila a pedir às portas, contavam-se moedas e sonhava-se com um S.João que durasse muito pra lá da meia-noite.
Este ano era o ano deles, os mais novos estavam ainda nos 12, mas o Zé Luís , a Záu e o Faco , metiam respeito do alto dos seus 14 anos.
É já amanhã a grande noite, todos sabiam que não poderiam dormir, todos tinham a certeza que pulariam a noite com um salto doloroso e demorado, como a espera no corredor do hospital, para levar a vacina.
A Bia , roía as unhas compulsivamente, e tinha os olhos escancarados, pregados num qualquer ponto imaginário. Via a fogueira, a maior fogueira que já se vira ali no bairro. Será que as feixinhas de lenha que tinha ido pedir à padaria seriam suficientes ?
O Faco deu-lhe um valente encontrão - Acorda!!!! Achas que não há nada pra fazer!?- A Záu , largou os dedos, retribuiu o empurrão, ripostando que estava a contar as feixinhas !
A Lela , a maior de todas, pelo efeito do pão com manteiga e açúcar que demolia nos lanches matinais, pediu calma, alertou para a falta de tempo, e entre um saquinho e outro, lá ia surripiando favas fritas salgadas, que os seus dentes trituravam em permanente encantamento.
Ao meio do bairro, havia um pequeno cruzamento, e no centro, crescia todos os 23 de Junho, um longo mastro, empinado., que se agigantava até ao céu, engalanado por dezenas de bandeirolas de papel de seda, que, quando chovia, engelhavam o mastro e a cor, mas nunca a festa! Este ano, o calor estava de pedra e cal, e não havia que temer intempéries de espécie alguma.
Do mastro, corriam para os quatro cantos cruzados, braços estendidos de lâmpadas coloridas e balões de papel frisado.
Magotes de gente começavam a chegar-se à música desafinada do gira-discos emprestado pelo Manel Pisco. O Manel era mais velho, já tinha tirado as sortes, estava à espera de ser chamado para ir à tropa. Andava tão contente, que já não se podia aturar a conversa dele, que a crer na rapidez da língua , no fim da recruta já seria general.
As lâmpadas pintalgadas acendiam a noite, o cheiro das bifanas na frigideira aguava apetites, as crianças ostentavam pequenas garrafas de gasosa como troféus, havia danças de roda à volta do mastro iluminado, e carícias furtivas escondiam-se nas esquinas escurecidas pelas sombras desertas.
A vizinhança arrastava para as portas cadeiras, banquinhos, copos de limonada com folhas de hortelã e pratos de fatias paridas, feitas de pão de ontem com ovos dourados e polvilhadas por mãos generosas com açúcar e canela.
A noite embebedava-se de vozes e luzes, e deixava-se ali ficar numa cadência morna de Verão acabado de chegar de longe. A noite estava em paz com o tempo, com as estrelas e com os homens.
...
Este Junho, estava mais agreste. Zé Luís sentou-se num portado, e olhou a decadência das casas. Aqui morava a Ti Estrudes ...ali em frente, naquela casa antes branca de pé encarnado de óxido de ferro, e agora de um castanho antigo, esbatido e escamado pela vontade dos dias, era a Senhô Maria Rita. Além, na esquina...era a casa do Manel Pisco, estava fechada a sete trancas desde que tinham ido pró estrangeiro...os galões de General tinham ido esperança abaixo, afogados em fome e raiva.
Já não havia ali alma de miúdo que içasse um mastro, ou ateasse uma fogueira.
...
A fogueira crescia como a noite, em labaredas de desejo, e a lenha cedia ao fogo com um deleite prolongado pelo fumo que se espalhava pelo ar e enchia de coragem o peito da miudagem .
O Zé Luís foi o primeiro a saltar, estava em picos para o fazer, e nem deixou as labaredas acalmarem do fogo. Saltou com quanta força tinha, e sentiu o calor trespassar-lhe os ossos.
- Consegui! - Pensou num grito lancinante e calado - consegui!
As pestanas desaparecidas, as pontas dos cabelos chamuscadas, os fundilhos das calças calcinados, e um cheiro a coiratos no ar, provaram o gesto épico do grande salto...agora era um homem! Puxou o peito pra cima, o mais que pode, e nessa noite, não houve mais ninguém a fazer-lhe sombra...podia não chegar a General como o outro, mas hoje ele era o Rei da Fogueira!
...
Sorriu, e os dentes estragados mostraram um reinado queimado pelos fogos vãos de vidas errantes.
Voltara ali porquê?
Tinha os dias marcados pelo compasso do próximo copo, e o regresso a casa só tinha servido para pôr mais urgência na urgência que o consumia.
Voltara ali porquê?
Se calhar para voltar a sentir o calor das lâmpadas pintadas.
Para saber que ainda se lembrava da vida, quando voava a pique.